Monday, February 26, 2007

Eram dois (Good Riddance)

(Nunca vou conseguir compreender como é que certas músicas nos tocam tanto, da mesma maneira, durante tantos anos e sem fim à vista)






Eram dois. Passavam os verões lado a lado, complementando-se nos passos e nos sorrisos de água salgada. Um, muito moreno e salgado de sardas e luz do sol. O outro, muito loiro, de cabelo manso e gargalhadas ao luar. Conheceram-se pequeninos, numa bulha de caricas. Quando todos os outros se engalfinhavam na disputa de uma batota mal resolvida, os gémeos, como lhes chamavam, olharam um para o outro e riram-se daquela batalha inútil.

- Queres ir dar um mergulho?
- Vamos!
- Como é que te chamas?
- Jaime. E tu?
- Miguel.
- Boa. Queres ser meu amigo?
- Pode ser.

E desde esse dia, passaram jogos e jogos de caricas enferrujadas, pedaladas de gaivota, fantas de laranja ao fim de tarde, corridas à beira-mar e calcanhares com areia colada no caminho para casa; passaram braçadas de mariposa, tabelinhas em balizas de um pé, olhares para bikinis às flores; passaram cervejas roubadas, diálogos em surdina, relatos ruborizados de beijinhos proibidos; passaram suecas metediças, acordes acústicos ao alaranjar, camisas abertas ao vento, colares de missangas, madrugadas sem dormir; passaram músculos que cresciam, e lutas lado a lado, e mais beijos em noites de loucura; passaram as primeiras vezes, e as segundas, e tantos verões e novos amigos, e miúdas por todo o lado; e passaram invernos inteiros, e aulas, e regressos às aulas, e páscoas e carnavais, e natais e frio, e equinócios de espuma branca; e passava isso tudo, e regressava o verão, e a cada verão regressava o abraço forte de quem ama sem compromisso, o abraço cúmplice que só dois amigos de alma sabem e podem dar, o abraço de uma saudade de dez meses sem falar, de dez meses de cada um por si, de batalhas individuais o ano inteiro.

Aos 18 anos Jaime e Miguel eram a praia. Não eram os mais giros, nem os mais engraçados, nem os melhores jogadores de futebol, nem os mais simpáticos, nem os mais educados, nem os mais bem vestidos, nem os mais inteligentes. Eram os mais amigos, e essa alegria contagiante dos olhares que trocavam em tudo o que faziam, sempre juntos, sempre em dupla, sempre em complemento como quando um tocava os acordes e o outro dedilhava as segundas vozes nos anoiteceres de fim de tarde, essa única e inexplicável comunhão, fazia de Jaime e Miguel os mais queridos entre todo o verão quente daquela praia de areia fina.

No verão dos 18 anos, Jaime e Miguel tocaram todos os dias e todas as horas de meia-luz Time of Your Life nas suas violas, encantando os corações ruborizados que os ouviam, e mesmo no primeiro dia do verão tudo saiu perfeito, porque ambos a tinham ensaiado, cantado e tocado, por si, durante todo o Outono e Inverno e Primavera anteriores, como fez o Mundo inteiro nesse ano, comovido com a história de uma namorada que fugiu para a América do Sul e que um americano decidiu contar num cd de média memória.

Esse foi o verão de todas as loucuras, de todas as batalhas, de todos os amores e desamores, de todos os trágicos sucessos que o vento norte de Setembro varre todos os anos das juventudes conquistadas a sal e sol.

No último dia do verão, o sol afogava-se, na sua dignidade de padrinho da província, no mar queimado, e Miguel e Jaime deixaram-se ficar no topo da duna, quando o resto do grupo seguiu para casa, em antecipação do jantar de despedida dessa noite.

- Mais um verão Jaime.
- Mais um..
- Vou ter saudades tuas pá

Riram-se comprometidos, já a meio sol

- Tocamos isto uma última vez?
- Só os dois, aqui?
- Achas roto?
- Pá acho, mas se calhar vai mudar as nossas vidas.
- Se calhar vai.

O Sol, essa viúva alaranjada, soluçava os últimos goles da água que o inundava. As violas dançaram nas notas acústicas. Estavam a tocar sozinhas: sabiam a música de cor.

Another turning point a fork stuck in the road
Acho que entrei em medicina pá.
A sério??
A sério..soube há bocado. Entrei em Lisboa, vou para lá em Outubro..
Lindo..sempre soube que te ias safar bem..
E tu, já decidiste?
Vou viajar Miguel..
Viajar?? Para onde..?
Pelo Mundo..quero ver o Mundo todo antes de me dedicar ao resto da minha vida..
E achas que estás a fazer a coisa certa?

Time grabs you by the wrist directs you where to go
Não pensei nisso. Algo me empurra.
Não tás a pensar em tirar um curso?
Depois, logo se vê..não te contei, mas este ano não passei.
Não acabaste o décimo segundo?!
Não..
E só agora é que me dizes??
Desculpa.. tive vergonha­.
Não tens de ter vergonha comigo Jaime!
Eu sei pá..mas sabia que ias ficar preocupado..não te quis desiludir.
Eu é que te desiludi este verão, com as minhas trapalhices a jogar à bola.
Lá nisso não tens muito jeito não..ainda bem que eu jogo pelos dois!
Então vais viajar e cagar nas aulas é isso?
Basicamente, vou adiar as decisões para um dia mais tarde..
E não estás assustado?
Não conseguia fazer outra coisa senão ir..

So make the best of this test and don't ask why
Então vai sem remorsos.
Achas que me vou safar depois?

It's not a question but a lesson learned in time
Não sei Jaime. Não sei. Não faço ideia. Pelo sim pelo não, prefiro ir para Lisboa.
Vou ter muitas saudades tuas pá.

Olharam-se nas lágrimas derramadas e seguiram para casa sem falar. Nessa noite, na noite de todas as loucuras e de todas as lágrimas, ninguém percebeu que Jaime e Miguel estavam, no seu silêncio entristecido, a olhar-se pela última vez na vida.

It's something unpredictable
But in the end is right
I hope you had the time of your life


So take the photographs and still frames in your mind
Jaime apertou a mochila à volta da cintura e fez-se ao comboio. Atravessou Espanha inteira e os Pirinéus a pé. Desbravou o centro da Europa, e as vindimas na Bretanha. Chegou até à Bélgica e voou, perdido, pelas ruas de Amsterdão. Aguentou o frio inverno da Escandinávia, e passou a Primavera no sol da meia-noite. Passou uma temporada pescando com os povos do Norte, e um verão na Rússia. Andou sobre carris através da Mongólia, e apaixonou-se pela francesa com quem foi preso por engano em Pequim. Juntos chegaram a Tóquio, onde durante anos ensinaram viola num centro social. De Tóquio correram por toda a Ásia até à Indonésia, e velejaram pelos mares do Sul até chegar, muitos meses mais tarde, ao porto de Buenos Aires. A última vez que uma máquina fotografou Jaime na viagem sem regresso da sua vida, numa fotografia amarelecida em que Miguel veria, muitos anos depois e por acaso, o sorriso da sua própria juventude, Jaime brilhava sob o sol gelado da Terra do Fogo, os cabelos negros de sempre esvoaçando sobre uma espessa barba, e uma carica enferrujada entre os dentes.

Hang it on a shelf in good health and good time
E Miguel, medico de mão cheia, salvador de vidas e ressuscitador de corações, estudou para ser o melhor médico de Lisboa, e estagiou todos os verões e todos os invernos. Cedo perdeu o sorriso descomprometido dos verões da praia de areia molhada, numa seriedade comprometida de quem lida com a vida e a morte, mas nunca esqueceu a saudade do amigo de toda a vida, que partira para nunca mais voltar. Miguel tornou-se grande, e casou cedo com a filha da melhor amiga da mãe. Operou mais de mil corações ao longo do seu caminho de ancião de cabelo branco, viveu para levar netos a passear à praia da sua juventude e assistiu, intacto e de bengala debaixo do braço, ao casamento da primeira bisneta.

Tattoos of memories and dead skin on trial
No dia em que, em mais uma passeata de bairro já corroída pela pele encarquilhada, um jornal rasgado lhe veio parar às mãos com a notícia do corpo recuperado intacto de um turista português desaparecido 75 anos antes numa zona gelada do sul do Chile, Miguel deixou-se cair de joelhos com a fotografia antiga de um miúdo da idade do seu neto mais novo, alegre em toda a força da sua juventude. “Aposto que tiraste esta fotografia para me mandar, Jaime”, chorou.

For what it's worth it was worth all the while
E, passando a sua longa vida a pente fino, entendeu finalmente que ele só poderia ter sido um médico agraciado com a vida regular e Miguel um aventureiro desgraçado no gelo depois da adrenalina da vida vivida ao máximo.

It's something unpredictable
But in the end is right
I hope you had the time of your life

“Porque tal como dois amigos se complementam, também a vida é um equilíbrio regular. De altos e baixos para uns, de uma enorme linha recta para outros.

Espero que tenha sido a viagem da tua vida Jaime. A minha foi longa, mas se valeu a pena, foi pelos nossos verões de areia alaranjada.”

E a Miguel parou, naquele insignificante segundo, o coração, devagar, tão devagarinho como sempre ponderara as suas decisões de médico velhinho, e Miguel exalou ainda um grão de areia pela boca aberta do seu último suspiro, antes de se recostar para sempre num silêncio de pôr-do-sol.

Sunday, February 25, 2007

YOURS. to keep



E, quando first impressions of earth começava a deixar-nos com...

...vontade de mais...

...Albert Hammond Jr faz o favor de pegar na guitarra...

...e dizer...

...como quem não quer, realmente, a coisa...

..."I lost my way", that's what she said!"...

...e eu, que não ando a dormir...

..ainda acordei mais...

..e agradeci-lhe..

Back to the 101



Saturday, February 24, 2007

Short stories in a life to live

Há qualquer coisa nos sábados de manhã que me faz dizer, quando me olho ao espelho:

- Foda-se Luís! Tás vivo! Que bom!

Friday, February 23, 2007

Drinkin' in LA @ 26

Acabei de sair do duche e de me vestir. Tive de tomar o segundo duche do dia porque depois do trabalho saltei até às docas e fui correr. 24:03, recorde do ano. Estou cada vez mais rápido. Vesti-me nos cinco minutos de quem já sabe desde manhã o que quer levar posto e espero, de cabelo molhado, a boleia para o jantar. Vou jantar com os meus amigos e vamos estar duas horas a falar de mulheres, uma a falar do sentido da vida e, depois de virem os whiskies, duas a falar de barbaridades. Depois disso, tornamono-nos crianças e vamos fazer vida de adultos para qualquer lado. E assim chegou a sexta e eu estou mesmo contente.

Nothing New

India November Tango Echo Romeo Papa Romeo Echo Tango Alpha Tango India Oscar November

India Sierra

Tango Hotel Echo

Tango Hotel India November

Lima India November Echo,

Bravo Echo Tango Whiskey Echo Echo November

Lima India Foxtrott Echo

Alpha November Delta

Delta Echo Alpha Tango Hotel

Wednesday, February 21, 2007

Esta semana, em repeat

1. Nouvelle Vague – Dance With me
2. Interpol – C’Mere
3. Interpol – Next Exit
4. The Pigeon Detectives – I’m not sorry
5. The Cure – High
6. The Killers – For Reasons Unknown
7. Bloc Party – I Still Remember
8. Beirut – Mount Wroclai (Idle Days)
9. Red Carpet – Alright
10. Matisyahu – Jerusalem

Monday, February 19, 2007

What drives you, Mr. Archer?

Blood Diamond



- How old are you, Mr. Archer?

- 31

- Do you have wife and children?

- No.

- And do you have money?

- Yeah, some.

- But not as much as you want..?

- No.

- Will the diamond allow you to have as much money as you want?

- Probably, yes.

- And will you have a wife and children then?

- Probably not.




- Why are you laughing?

-You left me puzzled, Mr. Archer.


Saturday, February 17, 2007

Sweet child of mine

Quando Vasco acorda de uma noite bem dormida, um raio de luz desbrava arrogante a frincha da janela. “Que estranho, tanto sol em Fevereiro.” Revira-se na cama, o iPod esquecido ao seu lado tocando ainda o embalar das onze da noite. Estica os braços até ao tecto num espreguiçar alegre e sorri para o ar. Nove da manhã de sábado. Dois dias inteiros pela frente, sem ressacas nem cigarros assassinos, sem compromissos nem telefonemas. Olha para o telemóvel em cima da mesa de cabeceira. Uma mensagem dela. Perfeito. Salta da cama em calças de pijama e pula alegre até à janela. De par em par, um rio de vida abraça-lhe os olhos fechados. Um arrepio percorre-o, quando o vento gelado penetra pelo espaço da janela que escancara. Sweet Child of Mine.



Quem estará a ouvir isto aos berros de janela aberta ao fundo da rua? Vasco fecha os olhos sem acreditar naquela corrente de guitarras e vento que lhe acciona a mente. O vento levanta-lhe a franja em espirais desinteressadas, e Vasco pensa no que não fez nessa sexta e na vida inteira de sábado. As guitarras soltam-se da janela do vizinho e Vasco tem vontade de saltar da janela e agarrar-se aos acordes de energia viva que o vento lhe traz. She’s got a smile that it seems to me.Vasco rodopia da janela até à mesa de cabeceira. Desbloquear teclado.

- Tou, Maria?
- Vasco, olá!

Estremece com a voz alegre dela. Também acordou cedo! She’s got eyes of the bluest skies. Vasco olha pela janela aberta. O céu azul refresca-lhe os arrepios.

- Gostei imenso da tua mensagem.
- Gostaste?
- E gosto imenso de ti.
- Gostas?
- Mesmo muito!
- E ligas-me só para dizer isso?
- Como hei-de ligar todos os dias, enquanto me deixares.
- És único sabias?
- Não, tu é que és. Única, mágica, encantadora em toda a tua simplicidade. És uma janela aberta num sábado de manhã.
- Deixas-me sem palavras..
- Então não digas mais nada. Eu também fico mudo quando penso em ti.
- Então.. beijinhos Vasquinho!
- Beijinhos
- Olha..
- Diz
- Que fazes hoje..?
- Não sei. Mas vou a qualquer lado contigo
- Gostava imenso..
- Então, nada nos prende. Até logo..
- Até logo..

Pousa o telefone e deixa-se cair na cama com um sorriso sem horas nem minutos.

Where do we go now?

Where do we go, Sweet Child of Mine?

Thursday, February 15, 2007

"Eu não sei dançar a valsa"

Talvez por medo do colesterol, Mário casara com um pãozinho sem sal.

Desde miúdo habituado pelo enorme avô a uma vida de farras sem sol, Mário, o corpulento Mário, vira na fragilidade de Concha a sua própria sensibilidade reflectida, porque Mário, como qualquer homem grande ou pequeno, também sentia algumas das pequenas coisas como uma mulher as sente.

Um homem potente e bem disposto, de voz poderosa e whisky sem castelo, Mário conhecera Concha num táxi partilhado num fim de noite em Albufeira, quando a frágil figura o arrastou, num asco determinado, até à porta de casa, já o Sol ia alto num verão de loucuras.

Reconhecendo-a na praia na tarde seguinte, Mário encantou-se com a sua carinha pintalgada de tímidas sardas sem cor, e convidou-a a tomar consigo um sumo de tomate, decidido a recompensar, com uma louca noite de prazer, o favor salvador do dia anterior.

Porque Concha, apesar da voz de pardalito adormecido, era uma mulher engraçada, magrinha e rija sem peso nem ossos, e de traços tão finos como a cor da sua pele quase transparente.

Ainda Mário não esvaziara o seu segundo bloody mary (na realidade, a verdadeira razão por detrás do convite para um sumo de tomate), já o seu coração inchava mais ocre do que o torpor de uma noite mal dormida, encantado, no seu rude desconforto de gigante amansado, pela sonolenta sonata de desinteresses que a tímida Concha debitava, monocórdica, através das frágeis linhas da sua boquinha ensolarada.

Nunca ninguém compreendeu como é que Mário, herói de mil noites, organizador de futeboladas, viajante de nove mares, marisqueiro de esplanada e roncador de três da tarde, se apaixonara por aquela amostra de ponto-cruz cor-de-rosa, sem encantos nem vontades, aquela magra borboleta de olhos sem expressão quase gastos por um Sol que decerto nunca vira.

E Mário, que a amara precisamente pela sua fragilidade de cristal que constantemente desafiava as suas desajeitadas manápulas a equilibrá-la sem a partir em cacos, cedo compreendeu como seria difícil abandonar a noite da carne, para amar de dia aquele coraçãozinho de pele e osso.

E Concha, que nada mais nutria por Mário do que a mesma total passividade com que assistia tanto a um tremor de terra como a uma comédia romântica de domingo à tarde, arrastava a paciência do marido como um gato adormecido arrasta a manta cor-de-rosa que lhe fica presa aos pés quando salta do colo da reformada que o acarinha.

Devagar, devagarinho, Mário, que sempre a amara pelo seu conceito, pela sua pequenina pequenez, pela graça dos seus passinhos debicados na alcatifa, pelas unhas brancas nos dedos compridos e pelas notas de piano que o acordavam, vindas da sala, aos sábados à tarde, Mário começou a compreender que Concha não era para si.

Beber um copo, Mário?
Mas Mário, já sabes que só gosto de sumo de laranja!
Jantar fora, Mário?
Mas Mário, acabei de cozer ali uma posta de pescada..
Às compras para mim, Mário?
Mas Mário, ainda ontem a minha mãe me veio trazer um caixote de roupa que já não usa..
Aos karts, Mário?
Mas Mário, assim sujo a bainha de óleo!
Para a quinta do Pedro e da Rita, Mário?
Mas Mário, não sei andar a cavalo.
Ao Douro, Mário?
Mas Mário, porque não ficamos antes cá, este fim-de-semana?

E depois, como quem não tem voto próprio, o triste salto para o abismo tão vazio que são as paredes ocas da indiferença: “Mas se quiseres, pode ser. Por mim…”

Mário, um passarão independente, teimoso como pedras de calçada, um amante da vida bem vivida, dos risos gargalhados em cubos de gelo, do abraço de um amigo e do beijo voluntário de uma mulher desamarrada, desesperava com a nulidade da sua mulher, esse alfinetezinho de dama brilhante e pequenino incapaz de segurar um entusiasmo que fosse.

Triste com o seu dia-a-dia a baixo volume e com a mosquinha de dentes direitos que o acolhia todos os fins de tarde em casa – porque Mário trabalhava, e muito, na empresa do pai – com um beijo sem brilho na face de after-shave, Mário decidiu levá-la, pela primeira vez, com ou sem o seu consentimento, a apanhar uma valente bebedeira.

“Já lá vão dois anos. Tentei levá-la a jantar, a beber uma cervejinha, a andar à vela com a malta, a ver cinema ao ar livre, a comer sapateira recheada e bife de avestruz, a visitar os sem-abrigo, a assistir ao teatro, a conhecer os meus amigos; tentei apresentá-la à minha irmã, mostrar-lhe a minha colecção de livros, convencê-la a pintarmos umas telas aos sábados de manhã; tentei levá-la aos bastidores de todos os concertos que por cá passaram, a comprar sofás novos para a sala, a beber caipirinhas em Copacabana e a mergulhar com peixes cor-de-laranja em Zanzibar; dei-lhe a provar chá de menta de Marrocos, charutos cubanos, pisco chileno, bifes das pampas, cordeiro patagónico e sushi de rã; quis levá-la à bola, à ópera, e a exposições de fotografia e a bailados polacos; quis mostrar-lhe a praia numa manhã de Inverno, um centro comercial nas tardes de domingo; tentei arrastá-la até aos promontórios da Nazaré em dias de vento e à baixa de Lisboa numa manhã de Verão; prometi, radiante, levá-la a passear de rolls royce e caravana pelos cantos do Mundo, durante um ano, dois dias, três meses ou o resto das nossas vidas; e nunca, em dois anos e vinte dias de bê-à-bás a meio-tom, consegui tirar esta flor da estufa abafada desta casa sem cor nem voz, nem para beber uma merda de um galão no café da esquina.” pensou.

E, decidido como nunca, vociferou, determinado, estafado de uma sexta de reuniões, de uma semana mal dormida, de um mês de empadão, de um Outono de roxo e de dois anos de passividade, decidido a recuperar o sorriso perdido e o oxigénio nos fortes músculos de gigante adormecido:

- Hoje, Concha, vamos para os copos juntos!

E ela, bailarina de grafonolas esganadas, libelinha de pântano seco e fada abonecada de conto de embalar crianças com tosse, soprou, como uma brisa de primavera sopra uma pena de seda, a trágica sentença da sua vida em comum, desmascarando nela a sua nulidade e mostrando a Mário, o crédulo e bom Mário, que se enganara, sem remédio, na escolha de uma mulher para a vida:

- Mas Mário, eu não sei dançar a valsa..

Wednesday, February 14, 2007

Esta semana em Repeat

  1. Interpol – Next Exit
  2. The Cure – Just like Heaven
  3. Iggy Pop – The Passenger
  4. Zero 7 – Pageant of the Bizarre
  5. Matisyahu – Jerusalem
  6. The Fiery Furnaces – Teach me Sweetheart
  7. Stars - Elevator Love Letter
  8. Placebo – Song to say Goodbye
  9. Kings of Convenience – I don’t know what I can save you from (Royksopp remix)
  10. The Gift - Wake Up

Tuesday, February 13, 2007

Monday, February 12, 2007

Eu votei nele

[link]
e, chorando, espero que não lhe doa muito

Wednesday, February 07, 2007

E se, do outro lado do espelho?

E se, do outro lado do espelho, alguém te observasse?

Alguém que visse o teu olhar ensonado quando afagas com as duas mãos o cabelo na primeira hora da manhã, chocada com o quanto ele se despenteia nas noites em que dormes sem o atar. Alguém que se risse das tuas caretas descoordenadas nos dias em que chegas alegre a casa ou que sais, no elevador, para mais um dia de sol. Alguém que não perdesse nem a mais ridícula das mil e uma expressões que ensaias antes de uma saída, quando sais do duche, quando te pintas, depois de secares o cabelo e enquanto experimentas todo o armário em busca da melhor cor para realçar o sorriso de que tanto gostas ou o colar da feira do dia antes.

E se, em momento algum, estivesses sozinha frente a um espelho, nas mil vezes que te viras e reviras quando compras um novo vestido, ou procuras, quase colada, uma imperfeição na tua pele aos sábados de manhã? Se, para cada careta descomplexada, lágrima entristecida ou raiva solitária nos teus dias maus, uma companhia que não soubesses existir te acompanhasse sem critério nem razão, um alguém indefinível e etéreo, um mistério que desconhecesses por detrás da imagem de ti que vês reflectida.

E se, do outro lado do espelho – de todos os teus espelhos – alguém arrebitasse o nariz ensonado quando finalmente aparecesses, para acompanhar com atenção desperta as tuas incertezas, as horas desconsoladas depois de um corte de cabelo que odiaste, ou a mão firme com que espalhas o desodorizante? Alguém que se risse da espuma que fazes quando lavas os dentes, e se encantasse com a forma desajeitada com que ajeitas o soutien.

Se soubesses que alguém te observa do outro lado do espelho, cantarias de toalha na cabeça as músicas que adoras quando estás apaixonada, e falarias com ele nos teus pequenos momentos de loucura? E vestias-te e despias-te assim, descomplexada, trocando repetidamente de cinto, de saia, de calças e de camisola, nessa busca tão tua pela perfeição?

E se, do outro lado do espelho, um estranho te conhecesse como nem tu a ti te conheces, um estranho atento, observador, jocoso e sensível, um estranho que te suplicasse, quando passas um lápis pelas olheiras de uma noite mal dormida, “Não, não..! Acho-te perfeita como estás, sem tintas nem adereços!”

Alguém que te olhasse e pensasse, mudo e intocável, “Meu Deus, como gosto desse castanho-claro”, quando abrisses um olho frente ao espelho e uma lágrima irritada por não ser azul ou verde te fugisse, descontrolada, pelos traços arrebitados do teu nariz.

Alguém que não se cansasse do teu olhar rotineiro, sempre igual seja bem ou mal dormido, antes de entrar no duche, e se entusiasmasse a cada novo olhar, a cada nova expressão, a cada nova manifestação dos teus entusiasmos e tristezas, sempre em busca do que fosse mais teu, diferente do dia anterior ou igual a sempre. Alguém que pulasse de uma letargia arrepiada quando limpasses o vidro embaciado com o calor da água, esticando também a mão para tocar, por fugazes momentos de vapor, os teus dedos meio dobrados, entrelaçados, quase, nos seus.

Um alguém misterioso e quase cúmplice, nunca ausente e sempre atento, alguém que não fugisse quando desligasses a luz ou saísses de um provador, ou fechasses a caixinha de maquilhagem que trazes contigo, e te esperasse a cada novo reflexo teu, a cada olhar pelo retrovisor, a cada efémera passagem por um prédio moderno.

E se, do outro lado do espelho, eu te olhasse a cada olhar teu, eu, que te penso a todo o momento, apenas a espaços recompensado por uma vaidade ou uma sorte fugaz do dia-a-dia?

E se, do outro lado do espelho, eu te esperasse, paciente reflexo de luzes acesas e estações de serviço, vivendo outras vidas e outros espelhos nas horas mortas em que não me olhasses, aguardando, sem pressionar, o agudo estridente de uma voz apertada que, tua, ouvisses e quebrasse os vidros do teu espelho e do coração blindado e opaco dos teus olhos de cristal que não me vêem, estilhaçando o teu muro de reflexos (em que não me notas, porque só te queres ver a ti) e mostrando-te finalmente a verdadeira razão dos teus complexos e vaidades, nada mais do que um carinho descontrolado e sub-cutâneo que nunca viras senão no que crias ser a tua própria imagem, um carinho desaparecido que se nutre do teu desejo por mim, fiel amante das tuas horas e incansável reflexo do amor que, afinal, procuras.

Nesse dia, em que o espelho que me protegera e afastara se despedaçar em fragmentos impotentes de luz e incertezas, cobrindo o chão, onde aterras assustada depois da surpresa inicial, de visões tuas e minhas divididas em demasiadas peças, nesse dia serias capaz de olhar-te, finalmente, nos olhos, nos teus olhos de sempre, esses olhos que, de tão teus, são os que sempre te olharam?

E eu, silencioso amante das horas mais tuas, improvável e fiel guardião da minha e tua intimidade, serei eu capaz, depois da espera sem tempo nem sol por esse momento improvável em que um bater desacelerado destrói espelhos e vidros, preconceitos e incertezas, entusiasmos e desconsolos, serei eu capaz de te abraçar finalmente?

Esta semana, em Repeat

  1. Matisyahu - Time of your Song
  2. The Cure - Friday I'm in Love
  3. Tegan and Sara - Living Room
  4. Tegan and Sara - Where does the Good go?
  5. Interpol - C'mere
  6. Babyshambles - Albion (Acoustic)
  7. Blink 182 (w/ Robert Smith) - All of This
  8. Shout Out Louds - Very Loud
  9. Muse - Starlight
  10. Islands - Tixuiit

Sunday, February 04, 2007

Eu

- Luís!
- Como é que é pá!
- Tão, já tás acordado?
- Acordei cedíssimo..
- Todo fodido não?
- Pá não, não bebi assim muito.
- Não bebeste muito!? Realmente, não te deves mesmo lembrar da noite!..
- Tá calado! E tu, nem te mexes?
- Porra eu tou entregue..
- Tavas bonito ontem..
- Todo comido. Ouve lá, onde é que andas?
- Tou na praia.
- Na praia!?
- Sim!
- É dia 3 de Fevereiro Luigi..
- Vim ver o Inverno.
- Ah e ele tá bom?
- Nem imaginas o quanto.
- Tu preferes o Inverno ao verão não é?
- Pá sim..
- Hum e tás a fazer o quê?
- A ouvir música..também trouxe um livro..
- E o caderno, não?
- Claro. Mas não escrevi nada. Aliás, também não li!
- Para que é que andas sempre com essa merda se depois não escreves nada?
- Para ter a hipótese de escrever, se precisar de eternizar uma ideia ou um sentimento.
- Não confias na tua memória?
- Nem pouco mais ou menos.
- És um ganda frito.
- Também o costumo dar às outras pessoas, para que me escrevam alguma coisa.
- Ouve lá, não tá frio?!
- Tá um gelo! Nem sinto as mãos. Por isso é que não te respondi à mensagem..não consigo escrever!
- Aposto que tás de t-shirt seu esquimó!
- Não pá! Desta vez tive mesmo de pôr o casaco. Trouxe um sobretudo vê lá tu!
- E não há sol?
- Tá um solzinho curtido lá ao fundo, mas já muito longe para aquecer. Tá tipo uma bola de fogo a desaparecer no mar.
- Boas ondas?
- Algumas ondas. Tá esquisito isto. O mar tá meio cinzento, entre o anoitecer e o sol que ainda resta.
- Tás de sobretudo na praia, a ouvir música e a ver o Inverno, Luigi.
- Há umas boas horas...
- Não tens mais nada que fazer?!?!
- Tenho mas não quero!
- Que desperdício de sábado!
- Tu o que é que fizeste?
- Pá acordei agora.
- E eu é que desperdicei o sábado?
- Luigi, tás numa praia quase deserta a ouvir a mesma música que podes ouvir em todo o lado, com um frio de rachar.
- E tu tás todo ressacado a coçar-te num andar no meio de uma Lisboa ensonada, a ouvir a tua mãe a lavar os pratos do almoço que nem comeste porque estavas a dormir.
- Tu e a tua maneira de ver as coisas..
- E hoje que é que se faz?
- Vamos pós copos. Queres ir aí jantar com os gajos?
- Pá tou um bocado cansado hoje. Mas bora. Não sei. Logo vejo. Tenho umas merdas já combinadas. Ligo-te logo.
- Tá. Já sei que não vens, mas pelo menos ontem vieste!
- Vão insistindo, que eu vou aparecendo!
- Ainda te vais tornar um louco da noite..dá-me só mais uns mesinhos!
- Não digo que não..!
- Vá pá, té logo. Eu ligo-te quando souber o restaurante.
- Tá bem! Um abraço pá.

Saturday, February 03, 2007

Tuesday, wednesday..heart attack

Sais e deixas que a porta de vidro se feche atrás de ti. Sorris, espantosamente afectivo, para o porteiro. Esperas sinceramente que ele tenha um bom fim-de-semana. Sentes um fresco vento mal pões um pé de fora. I don’t care if Monday’s blue. Inspiras fundo e espantas-te com o ar limpo nos teus pulmões. Absorves o bulício ruidoso do fim de tarde. Já está escuro, até. Dás um passo descomprometido pela calçada abaixo. Que amigo te sentes daquela senhora que acaba de passar por ti! Não ouves as buzinas caóticas à tua volta. Estás metido num Mundo só teu. Mas amas o resto. Ninguém sente como estás solto. Também, que te importa? Tuesday’s grey. Ainda estás ofuscado pela súbita mescla de luzes vivas e vozes abafadas. Os carros voam em teu redor. and Wednesday too. Não te sai o sorriso de cara. O que podes fazer hoje? Os teus passos batem leves no chão, como gotas de água. Vais sair? Se calhar, apetece-te mais um cinema..? Sim, e se fosses ao cinema?? Thursday I don’t care about you. O sinal está quase verde. Cruzas-te com meia cidade na passadeira. Entusiasmas-te ao pensar em como cada um segue a sua vida, dono do seu destino. Tu também és. Agora, és. It’s Friday I’m in love. Como estás contente! Segues rua abaixo, apaixonado por aquela gente toda. Monday you could fall apart. Tantas pessoas, cada uma com a sua vida, e nenhuma compreende como é feliz a tua. Tuesday, Wednesday.. Mais um sinal verde. Que interesa?, ias continuar o teu passo veloz mesmo que estivesse encarnado. brake my heart. Pensas na tua semana. Foi dura. Como é que aguentaste aquilo? Oh Thursday doesn't even start! Sabes lá! Que te importa? It's Friday. Estás apaixonado? I'm in love. Se calhar até estás. Não é isso que te preocupa agora. É sexta à noite, e podes escolher o caminho para casa.

Friday, February 02, 2007

Vida e Morte de Márcio

- Márcio.
- Ahn?
- O que é que tás aqui a fazer?
- Aqui aonde?
- No blog do Luís!
- Não sei, o gajo inventou-me e deixou-me aqui especado.
- Mas tás aqui quieto sem fazer nada?
- Nada pá.
- Achas qué é por te chamares Márcio?
- Acho que não. Acho que se fosse por isso, ele nem sequer me tinha inventado..
- Se calhar inventou-te só para olhar para ti e dizer "Foda-se, que merda de nome."
- Ah e quê, tá a olhar para mim e a rir-se do meu nome, neste momento, é??
- Espertalhão. Topaste-o bem!
- Então tas aqui a fazer o quê tu?
- Vim-te dizer que te podes ir embora.
- Para onde?
- Para o sítio de onde vieste!
- Eu acabei de ser inventado pá! Sei lá de onde vim! Sei lá onde é que o gajo vai inventar as personagens dele, porra! Ele cria-as, mete-as aqui neste vazio e depois, se se farta delas, não tem onde as meter!
- Pois, é o problema das personagens, nunca morrem.
- Que bom, safei-me.
- Safaste-te não, tas condenado a uma fútil existência de personagem secundária.
- Só por me chamar Márcio?!
- Não sei, sei lá porquê! Eu é que achei que ele te quisesse mandar embora por causa do teu nome ridículo. Mas na verdade não sei. Realmente até és um tipo porreiro.
- Olha lá, mas o gajo agora… como é? Vem um gajo com um nome igual ao meu ao blog dele, vai ficar fodido com ele pá.
- É capaz. E tudo por culpa minha que insinuei que ele não curtia esse nome.
- Mas ouve lá, tu também és criado por ele não és?
- Não sei bem se sou criado por ele ou se sou ele mesmo. É um problema com o gajo pá. Ele nunca sabe bem quanto de cada personagem é ele mesmo.
- Então achas que eu posso ser um bocadinho ele, também?
- Pá no teu caso, acho que não. Não tens hipótese nenhuma. Acho que és mesmo um acessório.
- Uma criação espontânea que ele, por nenhuma razão aparente, decidiu publicar e condenar, assim, a uma eterna inutilidade??
- Sem tirar, nem pôr.
- Merda! Então e tu? Achas que és o Luís?
- Não. Pá eu, se vires bem, também não valho grande coisa. Mas tenho uma vantagem: como não tenho nome, não sabes quem eu sou. Logo, posso ser uma das muitas personagens que o Luís já inventou. Ou posso vir a ser utilizado em textos futuros, sei lá. Se reparares, não tou aqui muito exposto. Aliás, vou-me pirar, tou farto disto.
- E eu, fico aqui?
- Tu não, tu vais embora!
- Mas como pá?!
- Bom, como uma vez criado não podes desaparecer, o Luís pediu-me, mais ou menos há cinco linhas atrás, que arranjasse uma solução de compromisso.
- E qual é? Qual é?!?
- Vou-te pintar de branco, que é o mais perto de transparente que há nas cores de um blog.
- Enfim…
- É o teu fim Márcio. E só por atrofio é que alguma vez exististe!
- E o que é que os leitores disto vão achar??
- Provavelmente que isto foi uma merda dum post!
- E o Luís não se importa?
- Pá sei lá. Acho que não.

Tegan and Sara


Irmãs.

Gémeas.

Canadianas.

Lésbicas (mas não uma com a outra, espero).

Nomeadas para "Best Alternative Album" nos Juno 2006.

Não preciso de MAIS NADA.

Versões ao vivo no YouTube - atenção, parte corações:

Living Room

Thursday, February 01, 2007

Jorge

Jorge casou magrinho. Que fraca figura, no seu fato desengonçado, de tristes olhos pretos ajoelhado ao altar. Era o noivo mais feio que jamais casara. O nariz comprido inalava com desprazer o fumo das velas antes dos seus convidados, e fazia sombra aos dentes tortos e mal cuidados. Sim, Jorge, na sua cara chupada por anos de tabaco, era feio. Triste, feio e tremendamente rico.

Talvez tenha sido isso o que atraíra Júlia.

Pobre Júlia. Pobre e matreira Júlia, velha raposa da noite nos seus magníficos trinta anos. Rijos, seguros e altivos trinta anos. Trinta anos de orquídeas loiras e suores de homem. Pobre Júlia, jovem ninfomaníaca, louca no seu desejo incontrolável e faminta de uma vida regrada.

Jorge jamais desconfiara, no seu cego amor pela única mulher que o olhara (também a única que alguma vez se apercebera da sua fortuna escondida), que a sua testa enrugada teria dois novos amigos desde o primeiro dia de aliança enfiada. Era um preço que, mesmo no seu tímido beco-sem-saída sentimental, apenas a custo estava disposto a pagar pela companhia de Júlia. Jorge odiava o seu par de cornos. Jorge odiava quando ela se escapulia, entre lágrimas, em busca do alimento que ele, frágil macho, não lhe fornecia.

Que já voltava, Jorge. Que ía só às compras, Jorge. Que ía tomar cafés com uma amiga, Jorge.

“Sua puta. Um dia pagas-mas.”

Mas Jorge não a punha fora de casa: Jorge, o pobre diabo, deixou-se encantar pelos refogados de Júlia, espantosa cozinheira de mil e uma delícias. Jorge, que nunca gostara de comer, alambuzava-se com os doces da manhã, os cozidos do almoço e os fritos do jantar. “Um dia, ponho-te na rua, sua grande vaca, e vais passar fome, sua devassa.”

Mas não, Jorge não a largava. Júlia viciara-o na sua comida. Júlia, essa doente, a pobre Júlia, perdia dias e dias na cozinha, alimentando com a sua colher de pau as saídas da madrugada. “Tens aqui, Jorginho. Come, come, meu querido, que eu já venho.”

E o enraivecido Jorge alambuzava-se, numa luxúria impotente, e chorava por mais uma colherada de arroz enquanto a mulher batia com a porta, na sua luta diária por outras comidas, outros prazeres. Outras necessidades.

Pobre Jorge, que aos poucos se tornou bem constituído, e daí a forte, e depois gordo, até um ser um cornudo balofo e trilionário.

No momento em que Júlia se despediu do seu milésimo homem, Jorge suspirou meio pernil de borrego num arroto monumental, admitindo consternado, com as mãos aos céus, “Sou um obeso de duzentos quilos com um par de cornos que fura o tecto e mil milhões de Euros no banco. Vou dar um chuto no cú a esta puta cozinheira.”

E quando ela chegou, pegou-a pelos longos cabelos loiros e, olhando-a da mais nobre escuridão dos seus embriagados olhos negros, beijou-a na face. Largando-a, ergueu triunfante o braço esquerdo, esticou o dedo anelar e puxou, com a mão direita, a aliança dourada, bradando enlouquecido: “Júlia, fico com os cornos, que só mil mais dois os conhecemos, mas não fico contigo, sua devassa sem vergonha. Basta de ti. Basta. Vai morrer na rua, tu e a tua fome de puta refogada.”

Ela, sorrindo, esperava, segura, o óbvio: a aliança não saíu. Jorge puxava, redobrava-a, espetava os seus dedos sapudos na carne espessa, mas a aliança não se movia. Cinco anos de azeite e óleo Fula, batatas do Algarve, açúcar castanho e manteiga de amendoim.

“Não, Jorge. Não sai. És meu.”

E, batendo com a porta, Júlia saíu para o mil e um, primeiro do segundo milénio de um total de cinquenta mil homens com quem dormiu na vida, engalanada nas suas roupas caras e sorriso de menina retocada. Júlia, a pobre ninfomaníaca, milionária em plásticas e cozinhados, esposa de um cornudo redondo, perdido no seu esqueléctico casamento e na sua balofa e eterna fome.

E Jorge, ouvindo a porta bater, cego de raiva e esganado de fome, devorou um leitão inteiro, e não percebeu – nunca! - que com a faca que cortava o bife de todos os dias poderia decepar o maldito dedo.

Pobre Jorge, gordo enfastiado, com um dedo a mais e juízo a menos, refém de putas e complexos.


(Jorge é inspirado num advogado gordo com quem acabo de discutir, durante longas horas de madrugada, um contrato de compra e venda. Por certo que esse real advogado é casado, senão esta história não existiria: eu bem lhe vi a esganada aliança. Menos certo é alguma vez ter sido tão magro como Jorge nos seus tempos de solteiro.)