Ganhando altitude
Lhasa e, provavelmente, o maior misterio e a maior incognita para qualquer pessoa curiosa e informada pelo Mundo fora. Crescemos desde ha duas geracoes a ler aventuras de montanhistas em busca da Cidade Proibida, a ouvir o Dalai Lama invocar a restituicao pacifica da autonomia do povo tibetano no seu pais, a ver imagens miticas do inalcancavel Palacio de Potala no cimo de uma colina. Desde pequenos, sabemos que o Tibete esta la bem longe no meio das montanhas, um sonho distante e constantemente adiado pelas nossas agendas apertadas. Desde pequenos, sabemos de tudo o que se passa no Mundo mas dificilmente conseguimos imaginar como sera esta regiao distante, mesmo quando vemos fotografias que nos relembram como gostariamos de la ir. Desde pequenos, sonhamos com o Tibete mas, na hora da verdade, escolhemos outro sitio para passar o nosso tempo livre.
Ontem, aterrei no Tibete.
Ainda desapontado por nao poder vir por terra desde Kathmandu ate Lhasa atraves do enorme planalto tibetano, deixo-me consolar pelas enormes vistas das montanhas que o aviao atravessa. Um mar de nuvens estende-se a perder de vista, povoado de milhares de picos nevados. Primeiro penso que estamos a voar baixo. Depois, acciono finalmente a inteligencia (o que por aqui e dificil, porque muito disto ultrapassa a razao) e compreendo que nao somos nos que voamos baixo, mas as montanhas que sao enormes. Perante isto, sou forcado a esquecer o meu medo de voar.
Na China
Esta frio no aeroporto de Lhasa, uma moderna mas pequena infraestrutura encalhada no meio de enormes montanhas castanhas. A caminho da cidade, a estrada alcatroada atravessa vales glaciares gigantes, rodeados de montanhas e iaques e vacas que pastam, aquecidos pelos seus grossos pelos, a beira de lagos azuis onde flutuam bandeiras de oracao. Se nao tivesse vindo do Nepal, estaria mais uma vez embasbacado com toda esta desumana imensidao. Nao admira que o Homem se preocupe tanto em encontrar a razao da sua existencia, desde ha milenios: perante isto, de facto, nao somos nada. Deixo-me levar pelo frio que entra pela janela do jeep que nos transporta. Finalmente, encontro o frio, que alimenta a alma e varre com a sua aguda displicencia os cheiros putrefactos dos locais por onde penetra. Aqui volto, alias, a uma civilizacao de que ja sentia falta.
A paisagem e interrompida por avenidas cada vez maiores, neons coloridos, bandeiras chinesas por toda a parte. Por momentos, deixo-me abater. Nao quero acreditar que Lhasa e aquilo. No meu jeep, um espanhol e uma americana que a agencia de turismo chinesa meteu no mesmo grupo que eu (nao se pode entrar no Tibete sem pertencer a um "grupo") partilham a minha desilusao. Avancamos cidade adentro, e as luzes e edificios de uma sociedade moderna continuam a rodear-nos. Bank of China. China Telecom. China Post. China Police. China. Quer queira quer nao, estou na China. Nao sou o unico que preferia estar apenas num Tibete independente: parece que todo o Mundo suporta essa causa. Infelizmente, essa vontade nao e suficiente para contrariar o medo que temos da China e a causa tibetana perde-se nos corredores do equilibrio diplomatico. Seja como for, ja e tarde demais: Lhasa e uma cidade chinesa.
Atravessando a fronteira
No entanto, as mas noticias nao ocupam o resto do dia. Quanto mais penetramos no coracao da cidade ja a escurecer, mais os meus sonhos de crianca vao ganhando cor. As ruas comecam a ficar mais estreitas, os neons desaparecem lentamente, aparecem riquexos, bancas de rua, pessoas trajadas como num filme antigo, pequenas casas de pedra e cal, bandeiras de oracao, monges nas ruas.
Saltamos do jeep. Que surpresa! Afinal, os chineses preocuparam-se em desenvolver a cidade a partir do seu centro mas deixaram-no relativamente intacto. Comemos os tres uma sopa de vegetais numa banca de rua, olhados com curiosidade por caras curiosas e amigaveis, balbuciando sabe-se la o que no seu tibetano incompreensivel. Esta frio, um vapor espesso sai das nossas bocas quando saimos para a rua, e toda uma vida se desenrola. Velhinhas passeiam-se pela rua abanando as suas rodas de oracao portateis, monges compram vegetais para o seu jantar, familias inteiras debrucam-se sobre as bancas de fritos. Eu proprio nao resisto a oferta: um homem apresenta sobre uma tabua rudimentar vegetais frescos de todas as cores, batatas as rodelas, chouricos de cor viva, ate peixes de varias formas. Aponto aleatoriamente para a banca, ele pega no que peco e frita ali a minha frente o que sera o meu segundo jantar. Esta uma delicia. Sabe-me tao bem que nao quero saber das consequencias de comer ali na rua. E esta frio. Convenco-me, satisfeito, que o frio mata quaisquer bacterias. Nao sei se e verdade, mas vou assumi-lo durante os proximos dias. A comida de rua e boa demais para ser desaproveitada por um medo mesquinho de uma dor de barriga futura.
Quando adormeco num frio e espartano quarto de 2 dolares, que ocupo por uma questao de camaradagem para com os meus dois novos amigos que parecem radiantes com aquele achado ultra-barato, as ruas ja adormeceram num silencio gelado, e eu deixo-me levar por essa paz.
Um mundo paralelo
O despertar provocado pela vida que ja se desenrola por debaixo da minha janela traz-me um entusiasmo infantil de sede de descoberta. Quando salto da cama pronto para mais um dia, nao faco ainda a menor ideia de onde estou, apesar da amostra que tive na noite anterior.
Ja tinha ouvido falar de que e costume da pratica tibetana do budismo caminhar em volta dos templos e locais sagrados. Ja tinha, alias, tido a oportunidade de constatar isso na minha ida a Boudanath. O que eu nao sabia, era que depois de vielas apertadas da antiga Lhasa, iria ser envolvido num movimento sem retorno de milhares de fieis em peregrinacao ao seu centro espiritual.
Quando dou por mim, estou rodeado de uma multidao que sussurra a meia-voz mantras milenares, num passo lento e firme pelas vielas da velha Lhasa. Naquele momento, nao sei onde estou, mas deixo-me envolver na multidao, numa timida incredulidade perante aquele espectaculo das primeiras luzes da manha. Pessoas de todas as idades caminham lado a lado, com os seus tercos budistas e as ruas rodas de oracao. Velhas desdentadas, monges alaranjados, nomadas de longos e sujos cabelos compridos nos seus trajes de montanha, criancas de todas as proveniencias, gente vestida igual a mim, gente com trapos, gente velha, gente nova, gente que caminha de joelhos, gente que atira incenso para enormes fornos de pedra, gente que, como eu, se engasga com o fumo espesso dessa erva queimada, que empurra rodas de oracao a meio do caminho. Quando dou por mim, sou so mais um naquele movimento espiritual.
A pouco e pouco, comeco a compreender que devo estar perto de um templo importante. Tenho razao. As ruas abrem-se numa praca, e o fieis prostram-se no chao e voltam-se a levantar, num movimento ciclico que repentem vezes sem conta, perante o que venho a perceber ser o templo de Jokhang. Sem saber, as minhas deambulacoes pela madrugada tinham-me levado ao mais importante templo do centro de Lhasa, um dos principais polos espirituais do povo tibetano, que se desloca atraves de milhares de aridos quilometros de deserto e montanha para se poder prostrar perante o Divino (seja ele qual for) neste local.
Observo com um respeito amedrontado este retrato vivo da vida espiritual de todo um povo, e com o passar dos minutos sou envolvido por sorrisos curiosos. Parece que, apesar do meu estatuto de observador, sou benvindo ali. Mais uma razao para me deixar ficar, para me deixar levar, para me sentir envolvido num mundo que so nao e meu porque nao nasci aqui.
Penso na diversidade da especie Humana. Tenho um nomada desdentado prostrado no chao diante de mim. Tem a cara mastigada pelo sol, olhos rasgados quase fechados, um manto colorido sobre todo o seu corpo. Eu tenho um polar cor-de-laranja, calcas de ganga, olhos abertos, dentes intactos e um cabelo ainda a reluzir o brilho do duche diario. Partilhamos uma mesma Humanidade. E dificil de acreditar, visto por fora. De facto, a minha avo nao tem nada a ver com aquela velhinha desgrenhada que me da pela cintura e que despeja incenso pela rua fora, debitando as suas oracoes desdentadas num idioma distante, vestida de panos sujos e de origem remota. E, no entanto, tambem eu me ajoelho nos meus santuarios e tambem a minha avo reza os seus tercos. Alias, eu e a minha avo tambem costumamos movimentar-nos em circulo pelo nosso templo em veneracao, tambem debitamos oracoes a meia voz, tambem nos vergamos respeitosamente perante o nosso Altar. O que e a Via Sacra crista senao uma peregrinacao como esta?
Nascamos onde nascamos, todos partilhamos a mesma inseguranca perante o passar do tempo, a mesma incerteza quanto ao que nos espera na proxima vida, a mesma necessidade de encontrar essa resposta para la do nosso universo fisico. Todos amamos os nossos pais e filhos, todos queremos o melhor para os nossos amigos, todos sentimos necessidade de companhia e conforto. Nao tenho duvidas de que o acaso que nos faz nascer num lugar nos torna diferentes entre nos, mas nao e suficiente para sufocar a Humanidade que partilhamos.
Eu e aquele nomada somos praticamente iguais.
Potala
Ainda tocado por toda aquela manha, limpo as cinzas de inceso que me cobrem e sigo por uma rua paralela. A meio da peregrinacao, uma enorme massa cor-de-laranja pareceu aparecer entre duas casas brancas. Nao estou longe do Palacio de Potala, portanto. O meu passo lento e respiracao arfante perante a altitude e acelerado pelo desejo de voltar a ver o Potala entre duas casas. As ruas alargam-se, aparecem os primeiros carros, lojas chinesas, largas avenidas. Dobro uma esquina. Outra. Esta ali! Que enorme, que majestoso.
Se nao fosse a aberrante praca chinesa e respectivo monumento ao trabalhador espetado em frente ao palacio, o Potala seria mais uma experiencia espiritual, mais uma mistura entre os sonhos infantis e a realidade presente. Assim, passa a ser uma experiencia apenas real: os sonhos infantis de um palacio inalcancavel no topo de uma colina desvanecem-se entre bandeiras chinesas e autocarros que passam. No entanto, nenhuma dessas tentativas desesperadas desse Governo obsoleto e suficiente para sufocar a majestade deste palacio, o seu tamanho centenas de metros acima da minha cabeca, a fe dos milhares de tibetanos que perante ele se prostram em veneracao, talvez ansiando que das suas enormes janelas espreite a cabeca compreensiva do Dalai Lama. Esse desejo, que eu partilho, e um sonho tao distante quanto os quilometros que nos separam do exilado Dalai Lama. No entanto, estou aqui, estamos aqui, para dizer, ainda que em silencio, que para nos esta cidade nao e uma metropole anonima chinesa. Para nos, esta cidade e este Palacio sao um patrimonio pessoal de cada cidadao do Mundo. Nenhum governo formado por pessoas sera algum dia capaz de eliminar sentimentos sinceros. Que ridiculo me parece aquele guarda fardado em frente a bandeira chinesa. Nunca, jamais!, podera uma ocupacao militar penetrar no amago espiritual de um povo. E impossivel. A Fe e, penso, o maior patrimonio do povo tibetano, o seu tesouro e a sua grande muralha.
Regresso a casa
Comprado o bilhete para o dia seguinte, ja que o acesso ao palacio tem um numero diario limitado, regresso a cidade antiga, que e muito maior do que inicialmente eu previra. Movimento-me, entre alguns - surpreendentemente poucos - outros turistas e muitos habitantes locais pelas largas avenidas primeiro, e pelas vielas antigas depois. A populacao tibetana mistura-se com os imigrantes chineses, colonizadores inebriados pela isencao fiscal. Apesar de tudo, sou suficientemente ignorante para nao me aperceber das consequencias desta colonizacao. Nao consigo distinguir totalmente o tibetano do chines e nao vejo sequer sinais de uma coexistencia violenta. No entanto, quem sabe se tudo nao se passa nas entrelinhas. Para mim, a visao e de harmonia. Criancas ocupam as ruas brincando e o resto das pessoas ocupa-se nas suas actividades comerciais ou artesanais. Sao espantosamente curiosos e amigaveis e sou abordado por gente de todas as idades. A minha maquina digital causa o mesmo espanto nas criancas tibetanas que o meu Game Boy de 1990 me causava a mim. Ha grandes lojas nas grandes avenidas e comercio local nas ruas estreitas. Obviamente, evito tudo o que e enorme. Nao vim aqui a procura de saber o que Lhasa e hoje: pela primeira vez numa viagem, em Lhasa procuro o que a cidade era antes de ser o que e, procuro o seu passado, a sua origem. Nao e o centro comercial chines que me fascina, e o templo de Jokhang, o cheiro a incenso nas vielas escuras, o monge solitario que toca no seu bombo num templo iluminado por velas de manteiga. Felizmente, durante toda a tarde apecebo-me que a velha Lhasa pode estar reduzida mas nao esta morta.
Seja como for, nao ha no meu olhar de turista o minimo rancor contra uma unica pessoa nesta cidade, seja qual fora a sua origem ou motivacao. Todos sao afaveis, sorridentes, humanos. Todo o chines emigrado para Lhasa deste os anos 50 nao faz outra coisa senao procurar uma vida melhor para si e para os seus. Nao podemos julgar uma pessoa pelo governo que rege o seu pais, muito menos quando esse governo nao e eleito.
Quando o Sol se comeca a por por detras das montanhas que rodeiam toda a cidade, estou reduzido a um corpo desfalecido sob o cansaco da altitude e das distancias percorridas. Mesmo assim, nao resisto a voltar a Jokhang. Penetro de novo pelas ruelas ja escuras, onde as vozes substituem as cores que vira de manha. Mais ou menos perdido, sigo os sons em direccao ao circuito do templo, ja muito mais calmo mas ainda cheio de fieis em oracao. Pergunto-me se esta persistencia se desenrola pela noite fora. Faco todo o percurso junto a um monge tibetano, impecavel no seu cabelo rapado e trajes laranjas, que acompanha um nomada das montanhas na sua visita a Lhasa. E sujo, tem o cabelo desgrenhado e poucos dentes. Sao irmaos.
Chegados a entrada do templo, apercebo-me que a entrada nao me esta vedada (ao contrario de tantas mesquitas espalhadas pelo mundo musulmano fora, redutos exclusivos dos praticantes dessa religiao que tanto da que pensar ao resto do Mundo) e penetro num universo mistico sem explicacao para um olhar como o meu, cidadao apressado de uma cidade que nao para para meditar. O templo e constituido por uma sucessao de patios internos abertos a um ceu estrelado, rodeados por velas que ardem, pinturas milenares e paredes de madeira cobertas por enormes cortinas com motivos tibetanos bordados a dourado. Esta pouca gente. Deambulo por labirintos dourados e fumegantes, onde monges e cidadaos rodam as suas rodas de oracao e rezam baixinho. Todo o espaco e contiguo, mas parece nao acabar, a medida que os meus passos me levam entre corredores e pequenos patios. No fundo de um deles, uma luz viva traz ate mim canticos a meia voz. Inebriado, persigo o clarao. Provem de uma pequena porta. Atravesso-a. Estou num templo enorme, e nas suas extremidades dezenas de fieis repetem as suas prostracoes defronte a varias capelas, cada uma com a sua divindade. No centro, o altar principal, a volta do qual se reunem os monges em oracao.
Ja e tarde, sou o unico turista ali. Nem sequer me cobram entrada ja. Mais uma vez me surpreendo pela indiferenca com que me acolhem. Nao querem saber. Estao concentrados nas suas venias e oracoes. As faces carregam o peso de uma Fe inabalavel, viva, pessoal. Totalmente intrasmissivel: apesar de sentir a divindade do lugar, nao sei interpreta-la. So sei que esta la.
Saio para a noite escura e procuro entre vultos na noite o caminho de volta a rua do meu hotel. Atraves de uma montra de vidro, vejo enormes cafes fumegantes bebidos por turistas de toda a parte, que ali partilham as suas experiencias e leem livros em tranquilidade. Sinto-me tao vivo como fisicamente desfeito. Era mesmo desta enorme chavena quente que eu precisava.
Monday, November 13, 2006
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2 comments:
Grande Luís Guimarães... (conhecido na gíria por Sirocco, esse vento que "o sopra" pelos mais variados Continentes deste Planeta). Venho por este meio exprimir toda a minha alegria e regozijo pelo facto, de saber que a partir de hoje poderei estar ao corrente dessa magnífica viagem que estás a galgar. Ainda só tive tempo de ler este primeiro comentário, mas já dá para provar um gostinho dessa prosa douta e inebriante proporcionada por este "GRANDE COMPANHEIRO DE VIAGEM". Gostei particularmente da exclamação -"Ontem, aterrei no Tibete" - devidamente separada dos demais parágrafos devido ao seu peso. Tenho de admitir que quando aterrei no Aeroporto Internacional de Phnom Penh, em agosto último,senti, provavelmente a mesma nostalgia que sentiste quando chegaste ao Tibete. Nunca tinha imaginado, nesta nossa efémera passagem por este belo planeta, aterrar algum dia na capital do Cambodja, numa companhia aérea que constava na lista negra das transportadoras aéreas. Enfim... aguardo ansiosamente por embriagantes narrativas tuas.
Um grande abraço do teu sempre,
Bernardo Braga da Cruz
Comecei a ler e só parei no fim, almocei a frente do computador porque não consegui parar de ler, obrigado meu caro por este blog e pela maneira como tás a descrever a tua viagem que deve ser absolutamente maravilhosa!
grande abraço
Tiago Salvação Barreto
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