Tuesday, November 18, 2008

uma pena imersa num boiao cheio de tinta

Filipe Canas é um tipo curioso, ao ponto de esgotar a definicao: é curioso enquanto sujeito, ávido de conhecimento e desenvolvimento intelectual, e curioso enquanto objecto, isto é, digno de curiosidade alheia ele próprio.


Como estudioso que é, Filipe Canas nao é o tipo de pessoa que recusa um pedaco de conhecimento, mas, no caso da Literatura, parece-me que descobriu uma adicao especialmente importante ao campo que elegeu como prioridade da sua busca de conhecimento: as relacoes internacionais - e, numa versao expandida (quase por definicao) do tema, as relacoes humanas. 

É evidente que, como estudioso das relacoes humanas, Filipe Canas passou do estudo das relacoes internacionais puras e duras para livros de outras ciencias sociais, tendo até desenvolvido um espantoso (mas nao surpreendente) interesse pela economia.

Mais tarde, enveredou pela filosofia, e parece agora ter encontrado na Literatura - e na forma como a Literatura retrata, nas suas palavras, "aspectos únicos do Zeitgeist de certas épocas" e no papel que tem "na história das ideias e na descricao dos ambientes sociais" de certa época, ao ponto de se tornar "um meio priveligiado de acesso ao mundo" - a sua nova ferramenta de análise.

Eu tenho uma certa reserva em relacao a esta abordagem utilitarista à Literatura.

Como é lógico, nao discordo de Filipe Canas quando diz que a Literatura é um excelente retrato de determinada realidade, mas parece-me que isso é apenas uma das grandes virtudes da Literatura, entre tantas outras que, para quem se foca maioritariamente numa só, acabam por ser desperdicadas.

A Literatura enquanto fonte de prazer, por exemplo, nao só o prazer de uma boa história como o prazer de uma boa personagem, uma boa frase, um bom pensamento, uma boa associacao de palavras. A Literatura como fonte de escape, como fuga ao quotidiano para quem nela e com ela embarca em realidades paralelas. A Literatura como instigador de um processo fluído de interaccao com outra pessoa, com quem a escreve, naquela estranha mas poderosa simbiose leitor-autor, separada, nos momentos mais sublimes, apenas por um lapso temporal entre quem escreve e quem lê. A Literatura enquanto companhia. A Literatura enquanto arte per se. A Literatura enquanto ela própria. A Literatura enquanto objecto de plácida contemplacao. A Literatura enquanto Beleza. E por aí fora.

Filipe Canas está neste momento a usar a Literatura como utensílio de luxo para chegar a um objectivo, a meu ver desprezando (por certo consciente disso) o que eu considero a principal característica de um bom livro, que é a sua identidade própria independente de qualquer tipo de contexto. O manuseamento utilitarista de uma grande obra de ficcao acaba por despoja-la da sua validade enquanto realidade, realidade essa que por vezes chega a ser quase organica, mais orgânica ainda do que o papel onde está impressa.

É certo que a motivacao que cada pessoa tem para ler um livro pode assumir tantas formas como o tipo de livros que existem. O universo literário é inifito, um "biblioteca de Babel", como lhe chamaria Borges, e, como tal - se tomarmos essa definicao como válida - tao inifinito como o conjunto de todas as verdades. Nesse sentido, toda esta discussao é inconsequente, porque na biblioteca de Babel todos os livros sao possiveis, e numa tal biblioteca nao é necessário debater a forma correcta de utilizar (ler) um livro, porque para cada forma correcta de ler (para cada tipo de leitor) há uma inifinidade de obras à disposicao que servem precisamente o propósito de cada leitor.

No entanto, e sem querer alongar-me demasiado neste debate de como se deve ler a boa Literatura, nem muito menos tentar definir o que é boa Literatura - já que isso sao duas questoes para as quais nao só nao tenho resposta como nao tenho conta de quantos dias já perdi à procura dela - provoca-me um certo amargo na consciência observar a evolucao de Filipe Canas enquanto leitor de Literatura.

Se nao estou em erro (uma pessoa nao sabe tudo sobre os seus amigos - alias, sabe muito pouco) Filipe Canas está pela primeira vez a levar Literatura a sério, e a mim, que nao sou, nem de perto (aliás, nem quero ser) um especialista no tema, parece-me que está a iniciar o seu caminho pelo túnel mais estreito.

Mas isto é o que eu penso e, como eu e Filipe Canas nao somos a mesma pessoa, o que eu penso tem pouca importancia, já que na biblioteca de Babel há lugar para todos.
 

5 comments:

filipe canas said...

Eu vou responder a isto a seu tempo e em local adequado.

Só não consigo perceber - e dado que tu me conheces, ainda menos - qual a necessidade de me 'essencializar' ou 'unidimensionlizar' enquanto leitor.

Eu leio por milhares de razões. Leio alguns livros por umas e outros por outras.

Alguns livros são importantes - ou especiais - por algumas razões. Especiais não só para mim, que podem nem ser, mas especiais para uma geração ou para um certo mundo, que pode já não existir.

Bem, em respondo quando acabar o meu texto. Ides apanhar nos cornos.

abraço

El-Gee said...

desculpa por te ter unilateralizado. a ideia nao era unilateralizar-te como leitor de ficcao, mas sim isolar o teu argumento. é evidente que nao és tao simples como este texto advoga. pelo contrário.

aliás, este texto tb nao é uma resposta directa ao teu post, nem podia, porque este texto, como sabes, faz parte de um diálogo que se processa diariamente por mail, telefone e telepatia.

nao é necessariamente um texto sobre ti, mas sobre uma determinada forma de ler que tu advogas. apesar de nao ser a tua unica, é tratada como tal aqui, para facilitar a discussao.

a ideia é debater o conceito "ler ficcao para compreender epocas", que me parece, apesar de tudo, ser neste momento a tua principal motivacao, a julgar pelo teu post.

digamos que este texto é uma reposta directa à pessoa que aparentas ser no teu post, apesar de eu saber que as tuas motivacoes para ler estao para lá do que la escreves.

se calhar este texto nao pertence aqui. o debate sobre literatura, sim, o debate sobre filipe canas enquanto leitor, nao, esse talvez seja mais da esfera privada. (e um blog, afinal, é publico ou privado?)

bom. um abraco.

filipe canas said...

um blog é uma forma soberba de dominar a mentira ou a verdade que gira em torno da nossa aura.

claro que isto pode estar fora de controlo. tudo. tudo fora de controlo. do nosso controlo.

El-Gee said...

deixemo-nos levar, entao.

mais tarde, poderemos sempre culpar "o tempo em que vivíamos.."

R. said...

Filipe Canas é uma pessoa muito metódica. Mas um dia vai-se perder no prazer de um bom policial.E a partir daí tornar-se-á um leitor muito diferente.