Monday, January 15, 2007

Noites frias

1935. Um libanês parte de Beirute em direcção a Moscovo. Leva na trouxa alguns quilos de pão seco, duas garrafas de azeite e alguns garrafões de água. Montado num velho burro, atravessa o longo deserto até à Síria, onde troca o seu azeite por tâmaras frescas. A partir daí, continua pela Turquia dentro, mergulhando os sentidos nos bazares de Istambul, antes de se fazer ao Bósforo e mergulhar pela Europa acima. Passa por Plovdiv, Varna, Brasov, Bacau, Rivne, Kiev, Kharkiv, Kursk, Lipetsk e Tula antes de chegar à grande cidade de Moscovo. No caminho que o leva através das actuais Bulgária, Roménia, Moldova e Ucrânia, o libanês troca noites, histórias e encantos com os povos eslavos, os nómadas ciganos, e as frias noites dos Cárpatos. Dá a sua voz aos acordeões de velhos cantadores, monta com eles os cavalos selvagens das estepes e aquece-se com o mesmo fogo que queima as suas caras esculpidas pelos frios Invernos soviéticos. Ao longo dos quinze meses de viagem, o libanês encanta os seus esporádicos companheiros de viagem com a sua flauta de madeira, aprendendo com eles a manejar as suas próprias ferramentas musicais. Quando chega a Moscovo, leva consigo uma valiosa bagagem de conhecimento na mente, instrumentos de madeira e arame na velha trouxa, notas musicais na pele e uma enorme alegria no seu sorriso, cheio de curiosidade e histórias para partilhar. Demasiado, para um libanês em Moscovo: passados três dias da sua chegada à cidade, quando mendiga à porta de uma velha igreja, é preso, julgado na hora, acusado de reaccionário e deportado para a Sibéria. Num gélido comboio passa os seus próximos quinze dias, antes de ser despejado como gado, quase nu e desapossado de tudo à excepção da flauta que esconde sob o seu manto roto, à porta de um enorme bloco de granito, que se ergue assustador sobre uma imensidão de infinitos campos de trabalho gelados. O libanês foi enviado para um gulag. Privado de amor, carinho, solidariedade, despido de sentimentos e esperança, mantém a alma viva tocando baixinho a sua flauta, quando se deita no gelado beliche de madeira após quinze horas de trabalho no campo. Sopra levemente as tristes mortes dos mais fracos, que tombam diariamente congelados a seu lado. De início, toca para si, sob o murmúrio indiferente dos outros que adormecem. Aos poucos, um olhar curioso espreita o poeta libanês, antes do primeiro tom e depois da flauta se calar. A este, mais se juntam, à medida que os demónios gelados do gulag deixam aos homens condenados espaço para sonhar. Passam noites e noites, e com elas mais almas emagrecidas juntam o seu calor ao leito do libanês, e lágrimas saudosas à sua voz entristecida. Um dia, um prisioneiro cazaque junta à sua flauta um triângulo de metal, e aos seus debitares arabescos a rouca voz dos domadores de falcões. Passados longos meses e longas noites, em que a fria camarata se aquece ao som dos dois músicos e das vozes em coro que entretanto se juntam, dois ciganos romenos trazem aos músicos de embalar uma velha nostalgia, improvisando um acordeão com que, revezando-se, transformam o duo num quarteto. Com o coro, fica uma orquestra. A “Gulag Orkestar”, única triste Humanidade nas noites frias da desolação siberiana.

(Gulag Orkestar, o cd em que o americano Zach Condon, de 20 anos, se auto-intitula de Beirut, está a arrasar a crítica independente nos Estados Unidos, e só não arrasa a da Europa porque nós por cá já conhecemos estas tonalidades por afinidade histórica e cultural. Seja como for, vale a pena ouvir. E, já agora: o único lugar onde a história do parágrafo anterior aconteceu foi na minha imaginação.)






5 comments:

m said...

continuo a insistir na ideia: edita!

Maria Strüder said...

Fico triste por não ter encontrado este blog mais cedo, identifico-me mesmo muito nele.
Preciso de umas férias da Maria!
Miminhos*

m said...

Concordo. A evolução deste blog é surpreendente.

Acompanho-o desde o primeiro post (época em que não haviam leitores, ou pelo menos comentários) e agora que está com tanta vida, ganhou uma graça especial.

osmi said...

amanhã decerto vou ler

Maria Strüder said...

Então menino nada novo?
A veia criativa adormeceu?