Thursday, December 28, 2006

2 Honeybear




- Do you love Honeybear?

- Not really, no..

- Do you fancy her?

- Well...

- Yes or no?

- I might.

- You might..?!

- I don’t know her!!

- You don’t know her?!

- Actually not, no…

- So?

- So what?

- Well, do you have a romance?

- I guess not..

- A modern romance, perhaps?

- There is no modern romance.

Tuesday, December 26, 2006

2006

2006 valeu a pena porque..

...li "The Razor's Edge"

...os The Killers compuseram a Read my Mind

...fui às praias do Dia-D na Normandia

...vi o Dakar passar por mim

...o Donald Rumsfeld demitiu-se

...mostraram-me o rabo da Keyra Agustina

...apercebi-me que esse rabo não era uma montagem

...mudei de emprego, para muito melhor

...atravessei o Tibete de comboio

...o Gonçalo Cadilhe publicou A Lua pode esperar

...descobri os Yeah Yeah Yeahs e alguém que gosta deles como eu

...espetei-me de bicicleta em Amsterdão com 6 amigos a rir de mim

...acordei numa aldeia dos Himalayas e vi uma montanha de 8.000 metros à minha frente

...fui a Sagres pela primeira vez

...voei ao vivo com The Strokes

...e eles lançaram o First Impressions of Earth

...vi o Monte Evereste

...estive a beber copos no Buddha Bar em Paris

...subi a Cordoama a voar com um amigo, ao som de King of the Rodeo dos Kings of Leon

...voltei para casa a pé depois uma noitada em Pequim

...andei de elefante à procura de rinocerontes

...estive perdido em Kathmandu e perguntei o caminho a um macaco

...vim todos os dias a pé para o trabalho

...sobrevoei a Sibéria

...a minha mãe gostou do presente de Natal que eu lhe dei

...os Franz Ferdinand vieram a Portugal dar um concerto para mim

...passei três fins-de-semana na Ericeira

...comprovei com um beijo bem sucedido os poderes adocicados de ervas nepalesas para refrescar a boca, depois de quatro canecas de Super Bock

...perdi o medo de andar de avião

...comi um bife tártaro em Nantes

...publicaram escutas telefónicas com o Valentim e ele tá quase a ser preso

...quase acumulei milhas suficientes para voar de graça na Europa com a TAP

...vi o Miami Vice, a Marcha dos Pinguins, o Shooting Dogs e o Cronicas

...apaixonei-me pela Scarlett Johansson e ainda não percebi que não sou correspondido

...deram-me um 93 sem limite de chamadas

...conheci e deixei-me marcar por pessoas especiais

...comprei imensas camisolas às riscas

...dei um passo em frente na Procura do sentido da Vida

...comecei a ter leitores neste blog

...comprei um iPod

...os Placebo lançaram Meds

...acordei mais dias a sorrir do que de trombas

...isto é só uma pequena parte

Thursday, December 21, 2006

Chegou o Inverno


Chegou o Inverno. É a melhor notícia desde que acabou o Inverno. Agora já não há razão para não haver vento gelado a cortar a respiração de quem sai à rua sem um longo casaco até à boca; acabaram-se os sumos de laranja açucarados a substituir chás à lareira, e as t-shirts coladas ao peito. Agora há cachecóis às riscas azuis e brancas a esvoaçar sobre as pedras da calçada, e praias desertas com areia fria. As ruas ficam mais limpas e o ar mais transparente. O Inverno, mesmo em Lisboa, é mais branco do que o verão. Há dias em que cai chuva e podemos ficar em casa sem peso na consciência. O Inverno traz Borges e filmes em série, e meias aquecidas. Há mantas e avós a tricotá-las. Os senhores das lojas da Baixa usam coletes de lã verde e têm o cabelo branco despenteado sobre a careca, porque se esqueceram de se olhar ao espelho quando entraram na loja de manhã. Saem vapores quentes das lojas e dos cafés. Os olhos ficam mais profundos e a barba pica mais. No Inverno, as roupas são mais escuras e as mulheres usam botas castanhas. Custa sair do duche de manhã. Os pés acordam frios. Até é frio, o Inverno em Lisboa. Mas tem sol, luzes de fim de tarde, ondas que batem com força e fazem espuma; vendedores de castanhas, miradouros aquecidos para agarrar no café com luvas escuras. Tem lisboetas de cabelo ondulado e batôn para o cieiro. Sorriem sempre quando abordadas, as lisboetas, mesmo no Inverno. Eu também. Adoro o Inverno. Ainda bem que chegou.

Wednesday, December 20, 2006

Entre amigos

- Andas triste.
- Ando.
- Porquê?
- Ainda não percebi bem.
- O que te faz correr?
- Acho que todos procuramos ser felizes com o que temos. Acho que é isso.
- E não és feliz com o que tens?
- Eu não tenho nada!
- Não tens nada!?
- Não tenho certezas.
- E precisas de certezas?
- Ou de respostas.
- Então faz perguntas.
- Então pára de me pedir respostas.
- Tenho dificuldade em perceber-te.
- Também eu. Quero dizer, a ti não. A mim.
- Se calhar não andas a fazer as perguntas certas.
- Mas será que as há?
- Não sei. Eu por exemplo nasci já com as respostas de que precisava. Em ti, vejo que vives de perguntas e evitas as respostas. Acho que tens medo das respostas.
- Se calhar tenho medo das respostas.
- Mas és feliz?
- Sou. Mais do que isto não sei se poderei ser.
- Porquê?
- Porque quando se faz perguntas, como eu, e se sabe que não há respostas certas, refugiamos a nossa felicidade no próprio facto de questionar.
- Então pronto, questiona e és feliz.
- Não. Repara: toda a questão tem como finalidade ser respondida. Se baseio a minha felicidade numa Pergunta, e se essa pergunta exige uma resposta, só estarei completa quando encontrar a resposta.
- Mas acabaste de dizer que és feliz a perguntar!
- Feliz sim, mas não completa.
- Ah então és feliz mas incompleta.
- Sim. Se calhar podemos pôr as coisas assim.
- Mas tens de perceber que nunca vais ser completa. Existe demasiado, para alguém se completar.
- Tu completas-me.
- Que querida. Mas sabes que somos só amigos.
- É por isso que ando triste.

Tuesday, December 19, 2006

Xico e Lau: para vocês


The Arcade Fire - Intervention
Bem.

Depois da última música, já falei aqui de livros, estamos em diálogo aberto sobre o aborto, mostrei uma imagem de Kathmandu e uma pequenita no Tibete.

Deixam-me agora, se faz favor!!, mostrar ao Mundo o novo single dos Arcade Fire??

Isto é mesmo importante para mim. O novo cd dos Arcade Fire, Neon Bible, vem aí.
Os Arcade Fire são uma banda do Quebec, Canadá. Estiveram cá em Paredes de Coura (Verão 2005), mas eu só os ouvi pela mão da Raquel Bulha (Antena 3), no Outono desse ano.
Pessoalmente, acho que são quase demasiado bons. Pareço um puto excitadinho.

Este single apareceu pela primeira vez, obviamente, no programa do Zane Lowe, @ BBC1.

Monday, December 18, 2006

Kathmandu

copyright: El-Gee

Eu,

se fosse médico, recusava-me a fazer um aborto.

Eu, se fosse médico, tinha feito este juramento:

"I swear by Æsculapius, Hygeia, and Panacea, and I take to witness all the gods, all the goddesses, to keep according to my ability and my judgement, the following Oath.

To consider dear to me as my parents him who taught me this art
; to live in common with him and if necessary to share my goods with him; To look upon his children as my own brothers, to teach them this art if they so desire without fee or written promise; to impart to my sons and the sons of the master who taught me and the disciples who have enrolled themselves and have agreed to the rules of the profession, but to these alone the precepts and the instruction.

I will prescribe regimens
for the good of my patients according to my ability and my judgment and never do harm to anyone.
To please no one will I prescribe a deadly drug nor give advice which may cause his death.
Nor will I give a woman a pessary to procure abortion.

But I will preserve the purity of my life and my arts.

I will not cut for
stone, even for patients in whom the disease is manifest; I will leave this operation to be performed by practitioners, specialists in this art.
In every house where I come I will enter only for the good of my patients, keeping myself far from all intentional ill-doing and all seduction and especially from the pleasures of love with women or with men, be they free or slaves.
All that may come to my knowledge in the exercise of my profession or in daily commerce with men, which ought not to be spread abroad, I will keep secret and will never reveal.
If I keep this oath faithfully, may I enjoy my life and practice my art, respected by all men and in all times; but if I swerve from it or violate it, may the reverse be my lot."

Eu, que não sou médico, mas que penso nas coisas, vou votar NÃO no referendo.

Sunday, December 17, 2006

Natal em Livros


Este Natal, quero receber livros. Agora, se as souber, só leio os autores nas suas línguas originais, pelo que os meus Leitores que me quiserem dar um presente de Natal baratinho em preço mas rico em valor, já sabem: um livro escrito por um autor da seguinte lista, na língua original.

As línguas originais admitidas são:

Português, Castelhano (Espanhol), Inglês, Francês, Italiano, Alemão

Por favor, não me ofereçam o "Guerra em Paz" em Russo porque eu não sei falar russo.

Eis os autores que gostaria de receber este Natal:

John Steinbeck
Ernest Hemingway
F. Scott Fitzgerald
Truman Capote
J.D. Sallinger
W. Sommerset Maugham
Mario Vargas Llosa
Fjodor Dostojevski
Luis Sepulveda
Ernesto Sabato
Jorge Luis Borges
Julio Cortazar
Mia Couto
Jose Eduardo Agualusa
José Saramago
Günther Grass
Eça de Queiroz
Italo Calvino
Milan Kundera
Gabriel Garcia Marquez (mediante consulta prévia, porque tenho quase todos)
Thomas Mann


A esta lista, acrescentam-se todos os autores Prémios Nobel da Literatura e os vencedores dos Prémios Pulitzer, bem como os livros que ganharam o prémio (Man) Booker Prize.

Gostaria ainda de lembrar que deixo aos meus queridos ofertantes de livros a liberdade de escolherem algo fora desta lista, desde que se trate de uma recomendação pessoal vossa. Como é evidente, há muitos autores que deixei de fora, muitos por uma simples questão de memória.

Destas recomendações pessoais, excluam por favor livros de políticos falhados ou relacionados com futebol. Refiro-me aqui, num exemplo não-exaustivo, aos livros de Carolina Salgado ou Pedro Santana (da mãe) Lopes (do pai).

Obrigado, bom Natal, e mandem-me também a vossa lista de presentes. Para alguns de vocês, aliás, já destinei algumas boas obras.

(Quase me esquecia: os "Penguin Classics" estão 3.15€ (três euros e quinze!!) na Fnac do Chiado)

Saturday, December 16, 2006

Karen O, a guitar and a map


Probably, the ugliest woman I've ever virtually fallen in love with.

Borrow the World



Vagueando pelo YouTube à procura do cover dos Arcade Fire da "Maps" dos Yeah Yeah Yeahs, dei por mim com este home-made.

Acho que ela tem jeito. Ou então a Maps é mesmo boa. (E é.)

Tenho a certeza de que ninguém vai gostar disto sem ser eu. Não faz mal. Este blog é meu.

Mais dela aqui.

They don't love like I love you.

Já agora, aqui está a Maps cantada pelos Yeah Yeah Yeahs. Versões ao vivo. Metade da graça, o dobro da energia.

E aqui está a versão original de estúdio. Para ouvir com as colunas para lá de metade. Quem tiver asas, deve retirá-las, senão fica com dois pares.


Quanto ao cover do Arcade Fire, continuo à procura.

Thursday, December 14, 2006

Next stop: happiness

copyright: El-Gee

Alcateia

Wolf Parade


Há cinco razões pelas quais eu gosto de Wolf Parade:

Com 0,5% de responsabilidade, porque se chamam Wolf Parade.

Com 0,5% de responsabilidade, porque se estrearam com um cd chamado Apologies to The Queen Mary.

Com 1% de responsabilidade, porque decidiram dar a uma música o nome Dear Sons and Daughters of Hungry Ghosts (!!!).

Com 1% de responsabilidade, porque são canadianos e lançaram um cd de indie-rock em 2005: rings a bell?

Com 97% de responsabilidade, porque são mesmo bons

Isto sou eu a ser chato

Vou ser chatinho e reforçar que este é um dos conjuntos de pessoas que mais se aproxima da perfeição, no que cria.

Xico, obrigado por concordares.

(Estou a escrever isto suspenso num espaço indeterminado entre o tecto e três acordes, de cabeça para baixo e as pernas esticadas esvoaçando irrequietas. Dói-me um bocado a cabeça por ter de escrever num computador tão em baixo de mim e com os braços esticados, mas por sorte ele também está entusiasmado e acaba de se levantar na minha direcção, pelo que, neste preciso momento, eu e um computador estamos fragilmente existindo sem peso nem mente num espaço vazio bem acima do chão. Espero que a música não acabe já, senão vou-me magoar quando cair.)

Wednesday, December 13, 2006

Breves retalhos da vida de um peixe feliz

Depois de reacções entusiásticas à menção do nome "Gabo", convém aqui recordar a ode que lhe foi feita pelo seu dono e primeiro amigo, pouco após a sua morte. Trata-se de um e-mail de 17 de Dezembro de 2004, enviado aos vários amigos de Gabo para que se pudessem enlutar em memória da sua vida.

Peço desculpa por ser em italiano, mas era a única língua que o nosso amigo conhecia. Convém lembrar que esta sua biografia póstuma foi composta ao som enérgico de "Encore", dos Linkin Park com o Jay-Z. Convém também sublinhar que não foi feita nenhuma edição ao texto de 2004, para que possa - nos seus erros e na sua genuinidade original - dar uma ideia do que foi a vida de Gabo e do quanto a sua morte tocou quem o acarinhou em vida.


"Ragazzi, vi scrivo per dare la brutta notizia della morte di Gabo. Ieri, 16/12, flutuava nel suo acquario, dopo il suo ultimo suspiro. A Gabo e alla sua memoria, si dedica una piccola biografia della sua corta pero ricca esistenza.

Gabo è stato acquisto al 12 Ottobre 2004, alla Porta Portese, dove abitava con decine di altri amici. Entrato a casa del suo padre umano, Luigi, e degli suoi coinquilini, dal inizio ha trovato un ambiente tranquilo, dove poteva essere felice - era la casa felice. I tempi sono passati e Gabo se è innamorato di Bric - infatti, l'unica donna che avra conosciuto alla casa felice. Dopo un rapporto intenso e passionato, Bric è misteriosamente morta, lasciando Gabo da solo nel suo piccolo acquario; nel mondo. In questo periodo, si diceva che era stato lui a ucciderla, con la sua fame sessuale. E un argomento che mai è stato provato e serve sopratutto per alimentare la cativa curiosita della communita Erasmus, sopratutto interessata a storie sessuali.

Arrivato il periodo di Natale fa il suo primo viaggio, spendendo il Natale e il capodanno a Via Marcantonio Odescalchi, dove gli vogliono dare champagne per festeggiare l'arrivo del 2004. Gabo sopravive eroicmente alle atrocità dei ubriachi festeggiatori e torna, il 10 Gennaio, a casa. Nel fratempo, un essere con cui Gabo sempre ha avuto un rapporto amore-oddio è rimasto a Lisboa: Joao. Gabo si trova adesso con due ragazze - Cuca e Filipa - e due uomini, Luigi e Javi, che gli danno l'amore e il benesse necessari alla sua felicitta. Un mese dopo, entra nella sua vita Christine, che - anche se da sempre ha minaciato di magiarlo - lo trata come una vera mama, nei momenti in cui il suo padre, Luigi, era troppo arereo per tratarlo.

I tempi passano e arriva il Giugno 2004. Nel fratempo Gabo fa dicene di amici tra la communita Erasmus romana, diventando parte sua e tema di innumere conversazione. Dopo un periodo a casa di amici portoghesi del suo padre, Gabo fa un'attribulato viaggio verso Santa Maria in Trastevere, e di la alla Casa della Luce, dove passa la sua ultima notte romana. Il giorno dopo, diventa il primo pesce a fare il viaggio aereo Roma-Lisboa - dentro di una bottilgia - , dove un'altra volta mostra il suo carattere sociale, facendo amici tra i compagni di volo brasiliani di Luigi.

A Lisboa, Gabo conosce un'acquario nuovo e una nova famiglia, che dal'inizio gli da l'amore e l'amicizia che aveva a Roma. Qua comincia il periodo piu atribulato dalla vita di Gabo, con viaggi costanti al'Algarve - dove rivede i amici romani Fer e Cuca - o a Sintra. A Settembre rivede Toni, Martin e Nico, magari l'ultimo Erasmus romano (oltre a Luigi) che lo vedra con vita.Dopo un Inverno di salute instabile, Gabo perece il 16 Dicembre, lasciando pure nella data dalla sua morte un segno della sua originalita: 1 anno, 2 mesi e 4 giorni, il tempo che è passato dal suo arrivo alla casa felice alla data della sua morte, è una progressione geometrica.

Nella sua breve vita, Gabo ha sperimentato l'Erasmus. Ha visto, del suo piccolo acquario, delle feste, delle cene, delle partite di calcio sulla tv. Ha visto gente che beveva che fumava delle canne, che rideva. Ha vissuto delle discussioni politiche e teologiche e pure conversasioni meno serie. Ha visto coppie che se amavono e gente che arrivava ubriaca e cadeva sul solo. Ha visto come tanti amici sanno fare casino quando sono insieme a una casa e ha visto, con due belle valenciane, come il Valencia ha vinto la coppa Uefa contro il Marsiglia. Ha visto sulla tv come il Milan perdeva la Coppa Intercontinentale, come i italiani morivono nel'Iraq e come il premier Berlusconi contiuava il suo periplo verso il potere assoluto. Ha presenziato uno dei grandi anni della mitica AS Roma al sono dei inumeri cd che gli sono stati fatti conoscere - da REM a OASIS, da JAmes s Bob Marley, da Silvio Rodriguez a Tiziano Ferro. Gabo ha conosciuti e fatto amicizia con persone di oltre 15 nazionalita.

Mentre viveva, Giovanni Paolo celebrava 25 anni di pontificato, i Giochi Olimpici hanno tornato alla sua culla, il Porto e diventato campione Europeo. Due governi portoghesi sono caduti, un attentato ha ucciso centene di persone, e 10 nuove paesi sono entrati nella Unione Europea. Un portoghese e diventanto Presidente della Comissione, un piloto - Michael Schumacher - e un tenista - Roger Federer - sono diventati miti eterni e un libro - Il Codice da Vinci - è apparso per contestare una storia con 2000 anni. Mentre viveva, il mondo girava piu veloce di sempre, la massa studentile si è mossa contro un'imperio e un'imperio si e mosso contro il mondo.

Gabo, dopo questo anno, due mesi e 4 giorni, ti prestiamo un'ultimo omaggio, sapendo che sei stato felice."

Finding supper in Sri Lanka

copyright: Steve McCurry

Sorry Steve, but I had to post this. Please don't sue me! This is the most genuinely balanced photo on your portfolio on the website. For me, the main element here is the wind. But who am I?

Tuesday, December 12, 2006

Green is the new PINK


Tá na net.
Tem link.
Tem autor.
Tem pedido de desculpas por estar a usar.

Tem tudo.

Green is the new pink.

Adoro.

Monday, December 11, 2006

Interpol

Convém não esquecer que isto é muito bom e nunca é tarde para voltar atrás e ouvi-los, ansiando pelo próximo cd.

Wednesday, December 06, 2006

A impotência do tempo

Pequim, China
copyright: El-Gee

Fly high

Isto é uma notícia maravilhosa. A partir de agora, dão-nos milhas por voar com animais de estimação na TAP. Recebi isto no mail e achei que era a gozar. Depois fui ver ao site e, realmente, era a TAP que me estava a enviar o mail!

Esta nova promoção recorda-me a mítica viagem que fiz com o meu peixinho cor-de-laranja Gabo, ele numa garrafa de San Pellegrino, eu dentro das minhas roupas, ambos dentro de um vôo da TAP entre Roma e Lisboa.

Hoje, que já não permitem líquidos nos aviões, mas incentivam o transporte de animais de estimação, como seria?

Pobre Gabo, hoje morto, poderia valer 500 milhas..

Tuesday, December 05, 2006

Sunday, December 03, 2006

Childhood in Kathmandu

copyright: El-Gee

Thursday, November 30, 2006

Primeiras Impressões da Terra


Fala-se muito de muita coisa. Então em música, todos os dias aparece alguém novo, algum teenie idol, algum ex-criminoso a debitar rimas, alguma banda de garagem inglesa ou algum australiano com uma viola acústica.

Depois, aparecem aqueles de quem não se fala. Há que gostar de uns para se saber dos outros, e por aí fora, até se descobrir música pouco divulgada que nos faz levantar do ar.

No meio disto, alguns vendem milhões e outros nem saem do anonimato. Alguns, sem voz, são aclamados por metade do Mundo e outros, génios, ficam para sempre confinados ao seu reduzido círculo de ouvintes. Ou vice-versa

Qualidade e vendas nem sempre são sinónimos. Geralmente nem são.

E independentemente disto e de tudo o resto, há um CD perfeito chamado First Impressions of Earth dos The Strokes. Já tem uns meses, não estou a dar novidade a ninguém.

Este cd é a obra de arte mais perfeita que alguém deu ao Mundo em 2006.

No meu 2006, há o antes e o depois disto. Este CD anda sozinho. Tem asas. É uma bomba de energia a rebentar em cada repeat. Demoro menos cinco minutos num percurso de vinte, quando o venho a ouvir a caminho de casa. Quase que voo.

E de cada vez que ouço, não resisto e volto a perguntar-me o que me pergunto há meses, sem encontrar a resposta: como é que alguém fez uma coisa assim?

Wednesday, November 29, 2006

Pegadas na lama escura


I.

Esta pessoa que vemos na fotografia chama-se António de Almeida Santos e foi Presidente da Assembleia da República Portuguesa entre 1995 e 2002. Hoje, é presidente do partido que forma o nosso Governo e que detém a maioria dos assentos de deputado na Assembleia da República.

Recordemos alguma da Legislação do foro exclusivo da Assembleia da República, tal como é definida no site do Governo Português:

"Regimes de eleições e referendo; cidadania e símbolos nacionais; regimes do estado de sítio e de emergência; organização e funcionamento da Defesa Nacional, das forças de segurança, e dos Serviços de Informação; restrições a direitos dos militares e agentes das forças de segurança; regime geral do orçamento do Estado, das regiões e das autarquias"

Recordemos agora, muito resumidamente, alguns artigos que definem a Assembleia da República, tal como estão apresentados na Constituição da República Portuguesa. Segundo esse documento que rege o nosso Estado, "a Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses" (Artigo 147º), e "os Deputados representam todo o país " (Artigo 152º).

Sobre o mesmo tema, o site da Assembleia da República indica que "compete ao Presidente [da Assembleia da República] representar a Assembleia, presidir à Mesa, dirigir os trabalhos parlamentares, fixar a ordem do dia, depois de ouvir a Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares, assinar os Decretos e outros documentos expedidos em nome da Assembleia da República e superintender na sua administração.

Ainda nesse site, vale a pena, antes de nos debruçarmos sobre o cerne deste artigo, recordar as palavras do actual Presidente da Assembleia, Jaime Gama, sobre o órgão a que preside: "A Assembleia da República é o coração da vida política e a alma da própria democracia, a casa representativa do povo português, eleita por todos nós, cidadãs e cidadãos de Portugal"

II.

Feita a apresentação ao ex-Presidente e explicitada que está a função e o impacto na vida de todos os portugueses do órgão a que durante sete anos presidiu, analisemos com atenção as palavras com que responde, numa entrevista de 29 de Novembro de 2006 à revista "Sábado", à pergunta As pessoas pedem-lhe cartas de recomendação?:

"É verdade. Confesso que uma vez por outra ainda meto cunhas, mas não tanto agora. Era fácil dizer: tenha paciência, mas cunhas eu não meto. Mas isso é desumanidade, porque ali há uma aflição e eu tenho possibilidade de a resolver."


Esta afirmação é tão enorme e despudoradamente aberrante, que eu não só não sei por que parte da sua alarvidade começar a dissecá-la, como também não creio que esteja a honrar a inteligência de Leitor algum ao tentar explicar-lhe a minha opinião sobre a mesma, já que estas palavras falam por si.

No entanto, pensemos em conjunto:

Haverá algo mais anti-democrático do que meter uma cunha? Haverá algo mais desprestigiante para uma instituição pública do que existirem cunhas perpetradas por altos membros do seu aparelho? Haverá algo tão despudorado como alguém eleito pela unanimidade dos deputados à Assembleia da República admitir que o faz? Haverá algo mais egocênctrico do que justificar uma cunha metida por abuso de poder, com o desejo de resolver uma aflição?

Haverá algo mais idiota do que ter sido Presidente da Assembleia da República durante sete anos e ainda achar que resolver o problema de alguém com uma cunha não vai causar um desequilíbrio no sistema - em qualquer sistema - prejudicando mais pessoas do que a que se ajudou?

III.

Haverá alguém, para além de mim, que se preocupe com isto?

Monday, November 27, 2006

Caminhos de Fé


Lhasa, Tibete


copyright: El-Gee

Voiceless interrogation

copyright: El-Gee

Saturday, November 25, 2006

Obrigado!


Viajar sozinho é, para todos os efeitos, uma experiência pessoal. De certa forma, e apesar das pessoas que se conhece e com quem se partilham Momentos, a memória da viagem será sempre individual, solitária. Isto é um grande perigo, pois põe em causa a Sobrevivência da viagem, que fica tenuamente ligada à frágil memória da pessoa que a viveu.

Ao passar para este blog os meus dias, e ao ver como era acompanhado por quem me lia, encontrei uma forma de legitimar a minha viagem, de a tornar real, na medida em que os Leitores eram a prova palpável de que eu estava a viajar e a garantia de que essa viagem nunca se perderia nos corredores incertos da memória.

E, quanto mais comentários lia, mais vontade tinha de partilhar, pois sabia que estava a viajar acompanhado. Os meus Leitores foram, para mim, um companheiro tão amigável e tão exigente como se estivessem a viajar comigo. Talvez por isso tenha, por eles, passado tantas horas em cafés de internet moribundos, escrevendo furiosamente em teclados hebraicos duros como pedra. Talvez por isso tenha cogitado mentalmente frases que resumissem o que sentia, durante o dia. Por vezes, dava por mim a sentir em frases; isto é, ao mesmo tempo que sentia, transformava os sentimentos em palavras.

Se bem que eu o fizesse com o simples propósito de proporcionar ao meu Leitor, mais tarde, uma leitura o mais aproximada possível dos meus sentimentos, esta é uma experiência curiosa e muito mais importante do que parece: colocar sentimentos em palavras é o maior desafio e o maior constrangimento da comunicação humana. Jamais serão as palavras suficientes para exprimir o que pensamos. Portanto, quanto mais tentarmos, melhor nos compreenderemos mutuamente.

Seja como for, porque foram a minha motivação e a minha crítica, dirijo a palavra - pela primeira vez neste blog, que sempre foi dirigido ao Abstracto - directamente aos meus Leitores durante esta viagem: Obrigado!

Deu-me imenso gozo ler os vossos comentários e, sem eles, facilmente teria perdido a motivação para escrever. Apesar de nunca ter respondido directamente a ninguém, procurei incorporar os vossos comentários, perguntas e expectativas nos meus textos seguintes. Daí que estes textos também sejam vossos.

Esta lenga-lenga parece totalmente absurda mas, dado que o blog é meu, resvervo-me o direito de estar aqui com lamechiches até me apetecer. Se o faço, é porque sinto mesmo que o vosso acompanhamento foi importante e quero deixar-vos isso claro.

Foi muito divertido ler desconhecidos gostarem do que eu escrevo e, ainda mais, saber que agradei aos meus amigos.

Vou continuar com a política de não responder aos comentários um a um, mas ao/à defensor/a ofendido/a dos hippies, gostava de lembrar que não é por uma pessoa me salvar a vida que mudo a minha opinião sobre ela: na verdade, um Ser Humano salvar a vida a outro é um acto normal e obrigatório, que não me merece louvor especial. O inverso é que merece crítica.

E agora, maisde1000vozes volta a Lisboa. Os que continuarem a ler, não esperem muito disto: servirá, como sempre, para descarregar Energia.

Wednesday, November 22, 2006

Clubbin' in Beijing

Big Mac

Estou em Pequim durante um dia, à espera do meu voo para Lisboa. Um dia em Pequim. Chego às oito da manhã, o dia cai as seis da tarde. 15 milhões de pessoas, 10 horas. Um milhão e meio de pessoas por hora.

Realmente, estou mesmo só de passagem.

Depois de cidades relativamente acolhedoras como Kathmandu e Lhasa, sou apanhado desprevenido pela dimensão desumana (ironicamente, cheia de humanos) de Pequim. Como primeiro acto da minha jornada, entro num MacDonald’s. Lembro-me do meu amigo Lorena escrever no seu brilhante blog que, ao terminar o seu périplo de 3 meses pela Ásia e devorar um BigMac, sentir que essa sim era uma refeição verdadeiramente gourmet, depois das iguarias exóticas do Oriente. Na altura, compreendi o que escrevia mas não penetrei ao certo no significado da frase. Pareceu-me um divertido malabarismo literário. Não era.

Aquele Big Mac sabe-me a carne fresca, sabe-me a casa, sabe-me a metrópole, a avenidas com trânsito ordenado, a arranha-céus, a roupas caras, a multinacionais luzindo em cartazes de neon, a vidas agitadas, a mochilas de escola, a sobretudos compridos, a centro comercial, a passos apressados, a livros em inglês, a taxímetros que funcionam, a horários de autocarro, a calças de ganga, a sábado de manhã.

O MacDonald’s está cheio. As lojas, os transportes e as largas avenidas de oito faixas também. É bem cedo de manhã mas os 15 milhões de pessoas não despertam para um dia de descanso: despertam para o consumo, para o movimento, para uma Vida que se sente a respirar, nesta enorme metrópole. Se não fossem os sinais em chinês e os olhos em bico, poderia estar em qualquer grande metrópole desenvolvida do Mundo. É certo que cada cidade tem as suas características únicas e essenciais, a sua impressão digital que a distingue das outras. Porém, o primeiro olhar de alguém que chega da vastidão tibetana não procura logo o Único: começa por procurar o familiar. Os passeios limpos, o cheiro fresco a manhã metropolitana, os sinais de trânsito, os peões na passadeira, as montras familiares, os prédios enormes e os vidros que reflectem carros reluzentes que passam lá em baixo na estrada. Pequim é uma Cidade do Mundo. Dez minutos bastam para compreendê-lo.

Idealogias

Centro a minha exploração no que, para mim, é o mais vivo de qualquer cidade: a sua praça principal. Recordo o nome Tiananmen da memorável imagem do jovem estudante que, em protesto contra as restrições das liberdades individuais da China de 1989 (a data aqui é irrelevante, pois o protesto é tão actual hoje como há há 17 anos), se colocou diante de um tanque em movimento no meio da praça. Vivi durante muitos anos fascinado por esse herói anónimo que se lança voluntariamente para uma batalha desigual frente a um tanque de 10 toneladas, até ler, algures, um pequeno parágrafo onde alguém louvava o condutor do tanque.

O Mundo vê na imagem o Homen Livre contra a Máquina Opressora, mas esquece-se do militar que conduzia essa máquina que, apesar das ordens de avançar, não resiste à sua Humanidade e trava abruptamente quando o seu jovem conterrâneo se coloca em rota de colisão com a máquina assassina que conduz. Também ele, o segundo herói dessa imagem, terá desaparecido, provavelmente, nos corredores do terror chinês.

Estes e outros pensamentos me percorrem enquanto me deixo embasbacar pela enormidade da praça. É um espaço alarve, frio, cinzento. Terrível. Edifícios austeros decoram as suas extremidades e espalham-se inclusivamente pelo meio da praça, guardados por uma infinidade de guardas primorosamente fardados, nas suas expressões sérias. Que tristes! Tristes vidas, as dos guardas e soldados, empedradas marionetas de um regime obsoleto.

Diz Maruja Torres no seu magistral relato de um périplo pela América Latina, Amor América, que “No hay nada más absurdo que una frontera, ni nadie mas idiota que el tipo uniformado que se siente importante porque cree que divide el mundo al exigir un papel.”.

Não há nada mais absurdo do que uma praça principal com centenas de soldados armados, nem ninguém mais idiota do que o tipo uniformizado que se sente importante porque crê que é respeitável ao exigir ordem à força da arma que traz ao ombro.

Eu, cidadão orgulhosamente livre de um país liberal, olho com escárnio para aquelas figuras tristes, dizendo-lhes, na linguagem universal da mente: “a mim não me metes medo nem impões respeito; a mim fazes-me pena e provocas-me gargalhadas de indiferença”.

Que livre me sinto ali no meio daquela opressão socialista, rodeado pelas bandeiras chinesas reverencialmente guardadas, mirado constantemente pelos olhos aparentemente benevolentes de Mao Zedong, um dos maiores assassinos da história, cujo enorme retrato está pendurado numa das extremidades da praça. Mesmo por entre todo o burburinho económico das suas enormes avenidas, roupas caras, pessoas bem sorridentes e empresas de todo o Mundo que ali se estabelecem, a China é orgulhosamente socialista, opressora, castradora. A Praça da Tiananmen, palco vivo e efeverscente de amores e desamores, primeiros passos e trambolhões, visitas turísticas e piqueniques, bicicletas e papagaios de papel, é, ainda hoje perigosamente ideológica, esmagadora e anónima. Triste. Arcaica.

Ridícula.

A Cidade Proibida

Depois da Procura do passado em Lhasa, em Pequim desejo voltar à busca do presente. Porém, ecoam-me na memória os passos d’”O Último Imperador” nos pátios desertos da Cidade Proibida e, blasfemando contra Bertolucci pelo realismo com que filma esse espaço monumental, decido que não posso sair de Pequim sem ver o Palácio das maiores e mais poderosas dinastias chinesas de séculos idos, mesmo que para isso tenha de abdicar da continuação das minhas deambulações pela enorme e real metrópole que é a Pequim do século XXI.

Mesmo tendo visto o filme, não estava preparado para algo tão grande em espaço e tão sublime em beleza. A Cidade Proibida é uma sucessão de pátios muralhados, gigantescos, rodeados de templos e palácios. Após cada pátio, outro, como um sistema de comportas de água. Deixo-me assim derivar naquele sentido único, imaginando que sou uma rolha de cortiça no canal do Panamá: flutuo no primeiro pátio, vou até às portas do segundo, passo para lá, flutuo no segundo..e deixo-me ir, de pátio em pátio, de templo em templo, de memória em memória, de passo em passo, até ser só mais um pequeno chinesinho rodeado de eunucos. Até ser só um último imperador.
Quando saio, ainda imaginando ouvir o eco dos meus passos contra paredes frias da muralha, sou apenas o último português e os eunucos são turistas, tão numerosos quanto o eram os serventes dos imperadores Ming.

Clubbin’

Como insisto em andar a pé para todo o lado, regresso ao hostel onde tinha deixado a mochila de manhã, exausto. Tenho atrás de mim muitos quilómetros de caminhada num só dia. Caio no sofá do hall mas lembro-me de arrastar uma garrafa de cerveja antes da queda.

São conhecidas as propriedades sociológicas e químicas de uma garrafa de alcool sobre uma mesa. Em menos de nada, eu e os ocupantes dos restantes sofás somos um só e, passada a quarta cerveja partilhada, duas francesas não têm dificuldade nenhuma em arrastar-me a mim e a um argentino para uma noitada entre alunos de arquitectura franceses a estagiar em Pequim.

Descubro um bar urbano e universal, cheio de gente expatriada de todo Mundo. Descubro cocktails inebriantes, drum ‘n bass inovador, luzes fluorescentes. Descubro a dança, o calor das horas que passam, os rr’s afrancesados da Amandine.

Passam as horas e as bebidas, os sons e os calores, passam as luzes à minha volta, dançando comigo e eu com o espaço, movendo-me descomprometido ao som do momento, entre cá e lá, entre encarnado-vivo e amarelo fluorescente.

Uma delas olha-me com ar divertido durante longos segundos e depois segreda-me: “When, in two days, they at work ask you how was your weekend, you can answer” e faz um pequeno silêncio, arregalando os olhos castanhos-amêndoa, “”I was dancin’ in Beijing!””

Sorrio-lhe deleitado com a ideia, tão simples mas tão real. A amiga, que ouvira a conversa pelo canto do ouvido, puxa-me e diz: “Or even better: I was clubbin’ in Beijing!””

Olho-as meio rodopiante, entre Pequim e Paris, num enorme sorriso, enquando o remoinho dos nossos corpos inebriados varre a pista em espiral. Perdemos a noção do tempo e da linguagem, e deixamos as horas passar, por entre os nossos corpos inquietos, as luzes densas, o ritmo do baixo e o fresco calor dos cocktails..

Quando, 24 horas depois, momentos antes de aterrar em Munique, - após de ter sobrevoado, num dia sem nuvens e numa perseguição constante do pôr-do-sol, a muralha da China, o deserto de Gobi, toda a Sibéria e as repúblicas da Ásia Central - fecho os olhos, reclino a cadeira e recordo as última noite da minha viagem, os derradeiros momentos orientais do meu périplo pela Ásia montanhosa e o formigueiro provocador do meu corpo inquieto, uma frase sobrepõe-se a qualquer pensamento; uma frase sobrepõe-se a qualquer antevisão do regresso a casa, qualquer expectativa, qualquer saudade, qualquer ansiedade, qualquer medo, qualquer obstáculo; qualquer adversidade.

Uma frase preenche-me a mente, penetra-me a alma, flui-me livre por todos os músculos cansados depois de três semanas na estrada, fortalece-me para o regresso a casa, para mais uma partida, para outro regresso e para quantas chegadas e partidas a minha vida me reservar:

I was clubbin’ in Beijing.

Saturday, November 18, 2006

Luzes frias na madrugada, vapores quentes no infinito

Nao e necessaria muita modestia para admitir que nao consigo por em palavras o que e a paisagem do comboio que abandona a fria madrugada de Lhasa para se aventurar pelos Himalayas fora em direccao a Pequim.

Quando chego a plataforma de embarque, luzes bacas iluminam carruagens de um verde metalico, que desaparecem na no horizonte da estacao. Vapores quentes escorregam, vadios, pelas bocas dos passageiros que se apressam em direccao as suas respectivas carruagens, fundindo-se, sob a escassa claridade do dia que ainda nao nasceu, com os fumos dos cigarros que os oficiais de bordo fumam, antes de mais uma viagem. Impecaveis, fardados com densos sobretudos que enrijecem os seus troncos direitos, inalam uma ultima quente nicotina, antes de partirem em direccao ao coracao das montanhas, onde o oxigenio e escasso e fumar e proibido.

Como sempre, estou atrasado, e o frio e para mim uma dor distante, de quando acordei no meu gelado quarto em Lhasa. O calor das horas, do entusiasmo, do ar sufocante do taxi que me leva ate a estacao, consola os meus musculos gelados e, quando me sento a janela da carruagem-restaurante, o cha quente que me aquece as maos frias nao tem necessidade de confortar o resto do meu corpo aconchegado.

Nao sou o unico que se arrepia quando a enorme serpente de quinze carruagens se comeca a mover devagar e irrevogavelmente em direccao a capital da enorme China. Um frances com quem partilharei o quarto, as noites de conversa e as discussoes sobre as agonias da existencia olha igualmente pela janela e, sei-o, pensa tambem no sentido da vida a bordo. Ele, a sua mae, uma americana e uma mao-cheia de chineses ficarao o resto da tarde, cada um a sua janela, a meditar sobre sabe-se la que Verdade.

Nada e verdade num comboio em andamento. Enquanto penetramos no arido planalto tibetano, onde manadas enormes de potentes iaques pastam ate a imensidao do horizonte montanhoso, questiono-me sobre a inconsequencia de qualquer decisao a bordo. Enquanto troco impressoes sobre trivialidades, amor e literatura colombiana com os meus tres novos amigos, questiono-me sobre a solidao de qualquer acto naquele comboio em andamento.

Cada enorme montanha e deixada para tras pouco depois de aparecer, e torna-se apenas num ponto solitario num passado distante. O mesmo acontece aos cavalos selvagens, aos vales glaciares, ao pequeno pastor que luta contra a altitude e acena ao progresso que o ignora na sua passagem veloz pela planicie. Tudo fica para tras menos nos, peoes do destino voluntariamente condenados a uma existencia movel, onde tempo e espaco perdem a sua preponderencia. Sou parte de um corpo em movimento, que nao controlo e do qual nao posso escapar.

Apesar da libertacao da enorme planicie, do frio que imagino la fora enquanto mais um cha me aquece o corpo, das assustadoras montanhas que aparecem gigantescas na distancia, estou distante da liberdade. Nao posso ir para alem de uma determinada distancia limitada pelo metal do comboio, nao posso ir para alem de um sistema social criado pelo destino que junta os restantes passageiros na mesma jornada que eu. Em 48 horas num comboio, cabe-me uma parcela de um pequeno mundo novo, que ajudo a nascer e a sobreviver.

Os restantes passageiros tornam-se gradualmente no meu unico Mundo: sao os outros elementos de um pequeno e unico ecosistema que divaga pausadamente pela montanha acima. Ha uma total impotencia face ao destino - tudo o que faco, cada decisao que tomo, nao e totalmente independente. Estou num comboio do qual nao posso sair. Gradualmente, apercebo-me da minha inocencia, da minha impotencia, do ridiculo das minhas accoes: ha algo maior que as limita, uma entidade superior a mim, maior que as montanhas que agora desaparecem para dar lugar a uma infinita planicie coberta de neve e gelo: o Espaco. A Falta de Espaco.

Nessa tragica letargia, descontraio entre mais um cha, e aceito a minha impotencia, acabando por adorar o facto de que durante 48 horas nao tenho mais nenhuma responsabilidade para alem de viver e respirar. Mesmo que quisesse, nao poderia nem produzir nem decidir nenhuma accao radical que mudasse o que quer que fosse na minha vida e no Mundo. Entre Lhasa e Pequim, primeiro penetrando no mais remoto planalto do Mundo e depois cruzando o coracao da China industrial, vivo numa linha paralela ao Mundo real. Uma linha densa e metalizada.

Uma linha de comboio.

Enquanto os quilometros passam, a vida a bordo repete-se numa inconsequente rotina: ir ao quarto buscar algo, voltar a carruagem-restaurante, conversar com quem la esta, abandonar a mesa e ver a paisagem, fazer olhinhos a hospedeira, pedir uma refeicao, continuar a conversa, ler, fazer olhinhos a hospedeira, ir ao quarto buscar outra coisa qualquer, voltar a carruagem-restaurante, conversar com quem la esta, abandonar a mesa e ver a paisagem, pedir uma refeicao, continuar a conversa, fazer olhinhos a hospedeira, ler, pedir uma cerveja, fazer olhinhos a hospedeira, dizer boa noite as duas senhoras, pedir outra, discutir literatura com o frances, pedir outra, tentar falar chines com a hospedeira, pedir outra, discutir o sentido da vida com o frances, pedir outra, discutir politica com o frances, pedir outra, desistir de olhar para a hospedeira, voltar ao quarto, acabar a ultima cerveja, ler, dormir, acordar e repetir tudo de novo.

E nos intervalos, reflectir sobre tudo. No comboio que so para quatro vezes em 48 horas em cidades chinesas anonimas mas com mais habitantes que o meu pais, uso o tempo paralelo para ordenar as minhas ideias, ler o que nao leio durante o resto do ano, comover-me - quase - com as vistas intocadas que vejo da janela. A linha que une Lhasa a Golmud, durante as primeiras 12 horas, e a mais alta do Mundo e atravessa territorios que o homem nao habita. Enquanto o meu olhar se debruca pelo horizonte, penso no privilegio de ali estar, a atravessar todo o Tibete, o Tibete remoto, distante, frio e desumano, o Tibete virgem e desabitado, apenas desafiado pela poderosa maquina do meu comboio, que me protege e me transporta, para longe, para muito longe, sem parar, sem se queixar, sem interromper o ritmado passar das horas sobre os carris, ate ao Sol se por, ate se levantar, ate se por de novo, ate se levantar de novo, alaranjando finalmente sob a poluicao dos suburbios de Pequim.

Estou eu e mais 1000 passageiros. Sou mais um dentro daquela maquina que nos transporta cada um rumo a sua vida real, mais um passageiro anonimo numa linha premeditada.

Depois do frio planalto tibetano, das escuras noites dos Himalayas, do Norte da China e de muitas relacoes criadas ao sabor do tempo, o comboio abranda pausadamente as oito da manha do terceiro dia, e aparecem os primeiros predios, na manha baca e escurecida. Com o passar dos minutos, a serprente reduz a sua violenta marcha para um desolado trote. Guinchando numa estafada agonia, para finalmente, exausta, fria, massiva, sob as arcadas geladas de uma movimentada estacao.

Chegamos a Pequim.

Wednesday, November 15, 2006

Dias tibetanos

Uma manha no Palacio

Em Lhasa, seria capaz de passar uma boa temporada. Evidentemente nao o inverno todo, como fara um brasileiro que anda ha um ano as voltas de bicicleta pela China, mas umas boas semanas. Acontece que, como sempre, tenho muitos planos para pouco tempo, pelo que terei de desdobrar as minhas noites em tempo util de dia.

No segundo dia, subo o que me parece ser uma montanha pouco depois de acordar. Estou ainda meio ensonado, mas nao o suficiente para nao reparar que essa montanha e o gigantesco Palacio de Potala, que tem uma subida tao ingreme e inclinada ate a sua entrada, que me leva meia hora e meia duzia de conversas com outros destruidos turistas e peregrinos, ate chegar la acima. Uma senhora chinesa deve ter achado piada a minha cara de esforco e tem a simpatia de esperar por mim de 5 em 5 minutos, sorrindo-me quando eu a alcanco. Dado que o seu ingles e o mesmo que o de um mudo, deduzo que so me espera para me exibir a sua condicao fisica, pelo que apos a terceira espera deixo de lhe sorrir de volta. E a minha primeira inimiga na China. (Seja como for, a saida do palacio duas horas depois sorri-me com genuinidade e, no meu intimo, fazemos as pazes.)

O Palacio de Potala e tal como eu o sonhava: enorme, mistico, frio e riquissimo. E escuro, castanho, cor-de-vinho. E dourado, ardente. Tenho a sorte de nao ter um guia a empurrar-me por ali fora (o que muito prazer me da, ja que se tivesse vindo ate Lhasa por terra nao poderia andar pela cidade desacompanhado de um guia), por isso levo o meu tempo nos patios interiores rodeados de cortinas bordadas a ouro, nos terracos ventosos com vista para a cidade e para as montanhas, nas capelas recheadas de enormes figuras onde os fidelissimos peregrinos acendem as suas velas de manteiga, deixam as suas notas e murmuram as suas oracoes. Fiquei surpreendido com a religiosidade do local, uma vez que esperava que as autoridades chinesas tivessem mundanizado a visita ao Palacio. De facto, assim nao acontece, e se a mim me custa os olhos da cara para la entrar, aos tibetanos e oferecida nao so a entrada como tambem a total liberdade religiosa no local.

Isto transforma o Potala em mais uma experiencia budista do que numa visita cultural. Na verdade, deve ser um dos poucos sitios no Mundo onde peregrinos nomadas se prostram no chao perante tumulos de diamantes ou estatuas de ouro macico. Toda a decoracao me transporta para um mundo paralelo, mistico, oriental. Nada neste palacio se assemelha a algo que eu ja tenha visto nem sentido. E impressionante a riqueza das capelas e dos tumulos, face a elegante sobriedade dos aposentos dos sucessivos Dalai Lama (sendo "sucessivos" uma escolha de palavra totalmente desapropriada, uma vez que se trata sempre da mesma pessoa reencarnada). A cada passo que dou, escada de madeira que desco, obra que admiro ou incenso que cheiro, dou gracas por ter lido o extraordinario relato de Heinrich Harrer sobre a vida no Tibete genuino nos anos 50 deste seculo, nos seus "Sete Anos no Tibete", em que inclusivamente conta como se tornou tutor daquele que e o "actual" Dalai Lama. Nas minhas habituais deambulacoes mentais, imagino-me eu proprio frente ao Dalai Lama, numa das muitas salas onde ele passou os seus anos de infancia e primeira juventude, antes do exilio para a India. As salas estao tao acessiveis e bem preservadas, que da para sonhar acordado durante muitas horas no Palacio, viajando no tempo ate aos dias em que Lhasa era uma cidade independente, pequena, viva, isolada e - admitamos - altamente sub-desenvolvida.

Sem duvida sem o encanto desses dias, em que milhares de monges vagueavam reverenciais pelos patios e capelas do palacio, a visita de hoje ao Potala mantem-se uma experiencia muito viva, muito intensa e, mais do que isso, muito comovente: nao pode haver outra sensacao senao essa, quando ao olhar do enorme terraco de onde outrora o pequeno Dalai Lama olhava o seu povo com um telescopio, se avista hoje uma enorme e impessoal praca chinesa, numa provocacao obvia e desumana ao povo tibetano. Alias, ha outra sensacao possivel: furia. Mas aprendi com o budismo que devemos evita-la.

Licoes de Teologia

Depois do meu regresso habitual ao circuito do templo de Jokhang e de me deixar perder de novo pela Lhasa antiga, e hora de me meter num autocarro em direccao ao Mosteiro de Sera. Para alguem interessado no passado da cidade, os mosteiros que a rodeiam sao a forma mais genuina de tentar aprofundar o que foi a cidade antes da invasao chinesa. De facto, as ordens de monges sempre foram a principal forca politica no teocratico Reino do Tibete e mantem hoje as suas praticas imtemporais praticamente intactas, ao contrario dos leigos cidadaos da cidade, cuja cultura esta hoje confinada ao centro de Lhasa, onde me perdi no primeiro dia e onde regresso a toda a hora. Assim sendo, uma visita a um mosteiro e um salto no tempo, ja que a presenca policial e militar chinesa e reduzida ao minimo nestes locais, e a fe budista-tibetana e ai vivida com toda a sua forca historica. O facto de se poder observa-la ao vivo, atraves das vidas dos monges, e um marco tremendamente importante da visita a Lhasa, porque demonstra com genuinidade precisamente o aspecto mais importante do Tibete desde ha muitos seculos: a religiao.

Um mosteiro no Tibete nao e como os austeros mosteiros catolicos europeus, mas antes um complexo de templos, dormitorios, capelas e jardins, que formam uma vila onde os monges desenvolvem a sua vida monastica. O Mosteiro de Sera e portanto um enorme oasis de paz, cheio de peregrinos e monges em cada esquina. Dado o silencio que envolve todo o recinto, sao cenas comuns ouvir passos numa esquina de pedra e aparecer um velho monge trajado de cor-de-laranja contrastando com as paredes de pedra e cal branca. Perco muito tempo passeando entre os edificios, maioritariamente simples mas dando lugar, aqui e ali, a enormes e ricos templos com tectos de madeira e esculturas douradas, tudo isto num cenario de montanhas nevadas, com vista sobre a cidade la ao longe.

A dada altura, do cimo de um telhado um monge comeca a tocar um gongo ritmadamente, transformando toda a atmosfera num envolvente misticismo. Os fieis prostram-se perante o templo, num reverencial silencio perante o som grave do instrumento. Congratulo-me mentalmente por estar ali naquele preciso momento, ja que poderia estar em qualquer outro lugar do enorme recinto. Passam os minutos, e comecam a surgir monges de todos os cantos. A principio, nao perco a oportunidade unica de fotografar conjuntos daqueles (para mim) exoticos personagens de quase-ficcao. Depois, caio no ridiculo de perceber que quanto mais fotografo mais aparecem, chegando ao ponto de estar rodeado de monges de cabelo rapado a caminhar na mesma direccao ao som de um gongo tocado por outro monge no cimo de um telhado. Perante esta cena, desisti alegremente da minha obsessao fotografica e absorvi o momento com todos os sentidos.

Nao o sei na altura mas venho a saber pouco depois que esta prestes a comecar uma das mais extraordinarias manifestacoes culturais a que alguma vez assisti, e com tal intensidade, genuinidade e indiferenca para comigo e restantes turistas que observam a cenam estupefactos, que sou forcado a reconhecer a minha total insignificancia para aqueles compenetrados monges.

Esta prestes a comecar a licao diaria. Apesar de nao perceber sequer uma palavra do que e dito, tenho perante mim uma cena surreal: varios monges reunem-se sentados em grupos num jardim cheio de arvores, cabendo a cada grupo um monge mais adulto, de pe. Este questiona os seus discipulos em alta voz, batendo constantemente e com violencia com o pe no chao e com uma mao na outra, erguendo a voz enquanto o faz. Na minha hora ali, nao percebo o porque desta efusividade nem a que conteudo do discurso corresponde esse gesto teatral. Mas compreendo quao seriamente e levada esta licao, pelas caras graves dos alunos, pelas respostas que dao a medo, pelas reaccoes do professor. Sao dezenas, talvez centenas, de conjuntos, e naquele jardim devem estar pelo menos 200 pessoas a falar em simultaneo, todas vestidas de igual, de cabelo rapado e berrando numa lingua para mim incompreensivel. A experiencia e intensa e nenhum estrangeiro se atreve a falar, apesar dos momentos de boa disposicao que surgem entre os grupos de monges aqui e ali. A medida que o tempo passa, a minha cabeca ja nao passa de um receptor de zumbidos anonimos em alta voz, cada vez mais velozes, porque com o passar das discussoes os alunos ganham coragem e as tantas ja discutem entre si, levantando-se e batendo o pe e as maos, para entusiasmo dos seus suados mestres, cujas veias se vislumbram ja do alto das suas concentradas cabecas rapadas. E extraordinaria a concentracao dos alunos, a lucidez dos monges e a fluidez com que ambos parecem conseguir debitar temas teologicos sem parar para respirar, com um entusiasmo e um fervor de fazer inveja a qualquer intelectual do Mundo inteiro. E ocorre-me pensar que, mesmo que compreendesse o que diziam, jamais poderia compreender porque fazem aquelas licoes ali e porque as vivem com aquela intensidade. A presenca de turistas e peregrinos transforma toda a cena num teatro que, de forma alguma, aquela reuniao pretende ser. Basicamente, tenho a atitude de um espectador de teatro mas os actores sao personagens da vida real, indiferentes a opiniao ou reaccoes da plateia.

Passo ali mais de uma hora, estupefacto e maravilhado, e quando abandono o jardim estou estafado e cheio de sons na cabeca. Quando chego a Lhasa a noite comeca a cair, ideal para mais uma ida ao cafe americano, onde encontro precisamente as mesmas pessoas do dia anterior, o que me deu o conforto de que precisava, porque os dias estao cada vez mais frios e nao ha nada como um cafe quente e uma conversa casual para os aquecer.

Rodas no ar

Apesar do bem-estar que Lhasa exala, continuo inquieto depois do meu segundo dia: nao consigo deixar de pensar em como sera a vasta planicie tibetana para la desta cidade, como serao os pequenos mosteiros vistos ao longe, as montanhas sobre a estrada, os lagos, bandeiras de oracao, os iaques a pastar. Tudo isto sao cenas do meu imaginario que tencionava viver na minha vinda frustrada de Kathmandu ate Lhasa por terra.

Assim sendo, decido que definitivamente prefiro dormir pouco mas de curiosidade satisfeita, razao pela qual me levanto as 6 da manha do terceiro dia para apanhar um autocarro ate Shigatse. Tinham-me dito que sao 280 kms. Que delicia. Pelo menos cinco horas de paisagem!

Francamente, nem sei bem o que me espera em Shigatse, e a minha alvorada e mais motivada pela jornada ate la do que pelo destino. Aparentemente Shigatse e a segunda cidade do Tibete, o que me garante que no dia seguinte conseguirei transporte de volta ate Lhasa, de modo a poder chegar a tempo de um dia depois apanhar o comboio ate Pequim. E este criterio desonroso que me leva ate um destino magico, que, para minha absoluta surpresa, suplanta ate as paisagens magnificas que tenho de atravessar ate la chegar.

A madrugada e escura e fria em Lhasa, e descubro o autocarro pelos fortes farois que iluminam a rua deserta. Esta estacionado no meio da rua. Enfio-me ansioso no gelado banco da frente, para poder apreciar melhor a viagem, e aos poucos o autocarro comeca a encher. Como ja esperava, sou o unico nao-tibetano ali dentro e transformo-me num verdadeiro e involuntario bobo da corte. A minha maquina digital, que fotografa aqui e ali as cenas da violenta paisagem, torna-se numa atraccao cientifica para os meus (materialmente) humildes companheiros de viagem, provavelmente de volta as suas casas no campo depois de uma jornada na sua capital. Familias inteiras com sacos sem fim atulham o autocarro, nos seus trajes caracteristicos, gorros de pele, trancas no cabelo, termos de cha quente.

Apesar da madrugada, tenho os olhos bem abertos durante toda a viagem: afinal, desde pequeno que sonhava com o que seria a paisagem tibetana. Desta vez, sonhei bem, e as montanhas enormes, as planicies castanhas, os iaques que pastam, os pastores de cabras e a neve nos picos mais altos acompanha-me durante cinco brilhantes horas, em que me apercebo de quao arida e infinita e esta regiao. Precisamente como eu a imaginava. Ha poucas coisas melhores na vida do que ver materializada em realidade uma imagem mental. Tenho essa sorte neste estranho autocarro. E o mais engracado de tudo isto e aquelas familias tibetanas provavelmente pensarem que devo estar perdido do meu mundo de iguais, enfiado num autocarro no meio do Tibete, em direccao a uma pequena cidade no meio do planalto. Nao sabem (nem podiam saber, porque nao tem neles o conceito de viajar por prazer) que estou exactamente onde queria estar, naquele preciso momento da minha vida. Alias, de entre todos os companheiros de viagem possiveis, seriam aquelas familias, aqueles velhotes desdentados a rezar, aquelas criancas sujas de feicoes perfeitas, quem eu escolheria para estarem comigo na minha pequena travessia da vida tibetana.

Os chineses construiram uma magnifica estrada de alcatrao atraves de todo este cenario remoto, o que, se desmistifica algo do encanto que toda esta imensidao provoca, tambem torna a viagem mais comoda, especialmente se comparada com as minhas de viagens de autocarro pelo Nepal. Tenho pena de nao poder mandar parar o autocarro e sair dali, para longe da estrada, para onde o Tibete e menos chines e mais rural, mas esse plano nao passa de um sonho infantil e tenho de me contentar em imaginar o que esta para la de todas estas montanhas e vales, que parecem nao acabar. Para alem disso, consola-me saber que este progresso alcatroado ainda so chegou a ligacao entre Lhasa e a fronteira do Nepal (um trecho da qual eu estou a percorrer) e que a restante imensidao do gigantesco territorio tibetano se encontra ainda entregue a si proprio. Para alem do mais, os meus companheiros de viagem sao o espelho vivo do Tibete remoto e rural. Tambem para eles, vejo-o, um autocarro nao e um conceito familiar.

Shigatse

Nos seus 3.900 m acima do nivel do mar, Shigatse e uma cidade antipatica para quem deseja perder-se pelas suas ruas, mas so tenho uma tarde aqui e um corajoso pacto entre a minha curiosidade e a minha consciencia leva-me subir a pe toda a cidade, ate ao cimo da colina onde Shigatse se anicha. Originalmente, Shigatse foi construida no sope de uma enorme colina (colina aqui representa cerca de 4.500m), mas a chegada dos chineses estendeu-a dai para a frente, de maneira que hoje a vista do cimo da colina mostra a antiga vila quase anexada a montanha e o desenvolvimento chines dai para a frente, ocupando uma boa parte do vale em que a cidade esta construida.

Mesmo na sua parte moderna, Shigatse e uma pequena cidade, perdida no meio de enormes montanhas. Imagino que antes da chegada do alcatrao esta fosse considerada uma cidade distante de Lhasa. As suas vielas antigas medievais irradiam paz nas suas paredes brancas, janelas coloridas e bandeiras de oracao que esvoacam ao vento. Passeio-me por ali praticamente sozinho, saudado aqui e ali por algum residente amigavel. Quando dou por mim, estou bem alto na colina, percorrendo-a paralelamente a cidade. Por todo o lado enormes pedras estao pintadas com mantras budistas ou com figuras divinas. Ha bandeiras de oracao em cada angulo, aqui e ali um pequeno altar. Iaques e cabras pastam ali. E la em baixo, as pequenas casinhas da cidade velha com os seus telhados planos pintados com simbolos religiosos e mais la a frente a cidade chinesa. E depois dela as montanhas. E em cima delas um ceu azul sem nuvens.

E no topo disto tudo eu, sozinho, silencioso, a admirar aquilo tudo e sem perceber bem o que faco ali, no topo de uma colina, rodeado de iaques e pedras com frases em tibetano, no mais profundo silencio, apenas interrompido pelos canticos religiosos de alguns trabalhadores, que tentam arduamente cultivar sabe-se la o que naquela arida montanha.

Nao e a primeira vez que me questiono o que faco em determinado sitio, durante esta viagem, nao por arrependimento ou ignorancia, mas por incredulidade para com a solidao e paz que se consegue alcancar por estas latitudes, sem dar por isso. Mais uma vez penso que dificilmente os chineses conseguirao penetrar na religiosidade de todo este territorio.

Peregrinando

Sou apanhado desprevenido quando comecam a aparecer rodas de oracao por toda a montanha. Sucessivas series de enormes rodas douradas acompanham o trilho a medida que dobro a colina, e com elas comecam a aparecer tambem os fieis tibetanos. Comeco tambem a vislumbrar enormes telhados dourados la ao fundo. Estou a chegar ao Mosteiro de Tashilhunpo, uma das mais importantes ordens tibetanas e onde pertence o Panchen Lama, a segunda figura espiritual do Tibete depois do Dalai Lama.

Acontece que os chineses tem encarcerado o Panchen Lama verdadeiro, tendo colocado no seu lugar um rapazinho escolhido e educado por eles. O verdadeiro Panchen Lama esta preso em paradeiro incerto e e considerado o mais jovem prisioneiro politico do Mundo. Nao sei onde esta o Panchen Lama chines, mas em todo o caso e uma figura insignificante e meramente politica. Mais uma vida desgracada as maos deste governo. Ou duas.

Percorro ansioso e surpreendido toda a montanha abaixo em direccao ao Mosteiro, e quando chego ca abaixo e olho para cima deixo-me espantar pela beleza do cenario, que nao era visivel da zona residencial de Shigatse: milhares de rodas de oracao brilham douradas ao Sol, bandeiras de oracao esticam-se por entre os varios picos da montanha, dezenas de pessoas percorrem os trilhos poeirentos, no que venho a perceber ser um circuito em redor da montanha e que culmina na entrada do Mosteiro. Mais uma vez em total inconsciencia, fiz parte de uma peregrinacao tibetana. Ainda bem que nao tive medo da altitude.

Um cha com sabor a manteiga

O meu dia ja tinha sido suficientemente rico para me retirar satisfeito, mas tinha pela frente um complexo gigantesco de templos dourados e casinhas brancas, casa de muitos dos mais iluminados intelectuais budistas de sempre, do contrapeso politico ao poder dos Dalai Lama. Como sempre, deixo-me perder neste cenario magico, para o qual olho com estupefaccao a cada passo que dou. O mosteiro e enorme, sao centenas de edificios brancos, ruelas estreitas, monges em cada esquina. Visto da entrada, e um enorme aglomerado de casinhas brancas, dominado por tres enormes templos dourados, encostados a uma colina castanha repleta de rodas de oracao douradas e bandeiras de oracao ao vento.

Como de costume, nao ha ali uma unica cara ocidental. As vezes, pode ocorrer que a "segunda cidade do Tibete" e um centro super povoado de ocidentais em busca de espiritualidade, mas a verdade e que, tambem para minha surpresa, esta e uma regiao ainda remota para o turista ocidental. Mesmo em Lhasa, os turistas que se cruzam na rua cumprimentam-se invariavelmente com um sorriso cumplice, num reconhecimento mutuo de quem teve de apanhar no minimo duas conexoes aereas (no meu caso quatro) para la chegar e de quem prefere o frio Outono tibetano a uma praia das Caraibas para ocupar o seu tempo livre. Todos os poucos que ca estamos temos algo em comum, especialmente porque o Tibete nao proporciona actividades de lazer ou diversao: quem ca vem, vem para conhecer o sitio, as pessoas, a religiao, a ocupacao chinesa. Nao ha aqui gente a fumar charros em esplanadas, nao ha bares com musica americana aos berros, nao ha turbas de gente recem-saida do liceu em busca de emocoes fortes. O turista que vem ao Tibete vem, invariavelmente, em Busca. Nao exclusivamente numa romantica busca espiritual ou religiosa, mas acima de tudo em busca de Genuinidade. O numero de estrangeiros no Tibete e tao reduzido que, nestes quatro dias, nao consegui dialogar senao por gestos. Nem sequer consigo que algum tibetano me explique a que horas parte o proximo autocarro ou onde fica determinado mosteiro. Quando aponto para o relogio para saber quanto tempo demora uma viagem, riem-se e apontam para os seus proprios relogios. Nao ha dialogo
verbal possivel.

Mas quando entro no Mosteiro de Tashilhunpo, o meu pensamento esta longe dessas reflexoes. So penso na imensidao daquilo, da pacifica vida monastica, de como os monges mantem o seu dia-a-dia inalterado ha seculos. Passam de todas as idades, desde reguilas criancas aprendizes ate velhos monges apoiados em bengalas. Todos fazem parte daquele lugar, daquela vida retirada. A medida que avanco para o coracao do mosteiro, sinto-me a recuar anos sem fim, e sinto admiracao por aqueles homens que dedicam a sua vida a meditacao e a aprendizagem.

Os monges nao estao, no entanto, proibidos de sair dos mosteiros, e muitos regressam as
suas casas nas cidades depois de um dia no mosteiro. Especialmente em Lhasa, e comum ver monges na rua, muitos deles a pedir dinheiro ou sentados no chao em grupos de oracao, como um desencantado violinista no metro de Lisboa. Muitas vezes, ao ve-los ali expostos aquela condicao de pedintes, questiono-me qual a sinceridade daquelas oracoes que debitam a ceu aberto: sera que rezam por quem passa na rua e esperam assim uma esmola, ou sera que precisam da esmola e que aquelas oracoes nao passam de um pequeno concerto sem significado intimo para os monges famintos que o cantam? Esta questao preocupa-me, porque encerra a genuinidade da Fe de muitos monges tibetanos: sendo comum cada familia mandar pelo menos um filho para um mosteiro, ser monge se calhar e hoje uma profissao como outra qualquer, com a agravante de nao ser remunerada. Pergunto-me quantos destes misticos personagens nao escondem por detras do seu habito profundas duvidas de fe.

E se eles as tem, como posso eu nao ter?

Em Tashilhunpo esta duvida nao tem sentido, porque aqui nada falta aos monges, ja que este mosteiro esta destinado aos filhos das melhores familias: aqui, a espiritualidade e verdadeira e unica e os monges estao concentrados na sua busca espiritual.

No final do dia, enquanto procuro a saida daquele labirinto monastico, entro por uma pequena porta de madeira e dou de caras com o mais extraordinario patio que jamais tive a oportunidade de ver fora dos livros. E um claustro com uma dimensao consideravel, a sombra do Sol que ja desaparece por detras de dois andares em madeira. As paredes tem pintados dezenhas de milhares de pequenos budas todos iguais. No centro, um enorme poste de mais de vinte metros coroado por uma densa pele de iaque no seu topo. Numa das extremidades, ergue-se um enorme templo de madeira e ouro, tao grande que quase nao vejo o topo. E no meio disto tudo, dezenas de monges, cada um com a sua farda, que vao aparecendo pelas varias portas que dao acesso ao claustro. Mais uma vez sem saber como, caio no meio da reuniao de todos os monges do mosteiro. Sao centenas, desde os mais novos aos mais velhos, e saudam-me cordialmente mas com alguma desconfianca. No entanto, ninguem me manda embora e, desconfiando de que os monges nao se estao a reunir em vao, decido esperar sentado nas escadas de pedra. Alguma coisa vai acontecer e quero estar la para ver.

Passam longos minutos em que o meu desconforto por estar num lugar que nao e meu e compensado pela observacao viva, real e priveligiada que tenho das relacoes humanas dos monges. Sao pessoas como todas as outras, e por detras da sua grave aparencia alaranjada brincam uns com os outros, falam alto, empurram-se: no fundo, gozam aquele momento de lazer. Alguns tem umas enormes capas e chapeus verdes e parecem mais recatados. Nao fosse o ambiente festivo daquele patio, e ter-me-ia ocorrido algum assustador pensamento de estar perante uma seita misteriosa, especialmente com aquele enorme idolo de iaque ali no meio.

Mas nao. A suposta seita reune-se no topo de umas escadas que dao para o primeiro andar do claustro e comeca a entoar um cantico grave e monocordico. Por sorte, estou sentado mesmo no meio deles e deixo-me envolver pelo momento. Ninguem me manda embora e ninguem parece reparar em mim para alem de um ou outro mini-monge mais reguila, por isso quando se juntam em fila e desaparecem por detras de uma pequena porta de madeira, decido que nao e momento para cerimonias e sigo-os. A cena deve parecer estranha: uma enorme fila de monges budistas com chapeus verdes na cabeca desaparece dentro de uma misteriosa capela e no meio deles esta um intimidado mas decidido portugues, totalmente desfasado da musica e do traje, desaparecendo tambem ele pela porta, entre canticos e lentos passos.

La dentro, finalmente o monge mais adulto parece reparar em mim. Arrisco um sorriso timido que parece conquista-lo e sou convidado a ficar. Tambem eles nao devem saber o que fazer perante alguem que os segue para o seu recinto de oracoes para la da hora de fecho do mosteiro. Admito para mim proprio que fui longe demais, mas o dedo do monge aponta para um recanto na escura parede um pouco afastado das almofadas onde os monges se reunem em circulo e decido ficar. Durante meia hora, estou a viver dentro de um cantico ritual que se repete ha centenas de anos neste mosteiro, em tempos partilhados pelo proprio Panchen Lama. Assisto a tudo em silencio, com o coracao aos pulos. Mais uma vez, questiono o porque da minha presenca naquele lugar e porque e que fui eu que tive a sorte de ali estar. Alguma coisa me pos naquele patio aquela hora. E alguma coisa me pos em Sera a hora da licao de teologia. E essas duas experiencias em conjunto ensinam-me que a Curiosidade e um valor que nunca podemos menosprezar. Inconscientemente, estou a combater mais um dos males budistas: a ignorancia.

As tantas, noto algum movimento no exterior da capela. Varios monges que estavam la fora dirigem-se a outra porta. Mais uma vez nao resisto a segui-los, e por esta altura ja estou totalmente confiante da minha pessoa. Nao faco cerimonia nenhuma em segui-los. Olham-me com espanto primeiro, curiosidade depois e finalmente sorriem-me. Estao a preparar o cha, uma mistela intragavel de agua e manteiga de iaque, que todo o tibetano carrega num termos e bebe durante todo o dia. Aproximo-me. Sorrio ao velos preparar a refeicao em enormes potes de barro. Sorriem de volta. Interrogam-me na sua lingua. Nao lhes sei responder, por isso solto uma sonora gargalhada que os parece divertir e cativar. Apontam-me a saida. Desapontado mas respeitador, saio. Para minha supresa, estendar almofadas no patio e apontam-me uma. Sento-me. Sentam-se tambem. Dao-me uma chavena. Quando realizo onde estou, encontro-me no patio dos budas, a partilhar cha de manteiga de iaque com os monges de Tashilhunpo. A conversa e gestual, mas a experiencia e tao fascinante para mim como para eles.

E ali estamos, num entardecer tibetano, a partilhar a nossa sinceridade em toscas trocas de palavras. O momento nao e so magnifico pelo Unico que e e pelo privilegio que tenho em fazer parte daquele ritual tao tibetano do cha. O momento tambem vive, e muito, da humanidade que se transmite mutuamente. Separam-nos a lingua, a nacionalidade, o passado individual de cada um, a religiao e acima de tudo a condicao: um turista ocidental de um lado, monges celibatarios do outro. No entanto, conseguimos passar ali um momento de comunhao, que suplanta a componente exotica que inevitavelmente lhe esta inerente.

Quando os monges se preparam para me servir mais uma chavena daquela intragavel mistela, considero que o sacrificio nao o justifica. O cha e mau demais. Sem ser execravel, e um nojo, uma especie de leite salgado com sabor a iaque, um parente da vaca. Nao ha monge tibetano amigo que valha mais um trago daquilo. Satisfeito com o pragmatismo desta decisao, levanto-me despedimo-nos como velhos amigos. Eles ali ficarao, dia apos dia, cha apos cha, cantico apos cantico, ate serem mais um monge velhinho de bengala. Eu, de volta ao meu mundo, ano apos ano, realizacao apos realizacao, ate ser mais um lisboeta velhinho de bengala.

Caminhos diferentes com um fim comum.

Regressando e partindo

O autocarro do dia seguinte tem a mesma historia do anterior. Mas desta vez, vai ainda mais cheio de gente do campo. Saimos ainda o dia e uma ilusao distante e nao dixa de ser um momento estranhamente mistico fazer-me a estrada do Tibete num autocarro com temperaturas cortantes, hipnotizado por musica tibetana que soa suave sob o ceu estrelado do ultimo halito da madrugada. Quando o dia chega por detras das montanhas, o gelo ainda me queima todo o corpo. Paramos a beira da estrada para nos aquecermos numa fogueira onde um velhinho coze ovos e cha. Recuso o cha mas como com prazer dois fumegantes ovos cozidos, a estalar de quentes. O frio la fora e tao cortante que quase tem cor, meio azulado, meio transparente.

De volta a Lhasa, regresso aos meus locais habituais. Quando cai a noite, encontro-me com amigos no cafe americano. Conversamos durante horas, comemos na rua. Volto a encontrar-me com o amigo espanhol e a americana, fazemos uma pequena festa de despedida. Trocamos presentes espontaneos. E espantosa a dimensao das relacoes que se constroem na estrada. Eles continuarao o seu periplo. Uns pela India, outros pela Mongolia. Outros regressam a casa.

Eu tenho um comboio para apanhar, com direccao a Pequim, atraves de todo o Tibete e o Norte da China. Durara 48 horas. A linha acabou de ser construida em Junho e servira para aumentar o turismo no Tibete. Nao foi por acaso que vim a Lhasa antes dos chineses comecarem a explorar essa linha, no seu projecto de multiplicar exponencialmente o turismo para o Tibete ate 2020.

Ainda bem que assim o fiz. Sem duvida, nao encontrei o que esperava mas o que descobri deixou-me satisfeito: o Tibete nao morreu.

Monday, November 13, 2006

Lhasa

Ganhando altitude

Lhasa e, provavelmente, o maior misterio e a maior incognita para qualquer pessoa curiosa e informada pelo Mundo fora. Crescemos desde ha duas geracoes a ler aventuras de montanhistas em busca da Cidade Proibida, a ouvir o Dalai Lama invocar a restituicao pacifica da autonomia do povo tibetano no seu pais, a ver imagens miticas do inalcancavel Palacio de Potala no cimo de uma colina. Desde pequenos, sabemos que o Tibete esta la bem longe no meio das montanhas, um sonho distante e constantemente adiado pelas nossas agendas apertadas. Desde pequenos, sabemos de tudo o que se passa no Mundo mas dificilmente conseguimos imaginar como sera esta regiao distante, mesmo quando vemos fotografias que nos relembram como gostariamos de la ir. Desde pequenos, sonhamos com o Tibete mas, na hora da verdade, escolhemos outro sitio para passar o nosso tempo livre.

Ontem, aterrei no Tibete.

Ainda desapontado por nao poder vir por terra desde Kathmandu ate Lhasa atraves do enorme planalto tibetano, deixo-me consolar pelas enormes vistas das montanhas que o aviao atravessa. Um mar de nuvens estende-se a perder de vista, povoado de milhares de picos nevados. Primeiro penso que estamos a voar baixo. Depois, acciono finalmente a inteligencia (o que por aqui e dificil, porque muito disto ultrapassa a razao) e compreendo que nao somos nos que voamos baixo, mas as montanhas que sao enormes. Perante isto, sou forcado a esquecer o meu medo de voar.

Na China

Esta frio no aeroporto de Lhasa, uma moderna mas pequena infraestrutura encalhada no meio de enormes montanhas castanhas. A caminho da cidade, a estrada alcatroada atravessa vales glaciares gigantes, rodeados de montanhas e iaques e vacas que pastam, aquecidos pelos seus grossos pelos, a beira de lagos azuis onde flutuam bandeiras de oracao. Se nao tivesse vindo do Nepal, estaria mais uma vez embasbacado com toda esta desumana imensidao. Nao admira que o Homem se preocupe tanto em encontrar a razao da sua existencia, desde ha milenios: perante isto, de facto, nao somos nada. Deixo-me levar pelo frio que entra pela janela do jeep que nos transporta. Finalmente, encontro o frio, que alimenta a alma e varre com a sua aguda displicencia os cheiros putrefactos dos locais por onde penetra. Aqui volto, alias, a uma civilizacao de que ja sentia falta.

A paisagem e interrompida por avenidas cada vez maiores, neons coloridos, bandeiras chinesas por toda a parte. Por momentos, deixo-me abater. Nao quero acreditar que Lhasa e aquilo. No meu jeep, um espanhol e uma americana que a agencia de turismo chinesa meteu no mesmo grupo que eu (nao se pode entrar no Tibete sem pertencer a um "grupo") partilham a minha desilusao. Avancamos cidade adentro, e as luzes e edificios de uma sociedade moderna continuam a rodear-nos. Bank of China. China Telecom. China Post. China Police. China. Quer queira quer nao, estou na China. Nao sou o unico que preferia estar apenas num Tibete independente: parece que todo o Mundo suporta essa causa. Infelizmente, essa vontade nao e suficiente para contrariar o medo que temos da China e a causa tibetana perde-se nos corredores do equilibrio diplomatico. Seja como for, ja e tarde demais: Lhasa e uma cidade chinesa.

Atravessando a fronteira

No entanto, as mas noticias nao ocupam o resto do dia. Quanto mais penetramos no coracao da cidade ja a escurecer, mais os meus sonhos de crianca vao ganhando cor. As ruas comecam a ficar mais estreitas, os neons desaparecem lentamente, aparecem riquexos, bancas de rua, pessoas trajadas como num filme antigo, pequenas casas de pedra e cal, bandeiras de oracao, monges nas ruas.

Saltamos do jeep. Que surpresa! Afinal, os chineses preocuparam-se em desenvolver a cidade a partir do seu centro mas deixaram-no relativamente intacto. Comemos os tres uma sopa de vegetais numa banca de rua, olhados com curiosidade por caras curiosas e amigaveis, balbuciando sabe-se la o que no seu tibetano incompreensivel. Esta frio, um vapor espesso sai das nossas bocas quando saimos para a rua, e toda uma vida se desenrola. Velhinhas passeiam-se pela rua abanando as suas rodas de oracao portateis, monges compram vegetais para o seu jantar, familias inteiras debrucam-se sobre as bancas de fritos. Eu proprio nao resisto a oferta: um homem apresenta sobre uma tabua rudimentar vegetais frescos de todas as cores, batatas as rodelas, chouricos de cor viva, ate peixes de varias formas. Aponto aleatoriamente para a banca, ele pega no que peco e frita ali a minha frente o que sera o meu segundo jantar. Esta uma delicia. Sabe-me tao bem que nao quero saber das consequencias de comer ali na rua. E esta frio. Convenco-me, satisfeito, que o frio mata quaisquer bacterias. Nao sei se e verdade, mas vou assumi-lo durante os proximos dias. A comida de rua e boa demais para ser desaproveitada por um medo mesquinho de uma dor de barriga futura.

Quando adormeco num frio e espartano quarto de 2 dolares, que ocupo por uma questao de camaradagem para com os meus dois novos amigos que parecem radiantes com aquele achado ultra-barato, as ruas ja adormeceram num silencio gelado, e eu deixo-me levar por essa paz.

Um mundo paralelo


O despertar provocado pela vida que ja se desenrola por debaixo da minha janela traz-me um entusiasmo infantil de sede de descoberta. Quando salto da cama pronto para mais um dia, nao faco ainda a menor ideia de onde estou, apesar da amostra que tive na noite anterior.

Ja tinha ouvido falar de que e costume da pratica tibetana do budismo caminhar em volta dos templos e locais sagrados. Ja tinha, alias, tido a oportunidade de constatar isso na minha ida a Boudanath. O que eu nao sabia, era que depois de vielas apertadas da antiga Lhasa, iria ser envolvido num movimento sem retorno de milhares de fieis em peregrinacao ao seu centro espiritual.

Quando dou por mim, estou rodeado de uma multidao que sussurra a meia-voz mantras milenares, num passo lento e firme pelas vielas da velha Lhasa. Naquele momento, nao sei onde estou, mas deixo-me envolver na multidao, numa timida incredulidade perante aquele espectaculo das primeiras luzes da manha. Pessoas de todas as idades caminham lado a lado, com os seus tercos budistas e as ruas rodas de oracao. Velhas desdentadas, monges alaranjados, nomadas de longos e sujos cabelos compridos nos seus trajes de montanha, criancas de todas as proveniencias, gente vestida igual a mim, gente com trapos, gente velha, gente nova, gente que caminha de joelhos, gente que atira incenso para enormes fornos de pedra, gente que, como eu, se engasga com o fumo espesso dessa erva queimada, que empurra rodas de oracao a meio do caminho. Quando dou por mim, sou so mais um naquele movimento espiritual.

A pouco e pouco, comeco a compreender que devo estar perto de um templo importante. Tenho razao. As ruas abrem-se numa praca, e o fieis prostram-se no chao e voltam-se a levantar, num movimento ciclico que repentem vezes sem conta, perante o que venho a perceber ser o templo de Jokhang. Sem saber, as minhas deambulacoes pela madrugada tinham-me levado ao mais importante templo do centro de Lhasa, um dos principais polos espirituais do povo tibetano, que se desloca atraves de milhares de aridos quilometros de deserto e montanha para se poder prostrar perante o Divino (seja ele qual for) neste local.

Observo com um respeito amedrontado este retrato vivo da vida espiritual de todo um povo, e com o passar dos minutos sou envolvido por sorrisos curiosos. Parece que, apesar do meu estatuto de observador, sou benvindo ali. Mais uma razao para me deixar ficar, para me deixar levar, para me sentir envolvido num mundo que so nao e meu porque nao nasci aqui.

Penso na diversidade da especie Humana. Tenho um nomada desdentado prostrado no chao diante de mim. Tem a cara mastigada pelo sol, olhos rasgados quase fechados, um manto colorido sobre todo o seu corpo. Eu tenho um polar cor-de-laranja, calcas de ganga, olhos abertos, dentes intactos e um cabelo ainda a reluzir o brilho do duche diario. Partilhamos uma mesma Humanidade. E dificil de acreditar, visto por fora. De facto, a minha avo nao tem nada a ver com aquela velhinha desgrenhada que me da pela cintura e que despeja incenso pela rua fora, debitando as suas oracoes desdentadas num idioma distante, vestida de panos sujos e de origem remota. E, no entanto, tambem eu me ajoelho nos meus santuarios e tambem a minha avo reza os seus tercos. Alias, eu e a minha avo tambem costumamos movimentar-nos em circulo pelo nosso templo em veneracao, tambem debitamos oracoes a meia voz, tambem nos vergamos respeitosamente perante o nosso Altar. O que e a Via Sacra crista senao uma peregrinacao como esta?

Nascamos onde nascamos, todos partilhamos a mesma inseguranca perante o passar do tempo, a mesma incerteza quanto ao que nos espera na proxima vida, a mesma necessidade de encontrar essa resposta para la do nosso universo fisico. Todos amamos os nossos pais e filhos, todos queremos o melhor para os nossos amigos, todos sentimos necessidade de companhia e conforto. Nao tenho duvidas de que o acaso que nos faz nascer num lugar nos torna diferentes entre nos, mas nao e suficiente para sufocar a Humanidade que partilhamos.

Eu e aquele nomada somos praticamente iguais.

Potala

Ainda tocado por toda aquela manha, limpo as cinzas de inceso que me cobrem e sigo por uma rua paralela. A meio da peregrinacao, uma enorme massa cor-de-laranja pareceu aparecer entre duas casas brancas. Nao estou longe do Palacio de Potala, portanto. O meu passo lento e respiracao arfante perante a altitude e acelerado pelo desejo de voltar a ver o Potala entre duas casas. As ruas alargam-se, aparecem os primeiros carros, lojas chinesas, largas avenidas. Dobro uma esquina. Outra. Esta ali! Que enorme, que majestoso.

Se nao fosse a aberrante praca chinesa e respectivo monumento ao trabalhador espetado em frente ao palacio, o Potala seria mais uma experiencia espiritual, mais uma mistura entre os sonhos infantis e a realidade presente. Assim, passa a ser uma experiencia apenas real: os sonhos infantis de um palacio inalcancavel no topo de uma colina desvanecem-se entre bandeiras chinesas e autocarros que passam. No entanto, nenhuma dessas tentativas desesperadas desse Governo obsoleto e suficiente para sufocar a majestade deste palacio, o seu tamanho centenas de metros acima da minha cabeca, a fe dos milhares de tibetanos que perante ele se prostram em veneracao, talvez ansiando que das suas enormes janelas espreite a cabeca compreensiva do Dalai Lama. Esse desejo, que eu partilho, e um sonho tao distante quanto os quilometros que nos separam do exilado Dalai Lama. No entanto, estou aqui, estamos aqui, para dizer, ainda que em silencio, que para nos esta cidade nao e uma metropole anonima chinesa. Para nos, esta cidade e este Palacio sao um patrimonio pessoal de cada cidadao do Mundo. Nenhum governo formado por pessoas sera algum dia capaz de eliminar sentimentos sinceros. Que ridiculo me parece aquele guarda fardado em frente a bandeira chinesa. Nunca, jamais!, podera uma ocupacao militar penetrar no amago espiritual de um povo. E impossivel. A Fe e, penso, o maior patrimonio do povo tibetano, o seu tesouro e a sua grande muralha.

Regresso a casa

Comprado o bilhete para o dia seguinte, ja que o acesso ao palacio tem um numero diario limitado, regresso a cidade antiga, que e muito maior do que inicialmente eu previra. Movimento-me, entre alguns - surpreendentemente poucos - outros turistas e muitos habitantes locais pelas largas avenidas primeiro, e pelas vielas antigas depois. A populacao tibetana mistura-se com os imigrantes chineses, colonizadores inebriados pela isencao fiscal. Apesar de tudo, sou suficientemente ignorante para nao me aperceber das consequencias desta colonizacao. Nao consigo distinguir totalmente o tibetano do chines e nao vejo sequer sinais de uma coexistencia violenta. No entanto, quem sabe se tudo nao se passa nas entrelinhas. Para mim, a visao e de harmonia. Criancas ocupam as ruas brincando e o resto das pessoas ocupa-se nas suas actividades comerciais ou artesanais. Sao espantosamente curiosos e amigaveis e sou abordado por gente de todas as idades. A minha maquina digital causa o mesmo espanto nas criancas tibetanas que o meu Game Boy de 1990 me causava a mim. Ha grandes lojas nas grandes avenidas e comercio local nas ruas estreitas. Obviamente, evito tudo o que e enorme. Nao vim aqui a procura de saber o que Lhasa e hoje: pela primeira vez numa viagem, em Lhasa procuro o que a cidade era antes de ser o que e, procuro o seu passado, a sua origem. Nao e o centro comercial chines que me fascina, e o templo de Jokhang, o cheiro a incenso nas vielas escuras, o monge solitario que toca no seu bombo num templo iluminado por velas de manteiga. Felizmente, durante toda a tarde apecebo-me que a velha Lhasa pode estar reduzida mas nao esta morta.

Seja como for, nao ha no meu olhar de turista o minimo rancor contra uma unica pessoa nesta cidade, seja qual fora a sua origem ou motivacao. Todos sao afaveis, sorridentes, humanos. Todo o chines emigrado para Lhasa deste os anos 50 nao faz outra coisa senao procurar uma vida melhor para si e para os seus. Nao podemos julgar uma pessoa pelo governo que rege o seu pais, muito menos quando esse governo nao e eleito.

Quando o Sol se comeca a por por detras das montanhas que rodeiam toda a cidade, estou reduzido a um corpo desfalecido sob o cansaco da altitude e das distancias percorridas. Mesmo assim, nao resisto a voltar a Jokhang. Penetro de novo pelas ruelas ja escuras, onde as vozes substituem as cores que vira de manha. Mais ou menos perdido, sigo os sons em direccao ao circuito do templo, ja muito mais calmo mas ainda cheio de fieis em oracao. Pergunto-me se esta persistencia se desenrola pela noite fora. Faco todo o percurso junto a um monge tibetano, impecavel no seu cabelo rapado e trajes laranjas, que acompanha um nomada das montanhas na sua visita a Lhasa. E sujo, tem o cabelo desgrenhado e poucos dentes. Sao irmaos.

Chegados a entrada do templo, apercebo-me que a entrada nao me esta vedada (ao contrario de tantas mesquitas espalhadas pelo mundo musulmano fora, redutos exclusivos dos praticantes dessa religiao que tanto da que pensar ao resto do Mundo) e penetro num universo mistico sem explicacao para um olhar como o meu, cidadao apressado de uma cidade que nao para para meditar. O templo e constituido por uma sucessao de patios internos abertos a um ceu estrelado, rodeados por velas que ardem, pinturas milenares e paredes de madeira cobertas por enormes cortinas com motivos tibetanos bordados a dourado. Esta pouca gente. Deambulo por labirintos dourados e fumegantes, onde monges e cidadaos rodam as suas rodas de oracao e rezam baixinho. Todo o espaco e contiguo, mas parece nao acabar, a medida que os meus passos me levam entre corredores e pequenos patios. No fundo de um deles, uma luz viva traz ate mim canticos a meia voz. Inebriado, persigo o clarao. Provem de uma pequena porta. Atravesso-a. Estou num templo enorme, e nas suas extremidades dezenas de fieis repetem as suas prostracoes defronte a varias capelas, cada uma com a sua divindade. No centro, o altar principal, a volta do qual se reunem os monges em oracao.

Ja e tarde, sou o unico turista ali. Nem sequer me cobram entrada ja. Mais uma vez me surpreendo pela indiferenca com que me acolhem. Nao querem saber. Estao concentrados nas suas venias e oracoes. As faces carregam o peso de uma Fe inabalavel, viva, pessoal. Totalmente intrasmissivel: apesar de sentir a divindade do lugar, nao sei interpreta-la. So sei que esta la.

Saio para a noite escura e procuro entre vultos na noite o caminho de volta a rua do meu hotel. Atraves de uma montra de vidro, vejo enormes cafes fumegantes bebidos por turistas de toda a parte, que ali partilham as suas experiencias e leem livros em tranquilidade. Sinto-me tao vivo como fisicamente desfeito. Era mesmo desta enorme chavena quente que eu precisava.