Tuesday, December 02, 2008

2x25

Hoje apetecia-me desesperadamente nao dormir. Nao ter sono. Apetecia-me nao ter sono e fazer exactamente aquilo que me apetecesse pela noite fora, de agora até à meia-noite, depois daí até à uma, depois da uma às duas, das duas às três, e das três às quatro, depois das quatro às cinco, e às cinco poder ver calmamente o nascer o dia até chegarem as seis, e às seis tomar um duche, fazer o pequeno-almoco com calma, vestir o fato, e sair de casa para o trabalho às sete, impecável, energético, pronto para mais um dia a 100%.

Era exactamente isso que me apetecia, hoje, e já me tinha apetecido ontem, e antes de ontem, e já nao sei até há quantos dias atrás posso recordar esta vontade, mas por mim acho que nunca teria dormido na vida. Bem vistas as coisas, teria feito o dobro do que fiz, o que quer que tenha feito.

Dormir, essa limitacao absoluta, frustra-me totalmente. Mesmo o prazer do adormecer quando estou cansado e a energia do acordar depois de uma noite bem dormida sao consolacoes demasiado fracas para a própria perda de tempo durante o sono.

Pudesse eu nao dormir, e teria mais uma vida para viver.

Teria, neste momento, 50 anos, e uma esperanca de vida de cerca de 160.

O que eu nao faria, com 160 anos..!

Bom,

vou para a cama.




mish/mash

Faz mala, check-in, aterra, desfaz mala, hotel, desotel, casa, nao-casa, faz amigos, despede, aviao, mochila, autocarro, adeus, olá, onde é que eu estou?, chuva, sol, aviao, quanto é que custa o passe semanal?, renda, conta de banco, adeus, olá, tem internet?, vista, nao vista, vem connosco jogar futebol aos sábados!, descricao de funcoes, almoco, jantar, 15 dolares por noite, avaliacao, tenho uma amiga lá liga-lhe se quiseres!, natal, pascoa, uma semana, carro, aviao, free-shop, empacota, envia, quando é que vens a casa?, corre no parque, local, mergulha na praia, aviao, chuva, tome lá o seu café do costume, vou embora, benvindo!, quando voltas?, excesso de peso, bilhete de metro, 1000 libras por semana, nunca mais te vou ver, quanto custa?, este casaco nao cabe na mochila, este sítio é feio, tu nunca gostaste mesmo de mim pois nao?, ja nao preciso deste guia, seis meses, check-in, check-out, tás cá na pascoa?, amigo secreto, vou ser promovido, ordenado máximo, 10 da noite, tenho saudades tuas, best regards, nihau, gracias, tem vagas para amanha?, sem um tostao na conta, overbooking, o avo está melhor?, skype, frequent flyer, importas-te de ser o meu representante fiscal?, national insurance, welcome, turista, nada a declarar, y hasta cuándo cree usted que podemos seguir en este ir y venir del carajo?, pergunta o capitao, o piloto, o motorista, a minha mae, eu proprio, toda la vida, nao, Florentino, mas por agora estamos bem, confusos, mas bem.



black-white-orange


Os Penguin Classics estao com edicoes absolutamente maravilhosas. Há todo o tipo de Penguin Classics, em termos de aspecto, e, na maioria dos casos, sao objectos deliciosos, mas neste caso em concreto estou-me a referir às edicoes com a banda preta em baixo, uma faixa branca no meio e uma pintura, da época à qual a obra se refere, na parte superior. Estas edicoes sao objectos de arte por mérito próprio. E nao é só a escolha cuidadosa das pinturas e a sua conjugacao com o conteúdo dos livros e com o próprio esquema de cores preto-laranja-branco da capa, é a textura dos livros, também, rugosa e mate na parte preta e, depois, suavemente plástica e ligeiramente brilhante na parte da pintura.

Já há vários meses que estas edicoes me têm chamado a atencao e que as percorro, secretamente, com dedos cuidadosos, de cada vez que entro numa livraria, mas foi noutro dia, quando comprei uma compliacao de short-stories do Herman Melville chamada Billy Bud and Other Stories que me apercebi do valor que tinha nas maos - o vendedor pegou no livro, virou-o, revirou-o, passou-o pelo laser, olhou para mim, e disse "You know, it's not only a great book, it's such a great object, too, isn't it?"

Estou aqui a falar de objectos que têm um valor absolutamente material. Istao sao livros que eu facilmente comprava só para ter. É evidente que nao me interessa ter um livro se nao o ler, mas apectece-me te-los todos, poder olha-los todos os dias, ir a uma estante e tirar um arbitrariamente, perder minutos na sua capa, abri-lo e reabri-lo indefinidamente, revira-lo nas minhas maos, afaga-lo, sentir o plástico luminoso da imagem passar à superfície porosa da parte preta. Te-los, a todos, e escolher um todas as semanas, ou todos os meses, ou todos os dias, e te-lo na mesa-de-cabeceira para ler, e quando acabasse voltar a po-lo na estante - a minha estante - e tirar outro para a semana seguinte.

O que me fascina, apesar de tudo, nao é a componente material, é a beleza dessa componente quando se tem em conta o valor do que o próprio objecto encerra, isto é, o texto. É assombroso o que estas edicoes conseguem: criar, mesmo perante o valor incalculável dos textos que encadernam, livros que valem também - e muito - enquanto objecto.

Talvez até me permita ir ao ponto de dizer que cada uma destas edicoes sao duas obras de arte.

Eis alguns exemplos (o último dos quais foi o primeiro - e de longe o mais soberbo - livro que li este ano):





(Sem ser minha intencao entrar aqui com materialismos, porque o valor destas edicoes ultrapassa o que seria um preco razoavel a pagar por elas, aproveito para lembrar que estas edicoes - precisamente estas, as de banda preta, tira branca e pintura no cimo - sao as edicoes mais baratas de qualquer livro. Nesse sentido, estamos, quanto a mim, perante um fenómeno incompreensível, de tao bom que é.)

Monday, December 01, 2008

porque é que, entre outras razoes, vale a pena passar metade de uma manha na Brunswick Street de Melbourne sentado num café


"That people were mainfold creatures didn't come as a surprise to the Swede, even if it was a bit of a shock to realize it anew when someone let you down. What was astonishing to him was how people seemed to run out of their own being, run out of whatever the stuff was that made them who they were and, drained of themselves, turn into the sort of people they would once have felt sorry for. It was as though while their lives were rich and full they were secretely sick of themselves and couldn't wait to dispose of their sanity and their health and all sense of proportion so as to get down to that other self, the true self, who was a wholly deluded fuckup. It was as though being in tune with life was an accident that might sometimes befall the fortunate young but was otherwise something for which human beings lacked any real affinity. How odd. And how odd it made him seem to himself to think that he  who had always felt blessed to be numbered among the countless unembattled normal ones might, in fact, be the abnormality, a stranger from real life because of his being so sturdily rooted."


Philip Roth, American Pastoral (1997)

Pobre (?) Jorge

Conheci na semana passada um tipo engracado numa livraria em Pott's Point chamada Macleay Bookshop. A Macleay é uma livraria intimista, onde nas quentes tardes de domingo uma brisa fresca entra pela pequena porta de vidro entreaberta e, lá dentro, os acordes de compositores russos do século XX inebriam o lote de vagabundos, curiosos, excêntricos e intelectuais que se rocam uns nos outros no confinado espaco, inclinados sobre apertadas estantes onde todo um mundo se condensa em capas todas deitadas na vertical.

Estava lá um mulato a legericar um livro qualquer do Pablo Neruda e eu meti conversa, nao fosse ele explicar-me melhor o que faz do Pablo Neruda o Pablo Neruda (porque eu ainda nao percebi), e, conversa puxa conversa, contou-me que se chamava Albert e que a família dele era orginalmente de Pheling, o que obviamente me interessou; acabei por ficar uma meia hora à conversa com ele, no fim da qual me quis contar uma história que lhe tinha sido contada a ele, por sua vez, pelo seu avo, que transcrevo de memória e que aparentemente se passou algures nos anos 40 numa ilhota do arquipélago de Pheling, chamada Malabins, ainda o Albert nao era nascido:

"Havia um tipo em Malabins (o Jorge, ninguem gostava muito dele) que tinha a mania que era filantropo. 

Um dia, ganhou a lotaria nacional (Malabins é uma das ilhas mais pequenas no arquipélago de Pheling) e fechou-se em casa sem saber o que fazer ao dinheiro. O Jorge sempre espalhou pelos quatro promontórios que "se fosse rico, dava o dinheiro todo aos pobres" e quando se viu despojado da nova fortuna pelo peso da reputacao das barbaridades que dizia, fugiu para a sua cabanita no interior e trancou a porta por fora. 

Malabins nunca foi uma ilha rica nem pacífica e a fortuna nas maos do Jorge nao lhe poderia sobreviver muito, pensava ele, até porque o Wilson, o padeiro, para alem de ser o presidente do sindicato, tinha em seu credito uma promessa do Jorge de um dia, se fosse rico, lhe comprar o negocio e ajudar à sua reforma, e o Jorge agora andava todo acagacado que o Wilson lhe viesse cobrar as dividas de trigo mal moído.

Pensou, pensou, pensou, e tres dias depois saiu de casa com as notas todas no bolso - molhos de notas de 50, impecaveis, amarelas, novinhas em folha, à prova de agua como todas as notas de Pheling (que, apesar de tudo, é um arquipélago) -, pegou na bicicleta e guiou directamente montanha abaixo para a rua principal, na altura uma estradiola de pedra quinhentista - nada acontecera naquela rua desde a chegada dos portugueses - entre palacios coloniais descascados de cor e casebres de madeira mal parida.

"Que merda de vilario", pensou o Jorge, "e que merda de consolacao, ser o gajo mais rico deste buraquedo."

(É espantoso o sentido tragi-cómico do Jorge, tendo em conta que Granding Island era o máximo de civizacao que alguma vez conhecera.)

Pousou a bicicleta numa esquina, enrolou um cigarrito, levou as maos aos bolsos e caminhou para o meio da rua. Era meio-dia em Malabins e a ilha parecia estar ali toda caída. Bicletas para cá e para lá, um ou outro carro sem escape, lojecas abertas, bancas de fruta, vendedores de peixe, filas para o correio e tres ou quatro policias a soprar moscas da ponta dos narizes - narizes suados e incómodos, porque na única rua alcatroada de Malabins faz mais calor do que nas montanhas da ilha, e as montanhas da ilha sao as mais quentes do arquipélago.

O Jorge avancou para o meio da pastelosa movimentacao do dia-a-dia, posicionou-se exactamente no centro da rua e, sem parar, avancando irreverentemente rua abaixo, levou uma mao a cada bolso, pegou num maco de notas com cada mao, e atirou-as ao ar. Em silencio. Nao se virou para ver o que se passava atras dele, enquanto, imaginava ele, uma fortuna que já nao era sua bailava em zigue-zague pelo ar abaixo; mas viu a cara das pessoas mesmo à sua frente, paralisadas por um momento, e depois, bocas abertas, sem som, olhos pasmados, viu como se dobraram e contorceram e correram passando por ele.

O Jorge nao precisou de olhar para tras para ver como os pobres diabos se atiravam que nem caes à fortuna que ele lhes deixava, nem precisava, porque tinha mais notas e mais passos para dar, e a cada passo lancava mais dois macos, mais uma fortuna, e deu tantos passos como tinha notas, até chegar ao fim da rua, e uma vez lá chegado pediu uma limonada com a unica nota que tinha (guardada para o efeito), deixou o troco ao fiel dono da banca - que nao tinha abandonado o seu posto de venda apesar da fortuna que lhe voava em frente à janela - e caminhou de volta até à bicicleta, indiferente ao orgasmo de ganancia e miséria que se passava ao seu lado. Montou a bicicleta e voltou para casa, para a montanha."

Aqui, o Albert calou-se, sorriu, e disse que tinha de ir embora. Achei esta história deliciosa. Nao me pareceu que ficasse por ali.

- Albert, e depois? O que foi dele??
- Olha, depois, a malta que recolheu o dinheiro sentiu-se mal com aquilo tudo e, acabado o frenesim da recolha, olharam todos uns para os outros com ar de culpa, juntaram-se e, com o Wilson (o padeiro) à cabeca, subiram até casa do Jorge para lhe dar o dinheiro de volta.
- Todos??
- Todos!
- E o Jorge?
- O Jorge? O Jorge disse que nao, que era um tipo honrado, que sempre dissera que queria ajudar a ilha, e nao queria o dinheiro.
- E eles foram embora?
- Foram. Foram todos embora, mas naquele dia um ou outro fez o mesmo que o Jorge: pegou em tudo o que tinha, foi para a rua e atirou as notas ao ar - as que tinha recolhido do Jorge mais as proprias poupancas.
- E alguem apanhou?
- Claro! Pareciam caes outra vez.
- Durou pouco o remorso..
- Nem por isso. Depois disso, ao fim da tarde, cinco ou seis pessoas fizeram o mesmo.
- O mesmo?? E toda a gente veio, outra vez?
- Toda a gente. E no dia a seguinte foram mais, e no dia a seguir ainda mais, às tantas havia mais gente a atirar notas do que gente a recolher.
- Mas se as pessoas estavam a juntar as suas poupancas às notas do Jorge, toda a economia da ilha, às tantas, estavam a esvoacar rua abaixo.
- Mais ou menos isso.
- Que loucura!! E depois?? Como é que isso acabou??
- Olha, passada uma semana, o Jorge, que soube do que se estava a passar porque lho contou uma mulatita que lhe achava piada e o ia visitar todos os dias e o aliviava, foi à vila e convocou uma reuniao geral para o dia seguinte, em que os poucos que, naquela altura, acumulavam todas as notas da ilha (os unicos, portanto, que nao tinham atirado nada ao ar e que passavam os dias a recolher as notas de que os outros se livravam) se juntariam para, tambem eles, atirar as notas todas ao ar, e assim acabar com aquela loucura.
- E eles foram?? Quer dizer, no fundo esses eram os mais gananciosos. Ele conseguiu convence-los?
- Sim. Tinha o apoio do Wilson, que naquela altura ja nao tinha um tostao, tal como a maioria da malta.
- Mas porque é que toda a gente se meteu nessa loucura?
- Sei lá. Isto sao histórias que o meu avo me contava. Eu nunca fui a Malabins, sou de Granding.
- E depois?
- Olha, no dia seguinte a vila juntou-se toda para assistir ao arremesso final das notas. O Jorge meteu-se no meio da rua, levantou um braco, e os tres ou quatro tipos que tinham as notas todas da ilha pegaram nas sacas cheias de notas e atiraram-nas todas ao ar!
- E o dinheiro voou todo pela ilha fora??
- Nao. Nesse dia nao estava vento. 
- Entao?
- Basicamente, o Jorge pegou nas sacas, encheu-as uma a uma com as notas que dormitavam no chao, carregou um carro, que entretanto tinha pedido emprestado, com elas, guiou ate ao porto, encheu um barquinho que tinha com os sacos, e remou dali para fora, sem olhar para tras. Nunca mais la pos os pes. Num dia deitou a lotaria toda fora, uma semana depois tinha todas as notas da ilha no bolso. E nunca tinha deixado de ser esse o plano, gosto eu de imaginar. Mas isso ja nao sei.
- E ninguem foi atras dele?
- Tambem nao sei. Diria que nao.
- Nao sabes como?
- Nao estava lá. Mas se me perguntares, acho que toda a gente estava meio hipnotizada com aquela loucura toda.
- Mas o teu avo nao te contou essa parte?
- Nao, o meu avo nunca me contou mais pormenores. Mas nunca mais voltou a Malabins.
- Tambem saiu de lá, o teu avo?
- O meu avo era o Jorge.

Nesta altura, desculpou-se por ter que ir, virou-me costas, e desapareceu porta fora, deixando-me entre On the Road e um livro de contos do Melville, escolha que, apesar de difícil, foi diplomaticamente resolvida com a compra dos dois.
 

a pastoral, e tal

Passei ontem por uma fase difícil quando cansado de uma noite mal dormida um dia inteiro às voltas as pernas moídas de tanto caminhar as solas de borracha gastas e as trombas gigantes nascidas de uma irritante dor no pescoco por dormir de cabeca torta num aviao decidi que o banco gasto de um comboio sub-urbano às onze da noite era o lugar ideal para acabar a Pastoral Americana e li as suas últimas dez páginas apenas para perceber que apesar de conter maravilhas inimagináveis em quase cada página se trata de um livro inacabado.

Assim. Assim mesmo, como a este texto faltavam as vírgulas, assim, à Pastoral, falta um capítulo, dois, talvez três, ou mais ainda, mais, quantos forem necessários, cinco, até, para que o grande livro que é se pudesse transformar numa obra-prima.


(A forma verbal "falta" nao está distraídamente na mesma frase que a forma verbal "pudesse". Porque falta, de facto, algo à Pastoral, e o que falta nao é algo que possa transformá-la numa obra-prima, porque a Pastoral já foi escrita. Portanto, embora falte algo, hoje, no presente - porque quem lê, lê no presente - essa falta nao pode ser modificada, porque o que está escrito, está escrito (já foi escrito), e os livros nao sao escritos a lápis. E portanto, temos "pudesse", e nao "possa". Isto é, o que lhe falta, sempre faltou, e falta hoje, também, mas nunca, desde que comecou a faltar, pôde, nem pode, nem poderá, essa falta ser modificada. Curiosa, a arte: existe imutável.)
 

Sunday, November 23, 2008

Que género




(Tomás,) enquanto o dia nao chega


"The shark passed slowly , first the slack jaw with the triangular splayed teeth, then the dark eye, impenetrable and empty as the eye of God, next the gill slits like knife slashes in paper, then the pale slab of the flank, aflow with silver ripplings of light, and finally the thick short twitch of its hard tail.


It's aspect wass less savage than implacable, a silent thing of merciless serenity"

Peter Matthiessen, Blue Meridian



(dia 7 de Dezembro é a minha vez)


Wednesday, November 19, 2008

q tristeza

finalmente instalei o skype (com um atraso que me garante nomeacao automatica para a categoria de Anormal do ano), e agora ninguém me atende
 

Tuesday, November 18, 2008

Blue Meridian

Ontem comprei o meu primeiro Matthiessen. Liguei a um dos meus melhores amigos, que logo me respondeu enfurecido que era "uma estupidez bárbara" eu gastar o meu "dinheiro todo num quadro". "Ainda por cima", acrescentou, já irado, "os impressionistas eram uns bêbedos. Compraste os gatafunhos de um bêbedo!"

O último pintor que este meu amigo consegue tolerar é o Courbet, e a partir daí, segundo a crenca dele, a história da pintura afogou-se em alcool.

"Matthiessen pá", tentei eu interromper, "Matthiessen", e ele continuava, "Já ouvi pa!! Já ouvi!!", e discorria, furibundo, "uns bêbedos pá! Uns assassinos da estética! Franceses de merda, esses gajos e mais o fauvismo! És um alarve! Devias morrer afogado em absinto! Nunca me pagaste um copo e agora empatas nao sei quantos milhoes numa merda dum quadro!"

- Mas qual quadro porra. Seu idiota!
- Idiota és tu!! Quanto é que pagaste por isso?
- 20 dolares. Pá eu comprei um Matthiessen, nao foi um Mat..
- 20 dolares??? 20 dolares? Entao compraste uma merda dum poster??
- Nao pá, comprei um l..
- Porra, que susto. Achei que tinhas comprado um quadro mesmo. Que ingenuidade a minha. Como se tu tivesses dinheiro. Entao que reproducao compraste? Isso é tudo a mesma merda..
- Pá eu nao comprei um quadro pá, nem um poster, comprei um livro, um livro pá, do Matthiessen, Peter Matthiessen, o escritor.
- Foda-se.
- Foda-se o que?
- Percebi Matisse.
- Pois eu sei.
- Que idiota.
- Pois.
- Engoles as palavras. A culpa é tua!! Falas para dentro! Aprende a falar!
- Nao percebeste nada!
- E nao me avisavas?? Tava paqui a babar-me todo já pá, nem tava a perceber onde tinhas ido arranjar dinheiro. Pensei que tinhas comprado uma aguarela, vê lá, uma folha qualquer rasgada de um caderno antigo do gajo enquanto era estudante.
- Tu és uma besta.
- Ouve lá, mas quem é esse gajo? Que livro compraste?
- Peter Matthiessen. Comprei o Blue Meridian. 
- Nunca ouvi falar disso. Mas o nome soa familiar. É o que escreveu  o Snow Leopard?
- É. Nunca li.
- Pois nem eu, mas é o unico desse tipo de que ouvi falar..
- Pois, eu tambem so tinha ouvido falar desse. Pa este gajo escreveu imensos livros. Este é sobre tubaroes - uma expedicao em que o gajo se meteu nos anos 60 em busca de tubaroes-brancos. Na altura o mergulho nao era como é hoje.
- E que tal?
- Pá e optimo. Era mesmo o que eu queria. É incrivel. Parece feito para mim, este livro. Era mesmo o que eu gostava de fazer.
- Mas ja acabaste a pastoral?
- Pá nao. Vou a meio.
- Entao tas a ler os dois?
- Comecei a ler este no comboio à vinda para casa e leio a pastoral à noite..
- E nao te baralhas um bocado..
- Um bocado. Nao sei. So passou um dia. Este é nao-ficcao. Nao tem nada a ver. Mas acho que vou comecar a ler só este e deixar a pastoral a amadurecer durante uma semana.
- Entao mas e o Swede??
- O Swede Levov?
- Sim!
- Perguntaste-me o que vai ser do Swede Levov durante uma semana?
- Sim! Que vais fazer ao gajo?
- Ao Swede Levov??!
- Sim!!
- Eh pa, o Swede Levov que sa foda!

Desligou, ofendido. 



"Having no air bladder to buoy them and lacking a true breathing apparatus, most sharks must draw oxygen from the water pouring through their open jaws and washing over their gill surfaces, and are doomed to keep swimming, open-mouthed, from birth to death. Because they do not weigh much more than the water they displace, their movements seem effortless; they glide forever through the seas like missiles lost in space"

Peter Matthiessen, Blue Meridian (1971)

uma pena imersa num boiao cheio de tinta

Filipe Canas é um tipo curioso, ao ponto de esgotar a definicao: é curioso enquanto sujeito, ávido de conhecimento e desenvolvimento intelectual, e curioso enquanto objecto, isto é, digno de curiosidade alheia ele próprio.


Como estudioso que é, Filipe Canas nao é o tipo de pessoa que recusa um pedaco de conhecimento, mas, no caso da Literatura, parece-me que descobriu uma adicao especialmente importante ao campo que elegeu como prioridade da sua busca de conhecimento: as relacoes internacionais - e, numa versao expandida (quase por definicao) do tema, as relacoes humanas. 

É evidente que, como estudioso das relacoes humanas, Filipe Canas passou do estudo das relacoes internacionais puras e duras para livros de outras ciencias sociais, tendo até desenvolvido um espantoso (mas nao surpreendente) interesse pela economia.

Mais tarde, enveredou pela filosofia, e parece agora ter encontrado na Literatura - e na forma como a Literatura retrata, nas suas palavras, "aspectos únicos do Zeitgeist de certas épocas" e no papel que tem "na história das ideias e na descricao dos ambientes sociais" de certa época, ao ponto de se tornar "um meio priveligiado de acesso ao mundo" - a sua nova ferramenta de análise.

Eu tenho uma certa reserva em relacao a esta abordagem utilitarista à Literatura.

Como é lógico, nao discordo de Filipe Canas quando diz que a Literatura é um excelente retrato de determinada realidade, mas parece-me que isso é apenas uma das grandes virtudes da Literatura, entre tantas outras que, para quem se foca maioritariamente numa só, acabam por ser desperdicadas.

A Literatura enquanto fonte de prazer, por exemplo, nao só o prazer de uma boa história como o prazer de uma boa personagem, uma boa frase, um bom pensamento, uma boa associacao de palavras. A Literatura como fonte de escape, como fuga ao quotidiano para quem nela e com ela embarca em realidades paralelas. A Literatura como instigador de um processo fluído de interaccao com outra pessoa, com quem a escreve, naquela estranha mas poderosa simbiose leitor-autor, separada, nos momentos mais sublimes, apenas por um lapso temporal entre quem escreve e quem lê. A Literatura enquanto companhia. A Literatura enquanto arte per se. A Literatura enquanto ela própria. A Literatura enquanto objecto de plácida contemplacao. A Literatura enquanto Beleza. E por aí fora.

Filipe Canas está neste momento a usar a Literatura como utensílio de luxo para chegar a um objectivo, a meu ver desprezando (por certo consciente disso) o que eu considero a principal característica de um bom livro, que é a sua identidade própria independente de qualquer tipo de contexto. O manuseamento utilitarista de uma grande obra de ficcao acaba por despoja-la da sua validade enquanto realidade, realidade essa que por vezes chega a ser quase organica, mais orgânica ainda do que o papel onde está impressa.

É certo que a motivacao que cada pessoa tem para ler um livro pode assumir tantas formas como o tipo de livros que existem. O universo literário é inifito, um "biblioteca de Babel", como lhe chamaria Borges, e, como tal - se tomarmos essa definicao como válida - tao inifinito como o conjunto de todas as verdades. Nesse sentido, toda esta discussao é inconsequente, porque na biblioteca de Babel todos os livros sao possiveis, e numa tal biblioteca nao é necessário debater a forma correcta de utilizar (ler) um livro, porque para cada forma correcta de ler (para cada tipo de leitor) há uma inifinidade de obras à disposicao que servem precisamente o propósito de cada leitor.

No entanto, e sem querer alongar-me demasiado neste debate de como se deve ler a boa Literatura, nem muito menos tentar definir o que é boa Literatura - já que isso sao duas questoes para as quais nao só nao tenho resposta como nao tenho conta de quantos dias já perdi à procura dela - provoca-me um certo amargo na consciência observar a evolucao de Filipe Canas enquanto leitor de Literatura.

Se nao estou em erro (uma pessoa nao sabe tudo sobre os seus amigos - alias, sabe muito pouco) Filipe Canas está pela primeira vez a levar Literatura a sério, e a mim, que nao sou, nem de perto (aliás, nem quero ser) um especialista no tema, parece-me que está a iniciar o seu caminho pelo túnel mais estreito.

Mas isto é o que eu penso e, como eu e Filipe Canas nao somos a mesma pessoa, o que eu penso tem pouca importancia, já que na biblioteca de Babel há lugar para todos.
 

Monday, November 17, 2008

Pedro e a Iguana


Dede que leu o Moby Dick aos 13 anos, Pedro quis ter uma iguana chamada Melville. É espantoso, o que se processa no cérebro de uma crianca de 13 anos. Parece, espantoso: gostou do livro, achou piada ao nome do autor, e quis dar o seu apelido a uma iguana. É incompreensivel o sonho de Pedro, se nao percebermos que o desejo de ter uma iguana e o desejo de lhe chamar Melville nao se processaram ao mesmo tempo no seu cérebro. Primeiro, quis ter uma iguana (aos 12), e só depois, quando leu o Moby Dick e pousou o livro depois da ultima pagina (ou talvez antes), se apercebeu de que nada o faria mais feliz do que uma iguana - verde, rugosa, de língua veloz e pastosa - chamada Melville. 

(Eu imagino-a presa por uma trela, pelo pescoco, muito quieta junto a um poste, de olhos pretos a contorcer as pupilas em todas as direccoes, a lingua a entrar e a sair da boca a um ritmo regular, como a de um velho a babar-se; mas isso nao tem nada a ver com o Pedro, com iguanas, com Melville, a iguana do Pedro, com Melville, o autor, com Moby Dick, a baleia, ou com Moby Dick, o livro, que aliás nem sequer li.)

(Ha ainda a questao do sexo de Melville - Melville o iguana, ou Melville a iguana? Para mim, é Melville a iguana, mas é macho. Nao sei se o Pedro pensou nisto. Tambem nao interessa - ele nunca chegou a ter uma iguana: a casa dos pais nao tinha espaco e a mulher com quem casou mal de lá saíu tinha medo de répteis.)

(Obviamente, é dada ao leitor a liberdade de multiplicar os cenários nesta história. Um que me acaba de ocorrer, por exemplo - e depois disto nao dou mais ajudas - é Pedro, Melville e a Iguana, em vez de Pedro e Melville, a iguana. Este cenário muda tudo, sem mudar quase nada.)

(É espantoso, o que se processa no cérebro dos adultos.)
 

Thursday, November 13, 2008

The Comfort of Strangers - crítica em duas linhas e dois parentesis

Mas que boa surpresa foi este livrinho, meu deus.


McEwan escolhe as palavras quase tao bem como a minha avó escolhe pêssegos numa mercearia. (Isto - uma vez que estejamos abstraídos da excentricidade da comparacao - é um grande elogio.)




(À minha avó.)






(Já agora, em relacao ao titulo: "parentesis" nao é "parentes". Portanto, sim, poderiamos mudá-lo para "(...) crítica em duas linhas, três parentesis e um parente". Mas isso seria fugir ao tema que nos traz aqui hoje.)
 

Wednesday, November 12, 2008

Mais outro post em que perdi o moral da história ainda o texto ía a meio.

Vários assuntos me podiam ter preocupado e estimulado intelectualmente durante o dia, tal como analisar comparativamente a superioridade moral das partes envolvidas no actual confito na DR do Congo, ou frustrar-me perante a infinitamente tardia reaccao dos media perante um conflito que ja dura ha anos sem fim, ou tentar compreender melhor a relacao desta guerra com o genocidio do Ruanda, analisar o papel de Paul Kagame e do exercito ruandes nisto tudo, debater internamente se faz sentido apoiar moralmente uma rebeliao tutsi ha anos espezinhada na regiao, frustrar-me perante a insistencia da comunidade internacional em posicionar-se sempre do lado dos governos eleitos sejam eles quais forem, recolocar-me a questao se se trata mesmo de uma guerra étnica ou de uma guerra por poder e recursos naturais, enfim, podia ler e ler paginas e paginas na internet sobre este e outros conflitos, analisar e re-analisar, voltar ao início da minha busca incessante do porquê dos porquês da maior parte do que acontece em África mas, no meio disto tudo, a unica questao que me preocupou durante todo o dia é que o responsável máximo pelas centenas de milhar de refugiados que este conflito criou é o incompetente do Gutereres.

Impedido de trabalhar durante umas horas - felizmente esta preocupacao so me assaltou mesmo no final do dia - lancei-me numa busca pela internet e, entre outros temas de interesse, li alguns discursos do Alto-Comissário (nada maus, admita-se), e encontrei este magnífico e incrivelmente límpido documento que define as variáveis que fazem de um migrante um refugiado e qual o papel do Alto Comissariado das Nacoes Unidas para os Refugiados (UNHCR) na sua proteccao.

Estava, e estou, particularmente interessado no conceito R2P, Responsibility to Protect, em que a Comunidade Internacional se comprometeu, por escrito, a proteger refugiados quando estes nao tem nenhum país que os proteja. (Como o Guterres relembra num dos seus discursos, isto é um tema sensível hoje, já que nos dias que correm a opiniao publica internacional suspeita - devido a guerra no Iraque - que os grandes poderes internacionais intervêm apenas para prosseguir as suas proprias agendas, e nao em nome da humanidade.)

Em todo o caso, este documento lê-se bem e rapidamente, inclusivamente eu li-o no autocarro à vinda para casa. Alias, as tantas convenci-me que devia dar um ar muito sofisticado estar a ler sobre refugiados. Pareceu-me ter visto a loira ao meu lado, magrinha, bem feitinha, nariz empinadinho, mandar-me uma vibe aprovadora com aquele ar de "É sexy, estares aqui num autocarro cheio de gente a ler sobre refugiados depois de um dia de trabalho", pelo que lhe respondi com um sorriso sedutor de "Sabes, eu gosto destas coisas. Tem piada tambem estares interessada nestes assuntos", ao que ela me replicou, para minha desprevenida surpresa, numa tromba enjoada que dizia "Estás a sorrir para quem, seu tarado?", que profundamente me irritou ao ponto de me fazer mudar o meu sorriso para um esgar de desprezo em que com toda a naturalidade lhe lembrava que "Se eu fosse o Johnny Depp terias sorrido de volta, su-a PU-ta", de que imediatamente me arrependi.

Perdoada a Claire mentalmente, abandonei os meus diálogos telepáticos e, chamando a mim toda a coragem do ego ferido, arrisquei uma conversa - porque o Johnny Depp também comecou por andar de autocarro - e ela revelou-se, realmente, interessada no tema da DR do Congo, sobre o qual, aliás, sabia mais do que eu, no triste final do nosso diálogo mental, intuíra. Infelizmente, ela nao manifestou interesse em continuar a nossa conversa para lá da sua paragem o que, se bem que incompreensível, a deixa claramente em desvantagem face a mim, que pelo menos escrevi um post à pala dela (que nem sequer existe).

Em todo o caso, isto era tudo para dizer que esta brochura (*), como ja disse, é uma boa (e básica) introducao a qualquer conversa informada sobre migracoes humanas e que, entre muitas outras coisas (como por exemplo, e isto nao tem nada a ver, este livro), eu recomendo a quem me quiser ouvir.
 




(*) aqui, por favor, nao confundir o tema Refugiados com o tema Claire
 

Monday, November 10, 2008

Handschrift, Cartas de amor, Florentino e Fermina, e um texto que nao tem nada a ver com essas coisas todas

Ate à quarta classe, tive notas para caligrafia. Handschrift

Era péssimo. Tinha notas boas a tudo e um desastre a Handschrift. As notas eram de 1 a 6. 1 era o melhor. Eu tinha 4 a Handschrift. 4 é um desastre. 5 seria negativa. A minha letra era provavelmente quase ilegível.

O Jorge tinha óptima letra. Sempre teve jeito para desenhar, tambem. O Jorge é daquelas poucas pessoas que manteve na transicao para a idade adulta a maior parte das qualidades que tinha enquanto crianca. Provavelmente ainda tem tem boa letra - deve ter.

Vejo o Jorge uma vez por ano, ou menos, e ainda sei o numero de casa dele de cor. E a morada. (Nao vou a casa do Jorge há mais de 10 anos.). Ha uns dois anos ele veio-me deixar a casa depois de um jantar de antigos alunos da escola que há todos os anos no Natal e, quando parou para eu sair, disparou a minha morada e o meu numero de telefone de casa da boca para fora. Eu respondi com a dele e com o numero.

É maravilhoso, o passado. Alias, sao maravilhosas, as relacoes humanas. Ha uma dimensao na minha amizade com dois ou tres amigos de escola que justificam por si só a necessidade de eu viver durante muitos anos, so para poder ter a consciencia de que ela existe.

Mas por acaso nao era nada disso que eu vinha aqui falar .

Vinha falar do meu primeiro 4 a Handschrift. Eu menti no primeiro parágrafo. Eu geralmente tinha 3, mas a coisa foi piorando e no fim da quarta classe tive um 4. Eram só gatafunhos, parece-me. Ja nao tenho nada desses tempos, mas devia ser ilegível.

Quando apareci todo contente com as notas (era tudo 1s e 2s e eu tava-me literalmente a cagar para a caligrafia), o pai do Jorge meteu-se comigo e disse que era uma pena o meu 4 a caligrafia. (O Jorge tinha tido um 1).

Alguem, provavelmente a minha mae, veio logo em minha defesa, "Oh Jorge (o Jorge tem o nome do pai), quando eles sairem da escola ja ninguem escreve à mao.."

"Mas para escrever cartas de amor nao vai poder usar computador..."

Nunca mais me esqueci disto. Nao sei porquê. Foi uma coisa que me ficou. E ocorreu-me agora há uns dias, tantos anos (e tantas cartas) depois, será que alguém ainda escreve cartas de amor? 
À mao?

Aquilo na altura pareceu-me aterradoramente certo, tao certo que hoje em dia tenho boa letra; mas durante quanto tempo é que vai valer a pena? Para sempre, claro, se dependesse de mim. Eu por mim escrevia cartas de amor para o resto da vida. 

A alternativa a uma carta de amor escrita a mao é uma carta de amor escrita no computador - um email. Ou nao mandar carta nenhuma. 

Mas será que as mulheres ainda gostam de cartas de amor? Eu acho que se mandar uma carta de amor um dia destes levo um chuto no cú imediatamente. Um bilhetinho de manha, uma nota debaixo da porta, sim - mas uma carta?

Acho que vou ali ler O Amor nos Tempos de Colera outra vez.

(Pobre Florentino. Para ele tambem nao resultou.)

Bom.

Volto em 2070.
 

Wednesday, November 05, 2008

O maior aldrabao da historia de Sydney


Patrick McShee foi o maior aldrabao da história de Sydney, até se atirar de um penhasco abaixo entre Bondi e Tamarama.

A costa este de Sydney é das zonas mais bonitas do Mundo. Sao quilometros sem fim de rochas escarpadas em frente ao infinito rugoso do Oceano Pacifico, um enorme sem-fim de colossos de pedra e vegetacao, sobre os quais, la em baixo, ondas perfeitas esbarram durante dia e noite, enquanto o ciclo da vida se processa, manhas amareladas com os primeiros surfistas, tardes escaldantes em que o reflexo de mais uma barbatana de golfinho encandeia os olhos das gaivotas, fins-de tarde de potencia alaranjada, noites claras de reflexos incertos. E la ao longe, a cidade.

Entre Bondi e Cogee, construiram um caminho discreto mas bem localizado, onde dezenas de locais correm de manha e a ao fim do dia, e centenas de turistas passam a tarde ao sol e ao vento, a tentar compreender - e com razao - porque é que Sydney é a unica metrópole do Mundo onde a natureza vale mais que o betao. Patrick McShee aproveitou-se durante anos deste local para vender lentes falsas a gente de todo o Mundo.

A maioria dos clientes do subtil aldrabao nunca tinham confundido uma mosca com uma vespa a tres metros de distancia, mas centenas, milhares, talvez dezenas de milhar de turistas de todo o lado lhe compraram um par de oculos. Patrick McShee era, mais do que um optometrista, um vendedor de binóculos. Hoje, há quem até lhe chame um vendedor de ilusoes. Nao seria exagero chamar-lhe um vendedor de sonhos, como os jornais na altura anunciaram o dia em que foi acusado de burla e condenado a 20 anos de prisao, mais tarde reduzidos para 2, por bom comportamento: "The dreams salesman eyes prison for 20 years".

Para mim - na minha visao da história - Patrick McShee vendia fantasias, em troca de um par de dólares. Fantasias em formas de óculos. Patrick McShee foi o unico mago na historia da optometria. Um aldrabao, claro, que vendia magia por engano, mas quantas histórias nao se espalharam pelo Mundo todo, pela Europa, os Estados Unidos, o Japao, a Africa do Sul e todo o resto, quantas familias nao ouviram encantadas os relatos das visoes (nunca tidas) desde a costa de Sydney?

O crime de Patrick McShee nao foi vender oculos a quem nao precisava, foi vender realidades que nunca existiram. Gente em todo o Mundo - gente que ficou em casa, e da Australia so soube e sabe as historias de quem lá foi - vive, ainda hoje (porque mesmo as vitimas de McShee nao se confessaram, por vergonha) na ilusao das histórias contadas pelos clientes do ilusionista.

Porque Patrick McShee via baleias onde mais ninguem as via. Geralmente, estava no ponto mais alto depois da praia de Bondi, um promontorio esticado em frente ao mar, onde um murete baixinho construido em circulo ilude os turistas a sentirem-se as sentinelas de uma caravela.

Todos os dias passam varias baleias pela costa de Sydney; talvez dezenas, embora certamente nao centenas. Todos os dias alguem as ve, entre Maio e Novembro, mas a maioria das pessoas nunca as chega a topar. É preciso estar lá a hora certa (seja ela qual for) e saber reconhecer o jacto de agua la ao longe, e esticar os olhos, e desencantar uma barbatana, um corpo, um aproximar, e, com sorte, talvez ve-la chegar-se mais perto da costa, senti-la real. Passam muitas baleias em Sydney, e é um privilégio ve-las. Patrick McShee vi-as a todas, especialmente as que nao existiam. Na verdade, Patrick McShee era, muitas vezes, o unico que as via. 

Passava o dia sentado no murete, a espera de grupos de pessoas. Sempre gente nova. Os locais nao param, passam a correr, corpos musculados na sua busca obcecada de perfeicao. Nunca ninguem reconhecia McShee, portanto. Exerceu o seu numero durante anos, até ter o azar de usar o mesmo truque a frente de um jovem biólogo finlandes que estava a passar uma semana a observar baleias desde aquela zona e que, com o seu deprimido sentido de justica, reportou o aldrabao as autoridades, que prontamente montaram uma operacao disfarcada e o apanharam no acto passados menos de dois dias. (Mas isso é o fim da história.)

Patrick McShee sentava-se, esperava, olhava o mar, e, quando passava alguma grupeta, pai mae filho e filha, ou pai e mae, ou so pai, ou tres filhas, ou (na cabeca dele), "a puta que os pariu a todos", virava-se para o mar, cerrava muito os olhos, e berrava, excitado:

- Look!! A whale!!

As vitimas - sempre vitimas, McShee nunca falhou, a nao ser com o finlandes, e mesmo com ele so falhou à segunda tentativa - saltavam entao excitadas para junto dele, em busca do que nunca pensaram poder ver de terra,

- Where?? Where??
- There? Don't you see the water? There, perhaps 300 metres away
- I don't see. Where?? Mike, do you see?
- No daddy! 
- Daddy, where is the whale? I wanna see the whale daddy!
- Where is the whale mate?
- There, sir, don't you see? Oh it's coming closer..look!! Look!! Did you see, now!! It just blew some water..
- I can't see it..
- Where is the whale daddy?
- Shosh, dear, daddy is trying to see. Now you wait there. Ask this gentleman here. Sorry, what's your name?
- Pat, sir! At your disposal.
- So where do you see the whale Pat?
- Just wait. She'll pop out again, and the you will see. Where are you from?
- Ireland.
- Oh Ireland, nice. Look, you recognise the whale by the water coming out of the whole on the top of its body. After that, you can usually see a fin and, if you are lucky, a breach out of the water, the big animal jumping out - Oh!! There, look! See, there?? See the fin?? It's just here. It came closer. There, see! There, sir! 100 metres from here! Oh it just went for a swim underwater again! They always come up for a few seconds and then down again for five minutes..

Nunca ninguem via nada. Nunca ninguem podia ver nada. E nunca ninguem podia ver nada porque Patrick McShee nunca apontava para baleias quando lá estavam baleias.

Patrick McShee via baleias onde mais ninguem via, isto é, via baleias imaginárias, tao imaginárias que nem eles as via, e sabia que nao via. Patrick McShee nao via baleias, na verdade, nem queria. Patrick McShee via dolares, e, para os ver, vendia oculos a quem nao era capaz de ver baleias.

- Sir, excuse me, what is your name?
- Alex.
- You have a beautiful family. Look Alex, honestly, I mean..do you guys usually wear glasses or so?
- No, why?
- I am an optometrist, and, as a hobby, I also spend time watching whales from here and I have seriously never, ever, come across someone who failed to see a whale this close. I mean, Alex, mate, sorry, Alex, sir, seriously, it was just here. Did you for sure not see it?
- No..no! Where was it, for fuck's sake?
- There! There! See, just - oh!! look, again!! See the fin???
- NO! Where. Oh shit. Melanie, honey, do you see anything??
- No dear. Oh my god, are we blind??
- Where is the whale, mommy?
- I don't know dear. Wait, just wait, daddy will find it for you.
- Sir, do you have five minutes?
- Five minutes? Yeah, sure. For what?

E aí comecava o grande jogo de McShee: a venda. Criado o problema, McShee vendia a solucao.

- Just come with me..

Patrick McShee tinha uma velha carrinha a dez minutos dali, cheia de aparelhometros, projectores, livros, ponteiros e, acima de tudo, mil e uma armacoes de todas as cores e feitios, todas com as mesmas lentes de plastico. Plastico puro, transparente, aguado. Plastico. E era nessa carripana que convencia os turistas de que viam mal, oferecia a sua consulta de graca, dava o seu parecer, fazia-se de amigo, fazia-se de dificil, e no fim - manipulando as vitimas até à obvia conclusao de que tinham serios problemas de visao - vendia-lhes oculos de plastico. Oculos de plastico. De mil cores e feitios, um para a menina, outro para o pai, uns castanhos para o avo, "Oh, for you, gentleman, I will give you these ones, the lenses are stronger, your eyes are in bad shape, trust me!". Patrick McShee dava conversa, amizade, consultas, pareceres e receitas de graca, e a unica coisa por que cobrava eram oculos às cores com lentes de plastico.

Vendida a ilusao, vendia os oculos, e vendidos os oculos puxava-os a todos de volta ao promontorio, em busca da baleia, "They are fast animals you know..she's gone now..oh no..just you wait here, another will come in two hours, maybe, or three!", mas nunca ninguem esperava, os turistas têm pressa - quem nao tem pressa, quando um plano falha e ha mais tres planos pela frente? Ninguem esperava. La iam eles, familias inteiras de oculos novos, narizes empinando as novas armacoes, levando consigo a frustracao de uns olhos mal curados e uma baleia perdida.

Na verdade, levavam ainda a certeza de terem visto a baleia. McShee era um aldrabao galante; um bom homem, na verdade, e, para compensar os cinco dolares por armacao vendida, carimbava nos turistas uma verdade que todos levavam consigo.

"You know, sir. She was there. You saw it sir. You saw it. If I saw it, you saw it. We were looking at the same spot. Just you were not focusing well. You needed glasses. But you saw it. You saw the water blow out, then a big black fin smoothly popping out of the water and gently working its way back in the water. Sir, it was there. Your eyes saw it but did not  acknowledge it. It is in you. If you look well inside you, you know it is there. If only glasses worked backwards. But it is there, sir, in you, inside your head, the image of it penetrated your iris, your cornea, it went straight to your memory, you'll never lose it. You saw a whale in Sydney. You don't remember it - alas, even I have forgotten it by now! - but is is there. We both saw it. We both forgot it. She was dark and had half the fin out of the water. Oh, how it was beautiful, remember? And now you go, then, sir, and have a good day.."

E assim se iam os turistas, meio indecisos entre o que viram e o que nao viram, confusos com os oculos novos que nao pareciam fazer diferenca no passo em frente mas que continham neles o segredo de uma baleia vista uma hora antes. Centenas de milhares de familiares, amigos, e colegas ouviram, durante anos a fio, relatos de baleias que ninguem viu - e que nao so nao ninguem as viu como nunca existiram.

Aldrabao, burlao, mago, vendedor de oculos e binoculos, fantasias, sonhos, ou ilusoes. Amigo, comunicador, anfitriao. Optometrista, naturista, observador. Patrick McShee passou anos naquele promontorio, mostrando baleias a quem nao as podia ver e cobrando, por isso, cinco dolares por pessoa. Foi apanhado por um idiota finlandes frustrado por cinco dolares mal gastos, criminalizado pelos media e condenado por um tribunal a uma pena demasiado pesada. 

Odiado antes, durante e depois do julgamento, o Mundo pesou-lhe demais, agora que ja nem a carrinha lhe sobrava - demolida pelos servicos sanitarios de Tamarama - e, agoniado com a responsabilidade de uma liberdade sem direccao, atirou-se promontorio abaixo, em busca da expiacao por um crime pelo qual, na realidade, nao deveria ter pago: culpa.

Patrick McShee é o maior aldrabao da historia de Sydney, sim, mas tambem o mais charmoso, o mais engracado, o mais relaxado, e acima de tudo o menos profissional. Cinco dolares por um par de oculos. Eis um homem que nunca levou a sério o esquema que o matou de remorso. Cinco dolares, quando podia ter cobrado cinquenta. 

Cinco dolares por uma historia para contar, pela visao da mais magnifica das criaturas do mar, desde a costa mais bonita da Australia. Um preco irrisório a pagar por quem o conheceu, (esses ratos de esgoto que agora se escondem, cauda entre as pernas, pelo Mundo fora, desmentindo que alguma vez tivessem comprado oculos na Australia, por medo de perderem credibilidade em relatos que nunca foram verdade) e por quem da visao das suas baleias ouviu falar.

E um salto no mar, depois, no fim, moendo uma culpa que so teve quando os seus pares o julgaram.

Nao deixa de ser ironico que, alguem que foi o maior aldrabao de Sydney, nao só tenha feito milhares de pessoas mais felizes com o seu esquema (e por cinco dolares, cada!) como, posto isso, tenha terminado com a propria a vida por um sentimento de responsabilidade que nunca sentiu até ser preso e condenado publicamente.

Mas isso é como eu vejo a história, e certamente haverá quem pense que Patrick McShee nao passava de um miserável vadio que mereceu o terrivel fim que teve. É, no fundo, uma questao de perspectiva. 

Na verdade, cada um acredita no que quiser, e daí extrai as suas licoes.
 

Histeria


- Hi Dennis
- Luis, how are you?
- Good, good! And you?
- Great! How's your day? Busy?
- Busy, man, very busy! Yourself?
- Not bad..I'm tired..So, what do you want? Espresso?
- Double please.
- Double, yeah? Ok.

Chega um homem. Meia idade, nao mal constituído, mulato, quase preto; camisa azul; sotaque musical - algures das Caraíbas. Fala com o Dennis em voz baixa. Riem muito. A Lauren saca-me o café. (Só o café).

- There you go Luis
- So how much is it Lauren?

O Dennis chega-se à frente

- Your coffee is for free Luis! Yours, too, Bill, and your cappuccino too, Margareth.
- Thanks dude. Why is it for free?
- Because that gentleman in the blue shirt paid for it.
- Which one?
- Oh he's gone now.
- Why did he pay for my coffee, man?
- Because Obama won!
- And he paid for everyone's coffee?
- Yeah.
- Poor guy. Ok. See you Dennis.
- Have a good afternoon, Luis!

Este pequeno conto da vida real ilustra ligeiramente esta histeria toda com o Obama. Nao é só com o Obama - qualquer pessoa de bom senso votaria Obama, incluindo eu. Mas lá está: votaria. Nao é voto, nem votei, nem votarei. É votaria. Votaria. Condicional. Condicionado a quê? Condicionado a eu ser cidadao dos Estados Unidos, que nao sou.

Ganhou o Obama. Pronto. Óptimo. Pelo menos já nao tenho que gramar com mais noticias nas capas dos jornais todos os dias. Até a chatice da Hillary Clinton me inundou os ecras ate ao enjoo, sem eu pedir, nesta história toda. Há meses - ou foram anos? Anos, meses, a volta do mesmo. Acabou. Acabou! Que bom. Mas e agora? Vai mudar o Mundo? Acabaram as guerras? Os Estados Unidos ja nao precisam de petroleo? E de gás? E de se defender? O Mundo vai finalmente deixar de lutar por recursos e viver em harmonia? Somos todos uma aldeia global outra vez? O Obama é um hippie? É um pacifista? É o Messias? (Será gay?) Ou um extra-terrestre? Vamos a marte, finalmente? Vamos? Quem? Nós, quem? A Humanidade? O Obama é um humanista? Os Estados Unidos vao passar a ter uma politica externa de solidariedade? A ONU vai passar a defender os interesses de toda a gente, finalmente? Já chove em África? 

O Sporting vai ganhar a Liga dos Campeoes? 

O Obama nao nos muda o suficiente para justificar este entusiasmo. Isto é uma l-o-u-c-u-r-a, esta obsessao por este gajo, esta obsessao por mudanca. 

As coisas nao vao mudar assim tanto! Os Estados Unidos vao continuar a ser os Estados Unidos, o Mundo vai continuar a ser uma bomba-relogio. Nao interessa quem está no Poder, interessa quantos recursos é que há para quanta gente.

O Obama ganhou. Boa. Mas nos nao temos assim tanto a ver com isso, para comecar, e nao vamos sentir muita mudanca, para acabar.

Deixem, agora, o homem trabalhar, e voltem tambem ao trabalho. E sff parem de me mandar videos de discursos dele do youtube. Eu nao quero saber disso para nada. Eu quero ver actos, tou farto de palavras, de manchetes, de histeria.

Espanta-me como, nos dias que correm, ainda alguem se entusiasma assim com um político que, ainda para mais, só aparenta ser tao bom porque se apresenta (e é) como uma alternativa a um gajo que é um desastrado.

Adorava estar enganado sobre isto tudo e vir aqui daqui a dois ou tres anos dizer que o Obama é a melhor coisa que apareceu no Mundo na minha geracao. Que eu estava enganado, hoje. Que o Mundo mudou. Que somos uma aldeia global, sem tribos nem chefes. Que ha espaco para todos. Que nos amamos a todos.

Adorava. Mas acho que isso nao vai acontecer. Há um novo presidente nos Estados Unidos - é o melhor de entre as escolhas. Mas há mais vida para além disso, tambem, apesar de nao parecer.
 

Monday, November 03, 2008

after-hours

 
Sair para correr entre Bondi e Coogee, junto às ondas bravas de um agressivo fim-de-tarde de Oceano Pacifico, e ser acompanhado, ao longo de toda a rota, enquanto o sol se poe por tras de uma colina e a respiracao se esvai, voando, com o vento alaranjado, por uma enorme baleia-de-bossa, a 200 metros da costa, saltando como um golfinho, a caminho da Antartica depois de dar a luz (ou seria uma cria?) nas águas temparadas do norte da Austrália, dá uma certa sensacao de "e depois disto, que mais?".
 


(Há sempre mais)



(E menos.)
 

Sunday, November 02, 2008

pequeno aparte: uma verdade sobre "duas verdades sobre Proust"

 
"Duas verdades sobre Proust" seria um magnífico nome de blog.

duas verdades sobre Proust

 
1) A maior parte das pessoas (especialmente as que nao gostam de ler) diz "Foi o que escreveu Em Busca to Tempo Perdido!" quando ouve o seu nome. Este pedaco de conhecimento é um dos menores indicadores de cultura de entre todos os indicadores de cultura.

2) A maior parte das pessoas (mesmo as que gostam de ler) responde "Pa por acaso ainda nao", quando questionadas sobre se já leram o livro que acabaram de mencionar com um ar incrivelmente inteligente.
 

Saturday, November 01, 2008

observacoes sobre cintos escritas de uma vez so, tal e qual foram pensadas e transcritas, sem revisao nem correccao (complete and unabridged)

Pode-se dizer muito sobre um homem pela forma como o seu cinto se aperta sobre as calcas. Estou aqui a falar de homens que usam a camisa para dentro das calcas (os outros sao miudos). 

Nao que valha a pena perder muito tempo numa observacao que é relativamente obvia para quem usa cinto, mas a verdade é que nao é necessariamente fácil usar eficazmente um cinto, de forma que cumpra simultaneamente a sua funcao estética de jazer geometricamente paralelo a cintura das calcas e a de segurar as calcas no preciso ponto em que elas assentam melhor no seu portador, dependendo do seu corte e modelo.

Geralmente, um cinto bem colocado e apertado, numas calcas que assentem à pessoa, nao salta aos olhos (e portanto esta análise foca-se mais nos homens que perderam peso mais rapidamente do que tiveram um aumento de ordenado que lhes permitisse comprar um par de calcas novo e mais justo), mas quando isso falha (e aqui, a expressao que me ocorre é a inglesa failure to do so), pode ter duas consequencias que imediatamente sao topadas por um observador: as calcas ficam descaidas; e o cinto, quando visto de frente, como que esgana as calcas, que passam a parecer um largo saco de batatas apertado no topo, como se uma garrafa se tratasse. Nao raras vezes, as calcas encarquilham-se sob a pressao do cinto. Dependendo da qualidade do cinto, a funcao de aguentar as calcas na cintura do portador pode ser cumprida (accomplished), satisfazendo uma das razoes de existencia do cinto, mas umas calcas demasiado largas nunca permitem o natural (e aqui, ocorre-me smooth) deitar do cinto paralelo a cintura.

Tendo estas observacoes como base, comecei a observar com mais cuidado o tipo de homem que padecia de um (ou dois dois) mal(es) do cinto mal colocado (isto é, da calca demasiado larga), e facilmente me apercebi que, na maioria, talvez totalidade, dos casos, tratam-se de homens mal vestidos, camisas feias, calcas manhosas, sapatos sem gosto a acompanhar, ou mesmo calcoes com sandalias e camisa. Nao raras vezes, a barba está por fazer, o cabelo despenteado, as unhas roídas, os dedos amarelados por demasiado tabaco. Em suma, tratam-se de homens que claramente nao querem, ou nao podem, ou nao gostam de, ter cuidado com o que vestem e de como sao vistos pelos outros (how they come across).

Como disse, nao é necessariamente facil aguentar um cinto perfeitinho numas calcas (se fosse, a propria funcao anti-gravitária do cinto perderia o seu sentido), mas, tendo umas calcas minimamente adequadas ao nosso tamanho e um cinto alguns furos acima dos da H&M, é possivel ter bom aspecto de camisa para dentro das calcas, seja qual for a dimensao da nossa barriga.

A conclusao (óbvia, por certo, mas deu trabalho a chegar lá: foram horas de observacao em elevadores, refeitórios, campos de golfe e parques de campismo) é que só homens totalmente descuidados e sem qualquer tipo de preocupacao (ou sem possibilidade economica de comprar umas calcas que lhes assentem, mas nesse caso nao percebo o que andam a fazer numa profissao de camisa-dentro-das-calcas) é que tem o cinto despararelizado da cintura das calcas.

Homens com cinto mal posto sao homens de homens low status, seja lá o que isso for. (E aqui, permiti-me de facto usar a expressao inglesa, porque "baixo estatuto" seria uma ofensa para o portugues, sempre receoso das verdades socialmente separatistas, mais preocupado em salvaguardar os seus defeitos com uma manutencao artifical da igualdade, do que em alavancar nas críticas para corrigir o que tem de errado e dar aos seus a liberdade de serem mais do que os outros, tal como fazem o resto dos animais na Terra.)
 

Wednesday, October 29, 2008

Homesic

Um dos momentos que transformou a minha vida foi quando o meu irmao viu o Garden State.

Nesse filme, o Iron&Wine canta uma versao acustica de Such Great Heights. O meu irmao que, na altura em que morávamos os dois em casa, era responsável por metade do que se ouvia na minha vida musical, investigou a música e chegou à versao original, dos The Postal Service, dos quais imediatamente sacou o disco todo (Give Up), que passou, muito rapidamente, a fazer parte do nosso dia-a-dia de uma forma quase obsessiva.

Eu na altura adorava música mas nao tinha grande interesse em ir muito para além do que ouvia na rádio, e aquela banda provcou-me uma curiosidade tal que, durante os meses que se seguiram, andei desesperadamente à procura de alguma coisa que soasse minimamente parecido.

Desse período, nasceu nao só a importancia da música (do ouvir música) na minha vida, mas tambem a minha consciência para a dimensao do fenómeno musical mundial, obviamente já naquela altura a comecar a ser potenciado pela imensidao distribuidora da internet. Apercebi-me, nessas horas de pesquisas, da quantidade de bandas diferentes, de estilos diferentes, de dimensoes diferentes, que havia, muitas delas inclusivamente bem sucedidas noutras regioes que nao a minha. Ganhei uma certa paixao por musica, porque me apercebi que de onde The Postal Service tinha vindo, muito mais poderia vir, e que isso me ia beneficiar increvelmente em termos de bem-estar. (Daí o impacto do Garden State, e do facto do meu irmao o ter visto, em mim.)

Desde aí, passaram quatro anos e eu continuo sem nao só perceber muito de música em termos historicos-tecnicos-contextuais, como sem vontade nenhuma de discutir música e gostos musicais.

Desde aí, também, já passei por milhares de bandas, adorei algumas, viciei-me noutras, vivi algumas intensamente. Mas nunca, desde o primeiro momento de pesquisa por outros The Postal Service (que comcou pelos óbvios Dntel e Death Cab, pai e pai do projecto) até hoje, nao encontrei nada pareceido. Entretanto, deixei ter procurar gémeos para os The Postal Service, mas de vez em quando ocorre-me se, algum dia, ieia voltar a ouvi algo parecido.

Ratatat, apesar de muito diferente, provocou-me emocoes semelhantemente boas, e Fischerspooner e Junior Boys, por momentos, trazem de volta alguma nostalgia. Mas foram os únicos momentos de alguma esperanca.

Hoje, completamente por acaso, apareceu-me Homesic e, apesar de nao ter voz, tem pelo menos aquele ambiente nostálgico de tarde de primavera num campo com relva a perder de vista e apenas uma árvore, que os The Postal Service me despertam ainda hoje.

A busca nao terminou (nunca há-de terminar), mas a esperanca nao está, felizmente, perdida.
 


Tuesday, October 28, 2008

Flaneur (e passo a citar)



http://misterlazarescu.blogspot.com/2008/07/flneur.html 

Pelo meu amigo, errante, pensador, jovem cidadao da Europa do seculo XXI, intelectual, leitor, diletante, consumidor de conhecimento e futuro embaixador do nosso país onde menos precisem dele, Filipe Canas, no dia em que regressou de (mais) seis meses em Exeter.
 

Monday, October 27, 2008

Isto é absolutamente maravilhoso:


"Is there anything I can do for you dear? 
Is there anyone I can call?"
"No and thank you, please Madam. 
I ain't lost, 
just wandering"
 

Hometown Glory (Adele)

 
Nao peco a ninguem que veja este video se nao tiver paciencia (alias, pedir nao peco nada), mas aconselho que oucam - aqui, ou noutro site, ou que saquem, ou comprem, ou pecam emprestada, mas oucam - esta musica.




Do video, gosto do vapor que lhe sai da boca e me traz a memoria do inverno em Londres, e noutros lugares, memória do frio, dos agasalhos, da busca de consolo no calor de um casaco, de um chá, de um tecto; de uma voz?

Aqui, gosto da chuva que ameca cair, e dos amigos que se deixam envolver; e gosto do cenário, do telhado em cima de Londres, a cidade a borbulhar la em baixo, farois de autocarro que irrompem pelo nevoeiro, e gente que volta para casa de guarda-chuva, e bares cheios de vidas, as ruas alagadas, um ir e vir, gente irritada, gente com pressa, gente satisfeita, gente feliz, turistas e engravatados, sortes e azares, amores e frustracoes, todos debaixo de um guarda-chuva, cada um o seu - e alguns que partilham - a excepcao dos sem-abrigo, tantos, enrolados em mantas de lona sob neons afixados em palacios, mas gosto disso tudo porque nada dessa energia interessa nem parece existir; gosto deste mundo criado em cima dum telhado.

Gosto de imaginar que é o único sitio de Londres onde nao esta a chover naquele momento.

Gosto do pianista, figura muito menos secundária em estatuto do que no cenário que cria, sozinho, num maravilhoso casaco verde (que tambem adoro), no terreno que desbrava, para que ela entre e desenhe toda uma memória na minha imaginacao.

E gosto dela. Gosto de ver uma pessoa com este peso e achá-la atraente, à sua maneira, à minha maneira. E gosto porque sabe, aos 18 anos - menos, quando escreveu - pôr Londres (ou qualquer cidade) como ela é, para quem lá (em Londres, ou na sua) viveu, para quem nela cresceu e para quem, como eu, tem uma referencia geográfica na vida.

I've been walking in the same way as I did
Missing out the cracks in the pavement
And tutting my heel and strutting my feet
"Is there anything I can do for you dear? Is there anyone I can call?"
"No and thank you, please Madam. I ain't lost, just wandering"

Round my hometown
Memories are fresh
Round my hometown
Ooh the people I've met
Are the wonders of my world
Are the wonders of my world
Are the wonders of this world
Are the wonders of my world

I like it in the city when the air is so thick and opaque
I love to see everybody in short skirts, shorts and shades
I like it in the city when two worlds collide
You get the people and the government
Everybody taking different sides

Shows that we ain't gonna stand shit
Shows that we are united
Shows that we ain't gonna take it
Shows that we ain't gonna stand shit
Shows that we are united

Round my hometown
Memories are fresh
Round my hometown
Ooh the people I've met

Are the wonders of my world
Are the wonders of my world
Are the wonders of this world
Are the wonders of my world