Olho pela janela. Enormes gotas caem continuamente desde manha sobre as fachadas coloridas de Granada. Duas da tarde. Dura noite, ontem, no concerto popular na praca central. Passa o dia, escuro, molhado, humido. Sem cor, sem energia, sem pausa. Passa o dia, devagar; chegam as sete da tarde.
- So are we gonna get on the bus to Managua or not Luis?
- Yeah man. Let's go.
A chuva encharca-nos os corpos amolecidos e cola a roupa à falta de paciencia de ter de esperar por mais um obscuro autocarro . Que nao passa, que nao vem. Vamos ficar naquela rua para sempre. Na realidade, ja estou dormente de tanta agua sobre mim.
Decidimos mover-nos e apanhamos um taxi ate a saida da cidade e comecamos a pedir boleia. Por esta altura, agua e suor misturam-se em farripas indiferentes, ja tao naturais como a roupa ou a mochila.
Pára uma pequena carrinha. La de dentro, olhos escuros penetram-nos criticos. "No lleves los gringos", pedem, baixinho, ao condutor. "Si que los llevo. Subanse amigos, subanse."
Subam. Optimo, subam. "Suban", diz ele, subam para a parte de tras da minha carrinha cheia de gente que nao vos quer la dentro porque vos confunde com o governo do Reagan, onde nao ha um unico metro quadrado disponivel e onde ninguem faz a minima tencao de nos deixar entrar.
- Kevin, man, I say fuck it to these guys.
- Luis, we need to catch the bus today from Managua, I'm not sticking any longer in this town and the next official bus is tomorrow. Plus, it's raining.
- Kevin..
- Go in man!!!
Pego no mochilao e esmago o primeiro vulto junto a porta. E exactamente o que falou com o condutor. Nao me queres ca dentro, cabrao, agora aguenta-te que tambem estas a boleia e nao mandas nada aqui dentro.
Felizmente, todos os outros passageiros tomam o nosso partido e acomodam-se como podem para nos deixar entrar. Somos quatro: o Kevin, eu, e as nossas duas mochilas. Naquele caixote com rodas, sinto o sangue secar por todo o corpo enquanto me esmago contra as gentes do lado. Na Nicaragua, a primeira reaccao ao turista e carrancuda, especialmente se o tomarem por americano. Explico que sou portugues. O Kevin, atraves da sua simpatia natural, demonstra que nao somos agentes da CIA nem estamos aqui para lutar contra guerrilheiros sandinistas dos anos 80. Conquistamo-los. Parecem surpreendidos ao ver gringos simpaticos. Eu tambem me surpreendo por finalmente ver sorrisos na Nicaragua. Ja estava a ficar farto de ser atacado com olhares criticos so pelo mero facto de existir.
La fora, chove a potes, enquanto a nossa lata se demora ate Managua. Chegamos. Finalmente, esticamos as pernas e a imaginacao. Escura a rua onde o nosso condutor deixa todo o grupo.
- Quanto es, amigo??
- Nada.
- Nada?! No, no, algo te pagamos. Toma, 50 cordovas.
- No. Somos amigos. No necesito dinero. Fue un gusto traervos.
Lembro-me do guia marroquino que recusa os dolares do Brad Pitt enquanto uma guitarra argentina lentamente eleva o seu helicoptero pelos ares de Marrocos.
Porque e que nos, "primeiro-mundistas", temos sempre a mania de trocar tudo por dinheiro?
Apanhamos depois um taxi para a estacao de autocarros de Managua. Dez da noite, um obscuro portao abre-se para um parque de estacionamento. "A que hora sale para El Rama?" "A las once." Olhamos um para outro. "We're fine", exclamamos em simultaneo.
Agora so faltam 5 horas num autocarro pestilento com musica aos berros em cima dos meus ouvidos. Acordo a meio da noite, depois de estranhos sonhos com livros abertos e pautas de musica. Tres da manha. Chegamos a El Rama. El Rama e o final da estrada. A partir dai, so barcos, pequenos barcos a motor que nos levam por um castanho rio abaixo, ate ao Caribe.
Passamos as horas com cafes e tortillas partilhadas com Gary, um amigo de ocasiao. Tem 23 anos e nao ve a mae desde que, ha 16 anos, ela emigrou para os EUA para lhe pagar os estudos. Um dia, o Gary vai ser alguem nos EUA. "That's how it works Luis", explica-me o Kevin, "the first generation goes to the States, works their butt of and hopes their kids will be someone in life. My ancestors, when they came fro Ireland, worked on the fucking Panama Canal for years and years until establishing themselves in Chicago."
Passo, obviamente, as duas horas que dura a viagem entre o verde tropical da vegetacao e o castanho do rio, a pensar no sentido da vida da mae do Gary, que nao ve os seus filhos ha anos e anos para lhes proporcionar uma vida melhor. Concluo, quando batem as sete da manha e a boca castanha do rio se abre para um porto degradado onde gente muito escura nos espera junto das suas casinhas de estacas coloridas, que nasci com muita sorte.
Entretido com estes pensamentos, chegamos entao a Bluefields.
Bluefields, Nicaragua.
Bluefields, Caraibas.
Parece que mudamos de Mundo. Ja ninguem sequer fala espanhol. Normal, estamos ja muito longe do outro lado da America Central.
"Hey Kevin, I think that if I was a geographer, or an anthropoligist, or something like that, I would just name the Caribbean a new different continent."
Nao me responde. Esta tanto calor que ele perdeu a paciencia para falar. Faco como ele e adormeco no taxi em direccao ao aeroporto onde vamos comprar o bilhete de aviao que nos vai levar as Corn Islands, no dia seguinte.
3 comments:
Só para te avisar que Bluefields é conhecida (apesar de não estar no LP) como a cidade onde "se pesca cocaína".
Constou-me que não é o melhor lugar para estares, a não ser que te tenhas entregue à Branca.
Só barões da droga, índios tresloucados e pequenos delinquentes consumidores.
Forte abraço enquanto espero pela tua versão da localidade
PS - A história de "se pescar cocaína" está relacionada com a privilegiada posição da vila na rota da droga. Que com a ajuda das marés, lhes permite encontrar, com rotina, enormes fardos de droga, que foram deitados ao mar pelos traficantes nas suas diárias fugas à DEA e polícia marítima.
agora ainda e melhor vir aqui, viajo a dobrar!sempre que posso, venho!
e quem sabe nunca esquece, o teu dom da escrita continua imaculado!vou tentar continuar a sacar umas fotos!
p.s - luises nunca vos disse mas tambem nunca e tarde:os vossos blogs despertaram me aquela vontade de viajar. so por isso obrigado por terem escrito e continuarem a escrever. o problema e que esta merda e viciante, nao sei se tanto como as especiarias de bluefields.
abr e boa viagem!
lorena ja sei da reportagem sobre bluefields na fhm. uma coincidencia engracada, tou morto por ler! quanto a encontrar cocaina entre as ondas, eu nao vi nada mas conheci pescadores que conhecem outros pescadores que vivem disso. enfim.
mc, fico mt orgulhoso e contente.
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