Monday, August 27, 2007

Longa jornada



Olho pela janela. Enormes gotas caem continuamente desde manha sobre as fachadas coloridas de Granada. Duas da tarde. Dura noite, ontem, no concerto popular na praca central. Passa o dia, escuro, molhado, humido. Sem cor, sem energia, sem pausa. Passa o dia, devagar; chegam as sete da tarde.

- So are we gonna get on the bus to Managua or not Luis?
- Yeah man. Let's go.

A chuva encharca-nos os corpos amolecidos e cola a roupa à falta de paciencia de ter de esperar por mais um obscuro autocarro . Que nao passa, que nao vem. Vamos ficar naquela rua para sempre. Na realidade, ja estou dormente de tanta agua sobre mim.

Decidimos mover-nos e apanhamos um taxi ate a saida da cidade e comecamos a pedir boleia. Por esta altura, agua e suor misturam-se em farripas indiferentes, ja tao naturais como a roupa ou a mochila.

Pára uma pequena carrinha. La de dentro, olhos escuros penetram-nos criticos. "No lleves los gringos", pedem, baixinho, ao condutor. "Si que los llevo. Subanse amigos, subanse."

Subam. Optimo, subam. "Suban", diz ele, subam para a parte de tras da minha carrinha cheia de gente que nao vos quer la dentro porque vos confunde com o governo do Reagan, onde nao ha um unico metro quadrado disponivel e onde ninguem faz a minima tencao de nos deixar entrar.

- Kevin, man, I say fuck it to these guys.
- Luis, we need to catch the bus today from Managua, I'm not sticking any longer in this town and the next official bus is tomorrow. Plus, it's raining.
- Kevin..
- Go in man!!!

Pego no mochilao e esmago o primeiro vulto junto a porta. E exactamente o que falou com o condutor. Nao me queres ca dentro, cabrao, agora aguenta-te que tambem estas a boleia e nao mandas nada aqui dentro.

Felizmente, todos os outros passageiros tomam o nosso partido e acomodam-se como podem para nos deixar entrar. Somos quatro: o Kevin, eu, e as nossas duas mochilas. Naquele caixote com rodas, sinto o sangue secar por todo o corpo enquanto me esmago contra as gentes do lado. Na Nicaragua, a primeira reaccao ao turista e carrancuda, especialmente se o tomarem por americano. Explico que sou portugues. O Kevin, atraves da sua simpatia natural, demonstra que nao somos agentes da CIA nem estamos aqui para lutar contra guerrilheiros sandinistas dos anos 80. Conquistamo-los. Parecem surpreendidos ao ver gringos simpaticos. Eu tambem me surpreendo por finalmente ver sorrisos na Nicaragua. Ja estava a ficar farto de ser atacado com olhares criticos so pelo mero facto de existir.

La fora, chove a potes, enquanto a nossa lata se demora ate Managua. Chegamos. Finalmente, esticamos as pernas e a imaginacao. Escura a rua onde o nosso condutor deixa todo o grupo.

- Quanto es, amigo??
- Nada.
- Nada?! No, no, algo te pagamos. Toma, 50 cordovas.
- No. Somos amigos. No necesito dinero. Fue un gusto traervos.

Lembro-me do guia marroquino que recusa os dolares do Brad Pitt enquanto uma guitarra argentina lentamente eleva o seu helicoptero pelos ares de Marrocos.

Porque e que nos, "primeiro-mundistas", temos sempre a mania de trocar tudo por dinheiro?

Apanhamos depois um taxi para a estacao de autocarros de Managua. Dez da noite, um obscuro portao abre-se para um parque de estacionamento. "A que hora sale para El Rama?" "A las once." Olhamos um para outro. "We're fine", exclamamos em simultaneo.

Agora so faltam 5 horas num autocarro pestilento com musica aos berros em cima dos meus ouvidos. Acordo a meio da noite, depois de estranhos sonhos com livros abertos e pautas de musica. Tres da manha. Chegamos a El Rama. El Rama e o final da estrada. A partir dai, so barcos, pequenos barcos a motor que nos levam por um castanho rio abaixo, ate ao Caribe.

Passamos as horas com cafes e tortillas partilhadas com Gary, um amigo de ocasiao. Tem 23 anos e nao ve a mae desde que, ha 16 anos, ela emigrou para os EUA para lhe pagar os estudos. Um dia, o Gary vai ser alguem nos EUA. "That's how it works Luis", explica-me o Kevin, "the first generation goes to the States, works their butt of and hopes their kids will be someone in life. My ancestors, when they came fro Ireland, worked on the fucking Panama Canal for years and years until establishing themselves in Chicago."

Passo, obviamente, as duas horas que dura a viagem entre o verde tropical da vegetacao e o castanho do rio, a pensar no sentido da vida da mae do Gary, que nao ve os seus filhos ha anos e anos para lhes proporcionar uma vida melhor. Concluo, quando batem as sete da manha e a boca castanha do rio se abre para um porto degradado onde gente muito escura nos espera junto das suas casinhas de estacas coloridas, que nasci com muita sorte.

Entretido com estes pensamentos, chegamos entao a Bluefields.

Bluefields, Nicaragua.
Bluefields, Caraibas.

Parece que mudamos de Mundo. Ja ninguem sequer fala espanhol. Normal, estamos ja muito longe do outro lado da America Central.

"Hey Kevin, I think that if I was a geographer, or an anthropoligist, or something like that, I would just name the Caribbean a new different continent."

Nao me responde. Esta tanto calor que ele perdeu a paciencia para falar. Faco como ele e adormeco no taxi em direccao ao aeroporto onde vamos comprar o bilhete de aviao que nos vai levar as Corn Islands, no dia seguinte.

Sunday, August 26, 2007

Cumplicidade

Acabei de descobrir a palavra-chave

Roberto

Roberto trabalha num hostel em Nicaragua. Serve copos e boa onda. Nasceu numa ilha nas caraibas do Panama e passa os dias a trabalhar. Trabalha de domingo a sexta e sabado durante o dia. Tudo, porque gosta da noite de sabado. Costuma vestir uns calcoes e uma t-shirt simples. De repente, aparece mais bem vestidinho. Parece reluzir algum orgulho escondido nas suas rastas mais reluzentes que de costume, no momento em que se encaminha finamente para a porta de saida do hostel.

- Donde vas, Roberto?

Nao passa nem meio segundo

- A conquistar el Mundo.

Sorri.

Nesse momento, nao tenho nenhuma duvida de que o Mundo e dele.

Friday, August 24, 2007

Ir e vir

Suchitoto, El Salvador


Ver a realidade atraves de uma janela de autocarro.

E depois, achar que sabemos e opinamos. De nariz empinado, "estive la e eles...", "acabei de chegar dali e por la...", "nao, repara, eu ja la fui e aquilo..."

E os murais passam, como a guerra passou, e nós so vemos a tinta ainda viva que escorre pelo vidro fora e seca, esborratada, na memoria da uma fotografia desfocada.

E lemos, uma pagina, duas paginas; trocamos alguns minutos de conversa. Lemos todo o livro talvez. Se calhar, passamos uma noite inteira a conversar. E somos, ja, senhores da verdade.

Porque mais ninguem la foi. Porque mais ninguem la vai.

É tao facil parecer inteligente, basta sair de casa e inventar historias.

Miguel Angel Asturias (Guatemala)

Mais um genial autor latino-americano. Mais um premio Nobel na minha bagagem.

Tuesday, August 21, 2007



A chuva cai descontroladamente quente sobre o meu corpo em movimento.

Leon, Nicaragua.

Quantas memorias ficam para tras nesta primeira nostalgia? E quantos sonhos desfeitos pela chuva que cai e arrasta a esperanca de mais uma tarde de sol?

E depois, o que vira?

Planos para depois

Quando mais uma dezena de vendedores entram no meu apertado autocarro na Nicaragua, tenho vontade de filmar mais uma destas cenas.

- Agua de coco! Agua de coco!!
- Tamales, tamales! Tamalitos a cinco!
- Caramelos! Caramelos para los niños!
- Agua de coco! Agua de coco. Permiso. Gracias. Agua de coco!
- Mango, sandia, mango..quantos? A diez son!
- Caremalos a dos cordovas..
-..agua de coco! Dos por diez!
- "Sangwich" de pollo! "Sangwich" de jamon!
- Caramelos! Caramelos de fresa e limon!
- Platanos fritos! Con chile o sin chile? Hum, a tres. Dos? Aqui esta..
- Permiso. Mango, fruta fresca!

E o autocarro continua a sua marcha imparavel pela estrada esburacada fora. Eu suo o calor tropical de uma janela enferrujada meio aberta ate ao limite e admiro o verde-vivo da paisagem e o enorme vulcao que se eleva na distancia. Sorrisos de dentes dourados acompanham a minha apertada angustia, a tshirt que se cola ao corpo, a mochila que me pesa sobre os joelhos. Atravesso a Nicaragua. Pela Panamericana fora.

"Por la panamericana", poderia chamar a este livro de retratos imaginario que me preenche a fantasia. Ultimamente tenho pensado no espectacular livro de fotografias que podia fazer desta viagem. Bastavam para isso duas coisas que nao tenho: uma maquina maior do que a minha Nikon de bolso e a vontade de abdicar das Experiencias para ficar com as Fotografias.

As grandes fotografias so se conseguem tirar quando elas mesmas sao o objectivo do dia, da viagem, da busca. E dificil interagir amigavelmente com alguem num autocarro e depois registar essa pessoa num grande plano. Seria necessario abdicar do respeito dessa pessoa para conseguir tirar-lhe uma grande fotografia sem que se ofendesse. E dificil divertir-me no Estadio Nacional de Tegucigalpa e capturar a essencia dos fanaticos adolescentes que me rodeiam, em imagem. Em paisagens, teria de estar disposto a abdicar de todo um dia para esperar pela hora perfeita, pela luz perfeita.

Um dia hei-de fazer uma viagem com o objectivo unico de tirar boas fotografias. Nao vou procurar viver os momentos, nem apreciar as pessoas e as conversas, mas apenas dedicar-me a Espera e Busca pelo momento perfeito e a imagem perfeita. E que boas fotografias poderia ter tirado nestes dois meses! Expressoes antigas em vestidos coloridos. Sorrisos inocentes de criancas adultas. A chuva que cai sobre uma casa de madeira podre. Carrocas guiadas por velhos agricultores numa estrada esburacada. Verdes vulcoes abencoando um carro de bois.

Mas nao, desta vez procurei apenas viver os momentos e captura-los, toscamente, aqui e ali, numa imagem, para mais tarde os recordar melhor.

"Por la Panamericana". Que belo livro de fotografias ficou pelo caminho.

Friday, August 17, 2007

Southwards

- He visto un tiburon martillo con mas de 3 metros!
- Tamaño animal!..

E esta a reaccao da velhota que vende peixe no molhe de La Libertad, pequena vila piscatoria no sul de El Salvador e meca do surf no pais. Durante horas perco-me por entre toda aquela quantidade de peixes, tubaroes e ovos de tartaruga expostos para venda mal os barcos sao icados por um pequeno guindaste neste acastanhado porto castigado sem piedade pelas grandes ondas do Pacifico.

Os pescadores, as vendedoras, o cheiro, as ondas desafiadas pelos surfistas, os despretensiosos cafes sobre o mar, as criancas que brincam na praia trazem-me de volta a lugares como a Ericeira ou a costa de Sintra. Mais remotos na minha memoria, mas ainda mais vivos na minha saudade e nos meus sentidos, chegam ate mim naquela tarde em La Libertad os pores-do-sol em que acompanhava, minimo, em pequenos passinhos de crianca obediente, o meu avo ao cais de Sao Martinho do Porto, para ver as traineiras descarregar algas.

- Avo, para que e que servem as algas?
- Fazem remedios com elas, Luis.
- Ah. E porque e que as pesam naquela balanca?
- Porque as dividem em lotes, para as vender depois.
- Ah. E........

Era insaciavel a minha curiosidade daqueles dias, em que o sol desaparecia para la da barra e todo o meu universo se reduzia a mao magrinha do meu avo e ao penetrante cheiro das algas musgosas. Nunca imaginei voltar a recordar essas algas, essas traineiras e esse sol alaranjado tantos anos mais tarde, do outro lado do Mundo, no pais mais pequeno da America Central. Afasto-me com um sorriso so meu, que ninguem podera nunca compreender, como nunca ninguem podera compreender porque e que um tubarao-martelo acabado de pescar me recorda algas e avos altos e magrinhos

Entrei em El Salvador com 4 USD, um cartao de credito desmagnetizado, um cartao de debito que nao funcionava na Guatemala, meia carrafa de agua e um pacote de amendoins. Nessa noite, tive alguma dificuldade em convencer donos de hoteis a deixar-me dormir e pagar apenas no dia seguinte. Tive, tambem, uma ligeira sensacao de fome que nenhum amendoim pode compensar. Felizmente, os bancos ingleses ja chegaram a El Salvador e pude, no dia seguinte, levantar dinheiro suficiente para explorar as maravilhas deste pais tao fascinante quanto pouco visitado. Andei pelas montanhas onde se planta o melhor cafe do Mundo, vagueei por silenciosas cidades coloniais, escalei vulcoes, aceitei convites de almoco e jantar da generosa gente local, perdi-me na loucura caotica de San Salvador e sofri, como tenho sofrido nos ultimos dois meses, o aperto de viajar de pe durante horas em autocarros de escola americanos dos anos 50, cheios ate ao tecto, onde a maior atraccao, para homens e mulheres, sou eu.

Foram tantos os quilometros nestes enormes animais de metal e gasoleo, que ja nao noto nada de novo nas cores com que os pintam por fora, nos desgastados bancos de lona onde 4 pessoas se sentam no lugar de duas, nos sorrisos de toda a gente, nas curvas sobre ravinas, no vento que me levanta os cabelos, no fumo poluente que penetra os meus pulmoes quando estico a cabeca de fora da janela para ver mais um vulcao, mais um traje colorido ou mais uma pequena igreja colonial a beira da estrada.

Desde que entrei na Guatemala, mergulhei de cabeca no meu imaginario da America Central, o imaginario das bananas, das plantacoes de cafe, das gentes indigenas vestidas com cores tropicais, das igrejas amarelas, dos sorrisos genuinos com dentes de ouro, dos vulcoes a cada esquina, das coca-colas em garrafas de vidro e do calor humido do sol do meio-dia. Mergulhei, tambem, no real imaginario dos assassinatos que ocupam as primeiras paginas de todos os jornais, da poluicao, do lixo por recolher, e das vielas escuras e desertas a meio da noite.

Apesar de toda a gente que conheci, de toda a diversao das ilhas por onde andei, de todas as noitadas, de todas as cidades coliniais, de todas as caoticas capitais, de todo o prazer e de todas as dificuldades, a minha maior felicidade, hoje, quase tres meses depois da partida, e ter encontrado tudo o que esperava por aqui.

No meio disto tudo, tive ainda a sorte de me cruzar em San Salvador com o meu grande amigo Miguel Moura, com quem partilhei o melhor bife da viagem. Jantaradas em San Salvador com um amigo de Lisboa. Que Mundo pequeno.

Faltam agora 15 dias para voltar a casa e muita coisa por ver e fazer. Tudo e possivel por aqui.

Pode-se passar 3 meses no meio da pobreza e da genuinidade dos paises, como se pode passar o mesmo periodo de tempo rodeado de turistas em ilhas paradisiacas e uma ou outra cidade colonial arranjadinha como Antigua ou San Cristobal de las Casas. Pelo que tenho visto, considero que e possivel passar 3 meses aqui sem sequer ter nocao da pobreza em que estes paises vivem. Basicamente, todos eles tem dois ou tres lugares tao turisticos e arranjadinhos que parecem pedacos de Europa ou EUA no meio deste caos organizado.

Tento misturar o prazer do mergulho e das cidades turisticas com o prazer da genuinidade de lugares como Huehuetenango, Guatemala City, San Salvador, que pouca gente visita por falta de highlights ou vida nocturna, mas que revelam a verdadeira essencia destes paises tao sub-desenvolvidos.

E um enorme dilema, diariamente, abdicar de sitios cheios de gente de todo o Mundo pronta a divertir-se, em prol de capitais desorganizadas ou cidades poluidas. Mas, se nao fossem essas, mais valia ter passado o verao em Ibiza ou nas ilhas Gregas.

Sem duvida que Utila e Roatan, ilhas das Honduras de onde acabo de sair depois de uma semana de festas e mergulho, enche as medidas a qualquer pessoa com vontade de divertir-se, mas agora que passei por essa semana de verdadeira loucura caribenha, ja tenho vontade de mais autocarros, de mais escapes, de mais comida de rua, de mais espanhol, de mais Verdade.

E por isso, faco-me de novo a estrada, sem muita nocao de destino, na certeza de que tudo o que vier sera bom.

Monday, August 06, 2007

Guatemala, Centro America

Guatemala, Centro America

Dormindo em estradas de terra



Antes de partir, Huehuetenango



Dia de mercado, Uspantan


Passa a tarde na montanha, Todos Santos Cuchumatan


Sobre as nuvens, Volcan Pacaya


A espera de melhores dias, Moreria



Ontem e hoje, Antigua


Faltando a missa, Santiago Altitlan


Hora de jantar, Jocotenango



Descarregando o barco, Lago Altitlan



Mais uma tarde de sol, San Andres Xekul

Saturday, August 04, 2007

Salsa Lessons



Os meus olhos desistem devagarinho perante o sono dormente que chega sem avisar. Luto contra o cansaco e a torpe escuridao e procuro-te, de novo, na amalgama de memorias escuras que dancam descoordenadas como tonturas na madrugada. Viro-me e reviro-me, rasgo cabelos e saudade e so te vejo distorcida e manchada de cores alheias. Procuro em vao reconhecer na minha memoria adormecida os tracos que os meus dedos ainda relembram e nada senao o verde-escuro dos teus olhos despertos parece recordar-me que foste verdade. Nao te vas, assim, sem avisar!, peco-te, desesperado, paralisado, ja de olhos bem fechados de dor e saudade. Nao desaparecas como se nao tivesses existido, suplico, exausto, ate compreender que sou em quem se vai, na minha insistente opcao de ir e vir. Descanso entao, finalmente e, com um sorriso amargo, alegro-me por tudo o que foste e perdoo 'a minha memoria por nao te conservar como es. Quem desapareceu fui eu; viver com a imagem desfocada de ti para sempre e' o preco justo a pagar por este abandono.