Noutro dia aconteceu-me uma coisa engraçada.
Ia, no meu hábito diário, pé ante pé para o trabalho, no meu fatinho, sobretudo e sapatinhos impecáveis, quando, no shuffle do iPod, os Metric começaram a tocar The Police and the Private. Inicialmente não liguei, mas quando cruzava a Praça da Alegria, já a chegar à Avenida da Liberdade, comecei a sentir-me mais leve, a perder conteúdo.
Fiquei assustadíssimo, porque não é normal perder peso em tão pouco tempo, e olhei à minha volta, para ver se mais alguém se apercebia do ar que me enchia todo o corpo, enquanto a Emily Haines me lembrava, numa voz grave e electrizante “never expect to be sure...who you’re working for”. Nem liguei muito à letra, e tentei manter-me direito, mas os meus pés guinavam em direcções contrárias às minhas indicações e às tantas ficaram tão leves que a força dos meus joelhos já não os conseguia mover. Nesta altura eu estava aterrado, especialmente porque as pessoas à minha volta continuavam na sua rotina cabisbaixa a caminho do trabalho, sob os reluzentes raios de luz que todas as manhãs se escapam, matinais, por entre as altas copas da Avenida da Liberdade, sem reparar na minha mutação.
O sinal ficou verde e eu tentei, num derradeiro esforço, entre acordeões e sintetizadores, forçar-me em frente, mas algo na música me estava a hipnotizar, junto com os meus pés e o resto do corpo. Sem dar por mim, e já longe da realidade de carros que zurziam à minha volta, autorizados por um semáforo que já tinha mudado de novo, eu estava a flutuar pela passadeira, em plena Avenida da Liberdade. Não se podia dizer que estivesse a voar, porque alguma coisa nos meus pés me prendia ao chão, como chumbo num fio de pesca, mas, definitivamente, nada em mim tocava na terra. Entre a sola dura dos meus pesados sapatos e o alcatrão da estrada, uma fina camada de música arrastava-me em frente, como numa passadeira rolante feita de acordes. E eu, que por essa altura já me tinha entregue por completo à impotência perante uma força maior, ergui a cabeça e deixei-me levar, já nem sequer pelos pés que deslizavam pelo ar acima, mas por uma força qualquer que também me puxava pelos ombros, como se eu fosse uma tesa marioneta, movida ao sabor dos graves e dos agudos.
Em menos de nada, estava à porta do trabalho. Pause. “Não posso aparecer no escritório a voar”, pensei, “vão achar que sou louco e não quero perder o emprego só porque encontrei uma música com asas.”
Ainda combalido, lá entrei no elevador, onde inventei o meu melhor sorriso cínico quando o burocrata dos Recursos Humanos me disse, com o seu maior entusiasmo profissional, enquanto o elevador subia, “Já viu, oh Luís! Isto de andar no elevador é como voar, fechamos a porta e passados trinta segundos estamos 50 metros mais alto.”
“É que é mesmo!”, respondi, mostrando-lhe o cuidado com que lavo os dentes de manhã, enquanto pensava: “Sabes lá tu o que é voar.”
Passou-se um dia de trabalho e, à volta, ansioso por voar de novo, liguei o iPod. Massive Attack. Maximo Park. Mazzy Star. Metallica (“Metallica?!”). Metric. (“Metric!! Play!! Play!!”). Play. Sem bateria.
“Merda.”, pensei, “Vou ter de ir a pé”.
E lá fui eu, magicando planos para a minha próxima audição da música, imaginando uma maneira de voar mais alto desta vez.
Sábado acordei, tomei um duche e, refrescado por longas horas de sono, vesti-me, tendo o cuidado de calçar uns Onisukas sob uma roupa ligeira (às riscas, claro, mas isso não mexe com a força da gravidade). Apetecia-me ir até ao Chiado e, como moro perto, mandei-me a pé.
iPod. Metric. Play.
Comecei a andar sem preocupações, pé ante pé, sentido-me leve, como só o sábado de manhã com sol e frio me faz sentir. “Get straight and wait here, while I try to find the exit sign! When will you stop asking strangers? No one wants what we want!”. Sem reparar, fechei os olhos, de novo hipnotizado.
Desta vez, o efeito chegou mais depressa, de novo sem que eu o esperasse. Aliás, já nem me lembrava do episódio de sexta-feira. “When they close the gates I’ll cry”. E lá ia eu. Passado segundos, já não pensava. “The whole World wants, what we are!”. Quando cheguei ao fim da rua, já pedalava os meus ténis verdes no ar, como se uma bicicleta invisível me transportasse rua acima, entre arcadas caiadas de branco e velhotas à janela. “Ah então isto é que é o Bairro Alto dos primeiros andares. Que giro.”
Enquanto a música continuava, preenchia-me todo o corpo um fio condutor, etéreo e indifinido, meio transparente e meio vibrante, uma espécie de bolha de ar luzidia, que nunca cheguei a perceber se era feita de sintetizadores, de imaginação, ou de Sol reflectido nas janelas abertas. “You're working for the police and the private, the pilots and the pirates”.
“Meu Deus!”, pensei maravilhado, “Estou a voar!!!” E estava. Já ía, por esta altura, bem acima dos telhados atijolados de Lisboa,e vagueava, levemente, em direcção a uma ou outra nuvem. Desde pequeno, sempre quis saber se as nuvens faziam de trampolim se lhes saltássemos em cima, de maneira que fechei os olhos e esperei até ser levado até lá. Senti, enquanto a música fluía, indiferente, no seu ritmo sonhador, uma fresca humidade percorrer a minha cara, o meu peito e finalmente as minhas pernas e pés.
Abri os olhos. “Estou em cima duma nuvem!” maravilhei-me, meio encadeado pelo poder luminoso do Sol que me cegava os sentidos. “Que calor. Vou saltar.” Abri os braços, fiz força para baixo, encolhi os joelhos e, impulsionado por um baixo imaginário, elevei-me acima da nuvem, totalmente tomado pelo sonho infantil de saltar indefinidamente sobre a superfície elástica de uma nuvem.
“Got to get you, the orphanage is closing in an hour”. Ela cala-se. A música perde, lentamente, volume e instrumentos. Sinto-me trespassado por uma fresca humidade de algodão e o vento que me colhe os cabelos. Tenho chumbo nos pés. “O que é isto!!”, berro, agarrando-me ao iPod. A nuvem já ficou bem lá em cima, trespassada pelo meu corpo em queda.
“Play! Play”. Carrego furiosamente no botão, enquanto sinto o meu corpo desfragmentar-se em direccção ao chão. Um orgão martela lentamente os seus últimos acordes. “Play!”, berro, desesperado, apercebendo-me tarde demais que tenho o “hold” das teclas activado. Não há nada a fazer, vou cair. Tal como quando subia, fecho os olhos e aguardo embate. “Meu Deus, isto vai doeeerrr”.
Acaba a música. Abro os olhos.
O Fernando Pessoa olha-me no impávido olhar esverdeado. “Põe tudo o que és, naquilo que fazes”, parece dizer-me. Alguns turistas olham-me com olhar divertido, e apontam para o meu cabelo desgrenhado e a roupa húmida. Devo parecer estranho, a olhar uma estátua nos olhos, com roupa colada ao corpo e um iPod a sair-me do bolso de trás das calças.
“Como é que eu já cá estou”, pergunto-me embasbacado, intrigado por não me lembrar do caminho de casa até ali. “Devo ter vindo a voar, só posso”.
Sorrio divertido e desço a rua. “Meu Deus, como sou distraído.”
Está uma bela manhã de Inverno. De certeza que, com um dia destes, Ícaro se teria salvo.
Sunday, January 21, 2007
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15 comments:
São poucas as palavras que tenho depois de ler isto.
Vou usar uma, em nada depreciativa, enumeração porque estou vergado perante o poder desta narrativa.
1 - Alguém te anda a meter coisas na bebida.
2 - Por acaso precisas de perder peso.
3 - Genial.
O teu Ipod emana cocaina pelos ouvidos de certeza!
Vou usar a técnica de alguém no passado e comentar sobre um post antigo, para que se veja.
Acerca de Babel, quero-vos recomendar o filme "amores perros". Para quem não sabe, babel é o segundo de uma triologia em que o amores perros é o 1º. E diz quem viu (eu infelizmente ainda não o fiz), o primeiro da triologia é ainda melhor que o segundo. O realizador é o mesmo, e o as histórias paralelas mantêm-se. Parece é que o objecto comum (em Babel, a espingarda) é outro.
percebo perfeitamente o que queres dizer c este post. tambem costumo voar, ver o mundo d fora. Ser elevada, puxada da realidade. Totalmente absorvida por qq coisa sem denominação aparente.
É um privilegio curioso, voar no tempo sem ele passar.
Já me aconteceu algo semelhante ao som de algumas músicas.
Depois de ler este post há algumas palavras que têm de sair cá para fora (da minha cabeça):
- sonho
- fantasia
- imaginação
- sensibilidade
- vida urbana
- Europa
- materialismo
Após esta leitura apetece-me recordar com sorriso na cara, que "la retoma está veíndo"...
Altura em que voávamos em direcção a Marraquexe...
P.S. Dostoievsky aguarda por ti, Louie
haverá alguma coisa melhor que flutuar, voar,ser erguido sem esforço? hmm não me parece!
O texto fez-me passar a passadeira aos saltinhos como se de pedrinhas em cima de um lago se tratasse!
Hoje não estou nada nos meus dias, acordei cedo para ir buscar uns últimos apontamentos para a frequência que vou ter hoje, ando tão stressada que tive mais um dos meus pequenos "acidentes" com o carro, lá risquei de ladex o meu bolinhas, mais tarde arranquei e esqueci-me da minha mãe(tive que voltar para trás e já estava bem longe), ...
Que porra da dia!
há alguem q precisa de ferias:p
Maria Strüder,
O que escreveste foi um desabafo ou um comment ao post?
Em qualquer dos casos não percebi.
muito bom
e chegou a minha vez de fazer elogios (olhai a troca de galhardetes). Adorei. Não conheço a música mas sim a sensação. Ideal, ideal seria, se a par das asas, conseguíssemos o dom do invisível. E assim ninguém nos via do lado de lá dos recursos humanos. Ou do pbx.
ahh tao lindo!
2 em 1 um desabafo sobre o meu dia mas acaba por estar relacionado ao post porque é a descrição de um dia também.
"...oh the weight it must be light wherever you are"
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