Tuesday, January 23, 2007

Quando corro nas Docas

Estava um gelo hoje, quando cheguei às Docas. Bati com a porta do carro, apertei os sapatos e andei os vinte metros do costume até ao lugar onde todos os dias respiro fundo, lanço um último suspiro invejoso aos vultos que levam à boca chávenas cheias, do outro lado do vidro do café, e carrego no botão de cima do relógio antes de me fazer ao percurso.

Hoje, corri sem preconceitos contra a gravidade. Geralmente, os primeiros cinquenta passos dão-me a ideia do que vai ser a próxima meia hora. Perros, soltos, lentos, velozes, bem respirados, em esforço, de pulmões abertos, ou com uma certa azia. Tudo é possível, no momento em que me lanço a correr, e tudo será, durante meia hora, como nos primeiros trinta segundos.

Hoje, os meus movimentos fluíram sem gravidade. Estava um gelo, o chão escorregava sob a humidade de uma chuva miudinha acabada de cair e, para além de uma garça solitária, ninguém se atreveu a exercitar-se neste dia. Ou então, ninguém gosta de se exercitar às nove da noite. Eu, na verdade, também não. Olho em frente, para o Padrão dos Descobrimentos lá ao fundo, representante dos primeiros 25% do que me falta. Nove da noite, um vento gelado paralisa-me as mãos e o cabelo esvoaça com o vento e com a velocidade. Ouço a minha respiração bem treinada, quatro inspirações, quatro expirações,quatro inspirações, quatro expirações, quatro..meu Deus, como estou vivo hoje!, não há obstáculo que me trave, não há ninguém a ver-me, não há – já – as palavras do chefe que quase me impediam de estar ali naquele momento.

“Luís, quanto é que te falta daquilo que te pedi ontem?” – “Pá já fiz uma boa parte. Tá porreiro, mas preciso ainda de umas seis ou sete horas para acabar.” – “Preciso disto amanhã à hora do almoço pá..” - “Claro. Amanhã tou cá às sete então. Mas agora tenho mesmo de sair.” – “Tu é que sabes pá! Até amanhã”.

Até amanhã. São oito e meia, e preciso de respirar.

Quatro inspirações, quatro expirações.

Ouço os meus ténis desprezar a pedra molhada. O chão, hoje, não é nada para mim. Nada. Hoje, quem manda em mim sou eu. Não há músculo das minhas pernas que não se submeta ao sorriso que me oxigena a mente, enquanto passo pelas esplanadas interiores cheias de passageiros acomodados, ansiosos, também eles, pelo seu início de noite. Cada um o vive à sua maneira e eu, ultimamente, tenho-o vivido, meia hora por dia, saltitando velozmente pelo chão à beira-rio.

Está uma ventania, há ondas que se formam sobre a superfície escura do Tejo. Nada que me impeça de continuar o meu caminho. Um casal beija-se esperando pelo ferry para Cacilhas. Quando os vejo, já passei por eles. Não são nada para mim, ali só interesso eu, na minha marcha imparável, orgânica, satisfeita com ela própria. Fico feliz por eles, porém. Sinto algum carinho por todos os que estão ali fora ao frio, como eu. O meu dia de hoje e o seguinte passam-me pela cabeça. Sou de novo criança, vejo imagens da escola, vejo imagens do futuro, recordo viagens e amores. Parece que tudo faz mais sentido, às nove da noite junto ao rio, quando o único contacto com a terra é meio segundo de sola de borracha a cada momento.

Depois do clube de vela, onde algumas vozes solitárias arrumam as últimas quilhas, eis os Jerónimos. Os Jerónimos! Lembro-me, enquanto os meus passos inspiram toda a frescura da noite fria, amigas argentinas dizerem-me, em Roma, que tinham passeado pelos Jerónimos na sua vinda a Lisboa. Esses mesmos Jerónimos que tanto as impressionaram, são o palco fugidio da minha corrida. Sinto um arrepio de posse. Que luxo, esta corrida lado a lado com os Jerónimos. Tão mágicos para tanta gente, tão cénicos para mim. Companheiros do dia-a-dia que nem um olhar me merecem. Estão lá e eu estou aqui, ou estava, porque já percorro, quase sem tocar no chão, a rosa-dos-ventos de mármore cem metros mais à frente.

Vejo, no meu ritmo egocênctrico, os primeiros carros, estacionados na escura tira de alcatrão que alcanço em dois saltos.

Nove da noite em Lisboa.

Vidros embaciados denunciam amores proibídos. Passo indiferente, e não deixo de magicar. O que pensarão de mim aqueles casais enamorados? E serão enamorados? Imagino como me olham e comentam, “Bem! Olha-me este gajo, já viste. Às nove da noite aqui a correr. Ganda maluco.” Ou então “Porra este tipo deve gostar mesmo de correr. Deve-lhe fazer bem isto; tá melhor do que nós, aqui encafuados a fumar canhões. Foda-se, abre lá a janela. Olha para aquilo, é rápido o gajo. Já ali vai.”

E lá vou eu, tão oxigenado pela minha corrida que não me apercebo que ninguém me vê do lado de lá dos vidros. Os olhos não estão postos em mim. Os olhos miram-se mutuamente. Os amores escondidos são fugazes e intensos. Não há tempo a perder, no amor das nove da noite nas Docas.

“Já são nove, tenho de ir para casa. A minha mulher já me anda a ligar.” Este BMW está quase a arrancar. Mas há mais. Muito mais.

Há um Polo de três portas. “És tudo o que eu precisava”, diz ela, afagando-lhe suavemente os caracóis castanhos. “Nunca vi ninguém que me olhasse assim”, responde ele com ar ternurento, “e nunca pensei gostar tanto de estar assim com alguém”. E beija-a. E eu corro. E ele pensa: “És tão fácil. Achas que se gostasse de estar contigo te trazia a este recanto escuro e deixava os vidros fechados. Foda-se. Ainda por cima beijas mal.”

Estes e outros desabafos, e mais beijos, se trocam, e chegam-se bancos da frente para trás, enquanto eu sigo na minha passada indiferente, longe dos desamores das nove da noite.

Não. Eu, quando estou ali, estou comigo, entregue à minha obstinada decisão de acabar o dia a correr. Dou a volta no sítio do costume. Olho para o relógio. Doze minutos. Sorrio enquanto passo por um pescador que acaba de lançar a cana. Ontem fiz treze, neste marco. Bem me parecia que estava a correr bem. Deve ser do frio.

Inspiro com mais dificuldade no regresso. Quatro, quatro. Quatro, quatro. O Polo já se foi. Chega um jeep. Mais um beijo fugaz. E eu já passei. Ninguém me pára. Cheira-me a gasolina na bomba da Galp. Um, dois segundos. Bah! Que horror. Todos os dias esta náusea.

Mas que mal faz? Já avisto o casal do cacilheiro. Ainda lá estão e não param o beijo para me olhar. Há quanto tempo se estão a beijar? Pouco. Pouquissimo. Hoje, estou mesmo muito rápido.

A mão direita envolve congelada a chave do carro. Pelo menos assim não cai ao rio. Lá ao longe, as luzes sobre a ponte movem-se perpendiculares ao meu último esforço. Alguém a correr cruza-se comigo. E dois homens de bicicleta. Pelos vistos, ainda há cá gente a esta hora. Mas eu estou cego. Já não toco no chão.

Os restaurantes estão cheios e os vultos que se sentam às mesas são setas no canto do meu olho. Só vejo o fim. Faltam cem metros. Como vôo!! Tenho de aproveitar. Dou tudo o que tenho, sem esforço. Hoje, nada me custa. Cem metros. Quatro inspirações, quatro expirações. Cinquenta. Dez. Cinco. Com uma última passada regresso ao ponto de partida. Páro o cronómetro e respiro fundo o ar puro do descanso. O coração ainda esvoaça quando olho para o mostrador. Vinte e quatro, trinta e nove. Vinte e quatro, trinta e nove!! Menos um minuto que ontem!! Ahhh que bom!!

Hoje, foi uma grande corrida. Apetece-me ir dar uma volta a qualquer lado. Estou bem disposto. Hoje, como sempre, a corrida deixou-me alegre.

Estava frio, escuro e ventoso. Tinha roupa leve, poucas preocupações, pulmões abertos e a vida pela frente. Tinha espaço só para mim, pernas que me obedeciam e uma mente a divagar.

Hoje senti-me bem. Eu e o meu corpo, um só. Correr, mesmo em esforço, é sempre bom. Sempre duro, sempre íntimo, sempre em luta contra nós. Sempre bom. Mas hoje, hoje ainda foi melhor.

E amanhã tenho a certeza que vai ser igual.

14 comments:

Mr B said...

tens q parar...sempre a correr a voar... afinal porquê esta súbita vontade de "viagens" corres atrás de q? o q te levita a mente?

Anonymous said...

Apesar de ter soltado uma gargalhada quando disseste "estava um gelo hoje" (como eu costumava dizer antes de viver aqui), com a tua descrição linda de um jogging à beira-rio por momentos estive em Lisboa a matar saudades. E já agora não resisto: RUN, FORREST! RUN!

Os Embroadinhos FC said...

"A mão direita envolve congelada a chave do carro. Pelo menos assim não cai ao rio."

Esse episódio foi muito bom! Ver o teu ar incrédulo a olhar para a tua chave enquanto rebolava para o rio...

Maria Strüder said...

Como escreves bem!
Ao ler-te revivi mentalmente todos os teus passos!
Pequenas sensações físicas prazeroras tens ai o teu bocadinho de vida.
Foi bom sentir-te através do texto.

Carolina* said...

"2 minutos apenas"!
Hoje saltei esses "2 minutos apenas" que destino a um bom espreguiçar antes de saltar da cama para a rotina, já instintiva e completamente isenta de qualquer pingo de racionalidade, que é o meu acordar de manhã.
Alguém explicou um dia que os músculos precisam de ser estirados ao máximo após tanto tempo de repouso, caso contrário não recuperam o seu tamanho. 2 minutos são o bastante! Mas hoje pareciam demais!
O corpo é o espelho da alma? Ou será a alma o espelho do corpo?
Saltei da cama e senti, mais que nos outros dias, o peso do corpo até então inerte e perguntei-me...porque será o de hoje um dia diferente?
Seria o teu dia de amanhã igual se não tivesses escrito este post hoje?
Dizes que corres contra a gravidade, mas sentes mais que qualquer um cada paso que dás! Devoras, absorves e trasformas em eternidade tudo o que consegues apreender no curto pedaço de tempo que o teu pé demora a desenhar um círculo no ar! Parece-me que, mais que ninguém, estás cá na terra e tentas sempre levá-la contigo para o ar!!
Já te vi passar por mim a voar, sim, enquanto desbravava qual Vasco da Gama este Bolg! Agora não tenho dúvidas que o teu combustível está na terra!
Dizes que estás cego e que não tocas no chão! Não concordo! E também tu devias ser estirado todos os dias... Não sejas tão rápido! Prolonga esse único contacto da sola de borracha. Quanto mais tempo estiveres na terra, mais tempo podes voar!Estiraste a tua mente na rotina de hoje! E amanhã tenho a certeza que não vai ser igual!

Já sei porque foi o meu dia de hoje diferente! Não fui ao ginásio! Corri 2 minutos a mais no Parque das Nações - 1º Treino de Voo!!!

El-Gee said...

Atrás de que é que eu corro..boa pergunta..essa pergunta, tó, fez-me questionar algumas coisas. obrigado. E nao, nao tenho de parar.

(sem desprezo para os outros comentários. zé, é sempre benvida a tua visita NYquina, bem como a do nosso amigo docinho, que por certo se riu que nem 1 perdido no dia em q a minha chave caiu ao rio. maria, ainda bem que te posso tocar, de alguma forma. e carolina: benvinda às 1000 vozes)

Bhagavad-gitá said...

com tanta corrida esqueceste te dos meus anos ;)

El-Gee said...

oops..

Bhagavad-gitá said...

Ooopssps nada ! pavalhão

Bhagavad-gitá said...

Não há ninguem que possa estar a namorar a beira tejo sem estar a encornar a mulher ou a querer "pinar" uma gaja que beija mal ?!?! Ai ai .. Olha que eu acho o spot do mais perfeito romantismo. Principalmente quando o rio parece bruma e os candeeeiros reflectem a luz amarela pálida por entre nevoeiro de inverno!

rosé mari said...

faço exactamente o mesmo (correr aí ao fim da tarde sempre que tou a recuperar de uma lesão), faço-o sempre de chave na mão (trocando-a para a mão oposta à da margem do rio), penso sempre no mesmo quando passo por aquela série de microclimas parados respeitosamente na diagonal("estes gajos devem achar que sou doido", tirando os carros que têm uma pessoa, e por vezes um casal de alguma idade, a dormir, pois aí o sentido do pensamento de loucura inverte-se), desvio-me das canas e dos pescadores num ziguezague (com medo que um movimento mais desatento enfie um anzol na minha boca), insisto em correr sempre por cima daquela passadeira branca, fazendo razias aos espelhos quando necessário (porque aquele é o meu tartan) e quando, por uma única vez, corri a essa hora mais tardia, senti exactamente o mesmo em relação às pessoas nos restaurantes. não consigo é descrevê-lo com a mesma facilidade e fluidez com que tu o fazes!!

El-Gee said...

Tem piada, temos hábitos de corrida muito semelhantes então.

Também troco sempre a chave de mão com essa lógica e esses velhos solitários provocam-me a mesma reacção. Não falei deles aqui porque no dia de "Quando corro nas Docas" eles já não estavam lá, com os seus livros enrugados. Insisto também na passadeira de pedra branca, e, quando alguém com a mesma mania vem em rota de colisão, geralmente desvio-me eu quando vou em sentido de Belém e espero que, no regresso, sejam os outros que se desviem.

Razo os espelhos com desdém por aqueles condutores que, apesar de totalmente inocentes, me irritam porque, ao passar pelos seus carros, considero que estão a desrespeitar aquele espaço de corrida (que, na verdade, não é espaço de corrida nenhum). Serpenteio teimosamente entre um espelho mais sobressaído e o abismo que o rio representa, provocando os rios mas alimentando um sorriso desafiador, que escarnece dos condutores dos carros mal estacionados e lhes explica que não são suficientes para me parar.

Esses e outros pensamentos partilhamos. Tem piada. Não sou nada exclusivo.

(E obrigado pelo elogio à escrita. A fluidez é consequência da genuinidade, porque raramente corrijo o que escrevo.)

Anonymous said...

Ao ler este texto.. corri ao teu lado... imaginei cada passo, cada pensamento que tiveste, cada imagem, cada cenário!

Adorei a corrida!

柳 绅 龙 said...

Ja e tarde e continuo no escritorio.
Comecei o meu estagio ha dois dias e ainda pouco ou nada me deram para fazer, mas por ca tenho de ficar.
Passei o dia a lutar contra o sono sentado a frente do computador a procura de coisas para fazer.
Fartei me de pensar que ainda nao fui correr desde que cheguei.
Fartei me de pensar que se nao estivesse aqui poderia estar a correr.
Fartei de pensar como corro do Cafe Inn ate as padrao dos descobrimentos e volto.
Fartei de rever a marca do lado esquerdo das escadas do Padrao dos descobrimento em que toco sempre antes de voltar.
Fartei me de estar farto, pedi licensa e fui correr.
Fui correr como me lembrava que corria,
Fui correr ate ao padrao e voltei,
Fui correr como gosto de correr.
Mas acabei de correr tao descansado como antes de comecar.
E foi ai que percebi.
Ainda estou no escritorio,
e ainda estou em Xangai.

Por uns largos momentos pareceu-me que nao.
Obrigado LG...
Gd abraco.
Kelly