Passei ontem por uma fase difícil quando cansado de uma noite mal dormida um dia inteiro às voltas as pernas moídas de tanto caminhar as solas de borracha gastas e as trombas gigantes nascidas de uma irritante dor no pescoco por dormir de cabeca torta num aviao decidi que o banco gasto de um comboio sub-urbano às onze da noite era o lugar ideal para acabar a Pastoral Americana e li as suas últimas dez páginas apenas para perceber que apesar de conter maravilhas inimagináveis em quase cada página se trata de um livro inacabado.
Assim. Assim mesmo, como a este texto faltavam as vírgulas, assim, à Pastoral, falta um capítulo, dois, talvez três, ou mais ainda, mais, quantos forem necessários, cinco, até, para que o grande livro que é se pudesse transformar numa obra-prima.
(A forma verbal "falta" nao está distraídamente na mesma frase que a forma verbal "pudesse". Porque falta, de facto, algo à Pastoral, e o que falta nao é algo que possa transformá-la numa obra-prima, porque a Pastoral já foi escrita. Portanto, embora falte algo, hoje, no presente - porque quem lê, lê no presente - essa falta nao pode ser modificada, porque o que está escrito, está escrito (já foi escrito), e os livros nao sao escritos a lápis. E portanto, temos "pudesse", e nao "possa". Isto é, o que lhe falta, sempre faltou, e falta hoje, também, mas nunca, desde que comecou a faltar, pôde, nem pode, nem poderá, essa falta ser modificada. Curiosa, a arte: existe imutável.)
No comments:
Post a Comment