- Interpol - Next Exit
- Interpol - C'Mere
- The Cure - High (Acoustic)
- TV on the Radio - Blind
- Wolf Parade - I'll believe in Anything
- Sunset Rubdown - Shut up I Am Dreaming of Places where Lovers have Wings
- Flunk - Play
- Beirut - After the Curtain
- Red Hot Chilli Peppers - Snow (Hey Oh!)
- The Killers - Read my Mind
Wednesday, January 31, 2007
Esta semana, em Repeat:
Monday, January 29, 2007
Friday, January 26, 2007
Juventude (irre)quieta
- João!
- Peter, como é que é! Que susto pá!
- Pois, ias aí distraído! Tás com um ar triste pá!
- Foda-se tou cansado.
- Também eu. E então, qué feito?
- Pá nada de especial..tenho trabalhado comó caraças.
- Pois, é como eu. E mais?
- Pá..uns copos e tal. Umas futeboladas..
- Como é que tá a Margarida?
- Acabámos.
- Tu e a Margarida acabaram?!
- Pá já não dava. Nunca nos víamos.
- Foda-se mas davam-se tão bem pá!
- Pois era. Pá não dava. Ando a trabalhar mesmo muito. As gajas precisam de atenção Pedro. Eu não podia dar-lhe tanto quanto ela pedia..
- Mas andas com tanto trabalho porquê?!
- Sei lá pá. Projectos e mais projectos. Já quase nem durmo. Pá não sei, isto tá a entrar numa espiral maluca. Tou viciado naquela merda.
- Tem cuidado pá. Precisas de respirar, de vez em quando. Pá não vais acabar com uma namorada de 5 anos porque não tens tempo para a ver, Pedro!!
- Pois. Não sei. Então e tu pá! Não te vejo desde a faculdade. Como é que é? Sempre aceitaste a tal proposta?
- Aceitei! Pá tá a ser bem louco!
- Muito trabalho?
- Imenso. Pá mas tem que ser, não é. Um gajo tem que se alimentar de alguma maneira.
- Até parece que trabalhas pa comer!! Com um ordenado desses..!!
- Um gajo quer sempre mais pá. O meu objectivo já não é comer. É viajar. Ter um carro. Uma casa. Olha agora meti metade da guita num fundo marado, Japão e Singapura.
- Sempre a pensar nos trocos. E como é que tas? Tens ido pós copos?
- Nada. Chego a casa na sexta, adormeço, sábado durmo até tarde e de vez em quando ainda vou dar uma volta. Bem anteontem fodi-me todo. Mas tenho andado calminho. Pá ando muita cansado também.
- Futeboladas, nada?
- Não dá. Porra saio do escritório às dez. Chegar a casa não chegar, mudar de roupa…só se houvesse jogos às onze.
- Realmente tas mais gordo.
- Vai pó caralho! Cabrão! Um gajo a comer saladas o dia todo e tem que gramar com isto!
- Bolinha! Uma bolinha trabalhadora, é o que tu és!
- Cabrão do esparguete a dar-me baile. Mas olha, como é que é, almoçamos aí amanhã?
- Não pá, nunca tenho tempo para almoçar..
- Jantamos?
- Pá não dá. Hoje em dia não dá mesmo..
- Porra, um gajo tem que marcar uma reunião para tar contigo?!
- Pergunta à Margarida..ela conhece os esquemas todos!!
- Mesmo assim não chegou..
- Nunca chegaria..
- Pá..
- Que é que foi?
- Andamos a desperdiçar as nossas vidas João.
- Achas?
- Porra ainda perguntas? Somos uns putos, só queremos é noite e gajas e jogar à bola e olha para isto. Não temos tempo para almoçar, mal dormimos, nem sequer uma namorada dá pa ter.
- Pá Pedro..pois é. Não sei que te diga.
- Mas isto tudo para quê?
- Pá não sei. Carreira. Guito. Pá curtia dar uma vida boa aos meus filhos.
- Aos teus filhos?! Teus e da Margarida?
- Pá não gozes. Percebo o que queres dizer. Mas não sei. Um dia havemos de ter filhos porra!
- Só se forem adoptados. Tanta gente a ter filhos sem os poder sustentar..e tanta a trabalhar tanto que não os pode ter..que ironia..
- Pensas demais nas coisas. Pá não sei que é que quero. Mas tou bem. Gosto do que faço, ganho bem..para já, tou bem.
- E queres ficar assim para sempre?
- Sei lá. Logo vejo.
- O que me faz impressão é um gajo poder ter sempre mais. Por esta lógica, passamos a vida inteira a trabalhar 15 horas por dia. Ricos e sozinhos.
- Ricos e sozinhos. Cheios da putas e gold-diggers!
- Que tristeza.
- Não, tou a gozar pá. As coisas compõem-se. Quando vir os putos num colégio bacano, e contentes com o que eu lhes puder dar, acho que valeu a pena.
- E depois tornas-te velho, trabalhaste que nem um porco e tens uns putos felizes. Boa. E eles, vão fazer o quê? Trabalhar que nem uns porcos e fazer os teus netos felizes. E as gerações não passam disto, de passar a bola umas para as outras?
- Pelo menos cria-se uma fortuna familiar!
- Grande coisa. E a vida do patriarca, terá valido a pena?
- Pá, morrer workaholic mas fundador de uma geração de empresários competentes..não acho um mau destino..
- Basta-te?
- Pá..
- Basta-te a consolação de teres oferecido a vida em nome dos teus filhos?
- Talvez.
- Pá a mim não. Só temos uma vida. Tudo bem em dar agora alguns anos a esta loucura do trabalho, mas para sempre..acho que eu não aguentava.
- Mas a vida é trabalho Pedro. Quer dizer..que é que queres da vida então? Queres parar de trabalhar? Penduras a gravata e vais para um café ler livros durante dez anos, é isso?
- Olha por exemplo.
- Tu não bates bem da bola.
- Também acho que não.
- Olha, admites! Nada mau!
- Mas tu também não bates oh magricelas. Olha pa essas olheiras..andas-te a tratar bem andas..E vais-me dizer que se fosses milionário trabalhavas o que trabalhas?
- Pá talvez, não sei. Gosto de pensar a vida dia a dia. Realmente esta merda fazia toda mais sentido com a Margarida ao meu lado..
- Tudo faz mais sentido com elas pá. Até para trabalhar, dá mais gozo ter uma gaja ao lado.
- Realmente. Pá no limite um gajo só pensa nelas não é?
- Só. Pá eu falo por mim. Isto sem mulheres não valia a pena.
- Zero. Imagina lá!! Um Mundo sem gajas!!
- Olha para ti era logo tiro nos cornos, se o que queres é ter putos a baloiçar-se em escorregas de ouro!!
- Foda-se somos mesmo uns putos.
- Uns putos de merda, cheios de sonhos na cabeça.
- E guito. Cheios da guita nos cornos.
- Cheios da guita. Nos cornos e nos bolsos.
- Foda-se hoje vou-me foder todo. Tou-me a cagar. Vou arrebentar duzentos Euros em copos.
- Johnny, tou preocupado contigo!
- Admito, tou a dar em doido com esta merda do trabalho.
- Somos uns putos insignificantes com sonhos na cabeça e vontade de os realizar.
- Sonhos sem conteúdo.
- Com ou sem conteúdo, são sonhos.
- Sonhos que nos castram a juventude pá..
- Há que dar algo em troca deles Jonas..
- Dar para receber. Dia-a-dia. E depois morrer.
- Há um princípio e um fim para tudo..
- E no meio, uma vida..
- Bem curta..
- Rodeada por mais 6 biliões de vidas, e um Universo inteiro!
- Somos mesmo insignificantes não somos?
- Um pedaço de nada Pedro. Mas há que maximizá-lo.
- Seja como for, há que maximizá-lo..
- Bem..
- Vamos à vida?
- Bora. Vou andando. Gandábraço pá. Adorei ver-te.
- Também eu! Fica bem!
- Vá, até à próxima!
- Olha!
- Diz!
- Se não nos virmos, Bom Ano!
- Ainda tamos em Outubro pá!!
- Então Bom Natal!
- Otário!
- Um abraço!
- Abraços
- Peter, como é que é! Que susto pá!
- Pois, ias aí distraído! Tás com um ar triste pá!
- Foda-se tou cansado.
- Também eu. E então, qué feito?
- Pá nada de especial..tenho trabalhado comó caraças.
- Pois, é como eu. E mais?
- Pá..uns copos e tal. Umas futeboladas..
- Como é que tá a Margarida?
- Acabámos.
- Tu e a Margarida acabaram?!
- Pá já não dava. Nunca nos víamos.
- Foda-se mas davam-se tão bem pá!
- Pois era. Pá não dava. Ando a trabalhar mesmo muito. As gajas precisam de atenção Pedro. Eu não podia dar-lhe tanto quanto ela pedia..
- Mas andas com tanto trabalho porquê?!
- Sei lá pá. Projectos e mais projectos. Já quase nem durmo. Pá não sei, isto tá a entrar numa espiral maluca. Tou viciado naquela merda.
- Tem cuidado pá. Precisas de respirar, de vez em quando. Pá não vais acabar com uma namorada de 5 anos porque não tens tempo para a ver, Pedro!!
- Pois. Não sei. Então e tu pá! Não te vejo desde a faculdade. Como é que é? Sempre aceitaste a tal proposta?
- Aceitei! Pá tá a ser bem louco!
- Muito trabalho?
- Imenso. Pá mas tem que ser, não é. Um gajo tem que se alimentar de alguma maneira.
- Até parece que trabalhas pa comer!! Com um ordenado desses..!!
- Um gajo quer sempre mais pá. O meu objectivo já não é comer. É viajar. Ter um carro. Uma casa. Olha agora meti metade da guita num fundo marado, Japão e Singapura.
- Sempre a pensar nos trocos. E como é que tas? Tens ido pós copos?
- Nada. Chego a casa na sexta, adormeço, sábado durmo até tarde e de vez em quando ainda vou dar uma volta. Bem anteontem fodi-me todo. Mas tenho andado calminho. Pá ando muita cansado também.
- Futeboladas, nada?
- Não dá. Porra saio do escritório às dez. Chegar a casa não chegar, mudar de roupa…só se houvesse jogos às onze.
- Realmente tas mais gordo.
- Vai pó caralho! Cabrão! Um gajo a comer saladas o dia todo e tem que gramar com isto!
- Bolinha! Uma bolinha trabalhadora, é o que tu és!
- Cabrão do esparguete a dar-me baile. Mas olha, como é que é, almoçamos aí amanhã?
- Não pá, nunca tenho tempo para almoçar..
- Jantamos?
- Pá não dá. Hoje em dia não dá mesmo..
- Porra, um gajo tem que marcar uma reunião para tar contigo?!
- Pergunta à Margarida..ela conhece os esquemas todos!!
- Mesmo assim não chegou..
- Nunca chegaria..
- Pá..
- Que é que foi?
- Andamos a desperdiçar as nossas vidas João.
- Achas?
- Porra ainda perguntas? Somos uns putos, só queremos é noite e gajas e jogar à bola e olha para isto. Não temos tempo para almoçar, mal dormimos, nem sequer uma namorada dá pa ter.
- Pá Pedro..pois é. Não sei que te diga.
- Mas isto tudo para quê?
- Pá não sei. Carreira. Guito. Pá curtia dar uma vida boa aos meus filhos.
- Aos teus filhos?! Teus e da Margarida?
- Pá não gozes. Percebo o que queres dizer. Mas não sei. Um dia havemos de ter filhos porra!
- Só se forem adoptados. Tanta gente a ter filhos sem os poder sustentar..e tanta a trabalhar tanto que não os pode ter..que ironia..
- Pensas demais nas coisas. Pá não sei que é que quero. Mas tou bem. Gosto do que faço, ganho bem..para já, tou bem.
- E queres ficar assim para sempre?
- Sei lá. Logo vejo.
- O que me faz impressão é um gajo poder ter sempre mais. Por esta lógica, passamos a vida inteira a trabalhar 15 horas por dia. Ricos e sozinhos.
- Ricos e sozinhos. Cheios da putas e gold-diggers!
- Que tristeza.
- Não, tou a gozar pá. As coisas compõem-se. Quando vir os putos num colégio bacano, e contentes com o que eu lhes puder dar, acho que valeu a pena.
- E depois tornas-te velho, trabalhaste que nem um porco e tens uns putos felizes. Boa. E eles, vão fazer o quê? Trabalhar que nem uns porcos e fazer os teus netos felizes. E as gerações não passam disto, de passar a bola umas para as outras?
- Pelo menos cria-se uma fortuna familiar!
- Grande coisa. E a vida do patriarca, terá valido a pena?
- Pá, morrer workaholic mas fundador de uma geração de empresários competentes..não acho um mau destino..
- Basta-te?
- Pá..
- Basta-te a consolação de teres oferecido a vida em nome dos teus filhos?
- Talvez.
- Pá a mim não. Só temos uma vida. Tudo bem em dar agora alguns anos a esta loucura do trabalho, mas para sempre..acho que eu não aguentava.
- Mas a vida é trabalho Pedro. Quer dizer..que é que queres da vida então? Queres parar de trabalhar? Penduras a gravata e vais para um café ler livros durante dez anos, é isso?
- Olha por exemplo.
- Tu não bates bem da bola.
- Também acho que não.
- Olha, admites! Nada mau!
- Mas tu também não bates oh magricelas. Olha pa essas olheiras..andas-te a tratar bem andas..E vais-me dizer que se fosses milionário trabalhavas o que trabalhas?
- Pá talvez, não sei. Gosto de pensar a vida dia a dia. Realmente esta merda fazia toda mais sentido com a Margarida ao meu lado..
- Tudo faz mais sentido com elas pá. Até para trabalhar, dá mais gozo ter uma gaja ao lado.
- Realmente. Pá no limite um gajo só pensa nelas não é?
- Só. Pá eu falo por mim. Isto sem mulheres não valia a pena.
- Zero. Imagina lá!! Um Mundo sem gajas!!
- Olha para ti era logo tiro nos cornos, se o que queres é ter putos a baloiçar-se em escorregas de ouro!!
- Foda-se somos mesmo uns putos.
- Uns putos de merda, cheios de sonhos na cabeça.
- E guito. Cheios da guita nos cornos.
- Cheios da guita. Nos cornos e nos bolsos.
- Foda-se hoje vou-me foder todo. Tou-me a cagar. Vou arrebentar duzentos Euros em copos.
- Johnny, tou preocupado contigo!
- Admito, tou a dar em doido com esta merda do trabalho.
- Somos uns putos insignificantes com sonhos na cabeça e vontade de os realizar.
- Sonhos sem conteúdo.
- Com ou sem conteúdo, são sonhos.
- Sonhos que nos castram a juventude pá..
- Há que dar algo em troca deles Jonas..
- Dar para receber. Dia-a-dia. E depois morrer.
- Há um princípio e um fim para tudo..
- E no meio, uma vida..
- Bem curta..
- Rodeada por mais 6 biliões de vidas, e um Universo inteiro!
- Somos mesmo insignificantes não somos?
- Um pedaço de nada Pedro. Mas há que maximizá-lo.
- Seja como for, há que maximizá-lo..
- Bem..
- Vamos à vida?
- Bora. Vou andando. Gandábraço pá. Adorei ver-te.
- Também eu! Fica bem!
- Vá, até à próxima!
- Olha!
- Diz!
- Se não nos virmos, Bom Ano!
- Ainda tamos em Outubro pá!!
- Então Bom Natal!
- Otário!
- Um abraço!
- Abraços
Thursday, January 25, 2007
Manhã em Lisboa
Está uma luz transparente em Lisboa. O Sol reflecte-se nas pocinhas de água e chapinha nas imagens que saltitam em gotas. Mil pessoas multiplicam-se em fragmentos de luz, e espalham-se pela calçada reluzente a cada passo molhado de quem passa. Um frio sem vento absorve os passos e as poucas nuvens, e funde-se com os raios abstractos que iluminam amarelados todas as avenidas. Nos carros vemo-nos ao espelho antes de desaparecermos e surgirmos de novo no próximo charco, na próxima porta metalizada. O castanho dos sobretudos ensonados funde-se com as copas despidas das árvores, algumas amarelas, como o movimento dos táxis que passam. Não há cinzentos hoje, nem em mim nem nas tímidas nuvens, que já fogem amedrontadas, assustadas com esta manhã luminosa.
Tuesday, January 23, 2007
Quando corro nas Docas
Estava um gelo hoje, quando cheguei às Docas. Bati com a porta do carro, apertei os sapatos e andei os vinte metros do costume até ao lugar onde todos os dias respiro fundo, lanço um último suspiro invejoso aos vultos que levam à boca chávenas cheias, do outro lado do vidro do café, e carrego no botão de cima do relógio antes de me fazer ao percurso.
Hoje, corri sem preconceitos contra a gravidade. Geralmente, os primeiros cinquenta passos dão-me a ideia do que vai ser a próxima meia hora. Perros, soltos, lentos, velozes, bem respirados, em esforço, de pulmões abertos, ou com uma certa azia. Tudo é possível, no momento em que me lanço a correr, e tudo será, durante meia hora, como nos primeiros trinta segundos.
Hoje, os meus movimentos fluíram sem gravidade. Estava um gelo, o chão escorregava sob a humidade de uma chuva miudinha acabada de cair e, para além de uma garça solitária, ninguém se atreveu a exercitar-se neste dia. Ou então, ninguém gosta de se exercitar às nove da noite. Eu, na verdade, também não. Olho em frente, para o Padrão dos Descobrimentos lá ao fundo, representante dos primeiros 25% do que me falta. Nove da noite, um vento gelado paralisa-me as mãos e o cabelo esvoaça com o vento e com a velocidade. Ouço a minha respiração bem treinada, quatro inspirações, quatro expirações,quatro inspirações, quatro expirações, quatro..meu Deus, como estou vivo hoje!, não há obstáculo que me trave, não há ninguém a ver-me, não há – já – as palavras do chefe que quase me impediam de estar ali naquele momento.
“Luís, quanto é que te falta daquilo que te pedi ontem?” – “Pá já fiz uma boa parte. Tá porreiro, mas preciso ainda de umas seis ou sete horas para acabar.” – “Preciso disto amanhã à hora do almoço pá..” - “Claro. Amanhã tou cá às sete então. Mas agora tenho mesmo de sair.” – “Tu é que sabes pá! Até amanhã”.
Até amanhã. São oito e meia, e preciso de respirar.
Quatro inspirações, quatro expirações.
Ouço os meus ténis desprezar a pedra molhada. O chão, hoje, não é nada para mim. Nada. Hoje, quem manda em mim sou eu. Não há músculo das minhas pernas que não se submeta ao sorriso que me oxigena a mente, enquanto passo pelas esplanadas interiores cheias de passageiros acomodados, ansiosos, também eles, pelo seu início de noite. Cada um o vive à sua maneira e eu, ultimamente, tenho-o vivido, meia hora por dia, saltitando velozmente pelo chão à beira-rio.
Está uma ventania, há ondas que se formam sobre a superfície escura do Tejo. Nada que me impeça de continuar o meu caminho. Um casal beija-se esperando pelo ferry para Cacilhas. Quando os vejo, já passei por eles. Não são nada para mim, ali só interesso eu, na minha marcha imparável, orgânica, satisfeita com ela própria. Fico feliz por eles, porém. Sinto algum carinho por todos os que estão ali fora ao frio, como eu. O meu dia de hoje e o seguinte passam-me pela cabeça. Sou de novo criança, vejo imagens da escola, vejo imagens do futuro, recordo viagens e amores. Parece que tudo faz mais sentido, às nove da noite junto ao rio, quando o único contacto com a terra é meio segundo de sola de borracha a cada momento.
Depois do clube de vela, onde algumas vozes solitárias arrumam as últimas quilhas, eis os Jerónimos. Os Jerónimos! Lembro-me, enquanto os meus passos inspiram toda a frescura da noite fria, amigas argentinas dizerem-me, em Roma, que tinham passeado pelos Jerónimos na sua vinda a Lisboa. Esses mesmos Jerónimos que tanto as impressionaram, são o palco fugidio da minha corrida. Sinto um arrepio de posse. Que luxo, esta corrida lado a lado com os Jerónimos. Tão mágicos para tanta gente, tão cénicos para mim. Companheiros do dia-a-dia que nem um olhar me merecem. Estão lá e eu estou aqui, ou estava, porque já percorro, quase sem tocar no chão, a rosa-dos-ventos de mármore cem metros mais à frente.
Vejo, no meu ritmo egocênctrico, os primeiros carros, estacionados na escura tira de alcatrão que alcanço em dois saltos.
Nove da noite em Lisboa.
Vidros embaciados denunciam amores proibídos. Passo indiferente, e não deixo de magicar. O que pensarão de mim aqueles casais enamorados? E serão enamorados? Imagino como me olham e comentam, “Bem! Olha-me este gajo, já viste. Às nove da noite aqui a correr. Ganda maluco.” Ou então “Porra este tipo deve gostar mesmo de correr. Deve-lhe fazer bem isto; tá melhor do que nós, aqui encafuados a fumar canhões. Foda-se, abre lá a janela. Olha para aquilo, é rápido o gajo. Já ali vai.”
E lá vou eu, tão oxigenado pela minha corrida que não me apercebo que ninguém me vê do lado de lá dos vidros. Os olhos não estão postos em mim. Os olhos miram-se mutuamente. Os amores escondidos são fugazes e intensos. Não há tempo a perder, no amor das nove da noite nas Docas.
“Já são nove, tenho de ir para casa. A minha mulher já me anda a ligar.” Este BMW está quase a arrancar. Mas há mais. Muito mais.
Há um Polo de três portas. “És tudo o que eu precisava”, diz ela, afagando-lhe suavemente os caracóis castanhos. “Nunca vi ninguém que me olhasse assim”, responde ele com ar ternurento, “e nunca pensei gostar tanto de estar assim com alguém”. E beija-a. E eu corro. E ele pensa: “És tão fácil. Achas que se gostasse de estar contigo te trazia a este recanto escuro e deixava os vidros fechados. Foda-se. Ainda por cima beijas mal.”
Estes e outros desabafos, e mais beijos, se trocam, e chegam-se bancos da frente para trás, enquanto eu sigo na minha passada indiferente, longe dos desamores das nove da noite.
Não. Eu, quando estou ali, estou comigo, entregue à minha obstinada decisão de acabar o dia a correr. Dou a volta no sítio do costume. Olho para o relógio. Doze minutos. Sorrio enquanto passo por um pescador que acaba de lançar a cana. Ontem fiz treze, neste marco. Bem me parecia que estava a correr bem. Deve ser do frio.
Inspiro com mais dificuldade no regresso. Quatro, quatro. Quatro, quatro. O Polo já se foi. Chega um jeep. Mais um beijo fugaz. E eu já passei. Ninguém me pára. Cheira-me a gasolina na bomba da Galp. Um, dois segundos. Bah! Que horror. Todos os dias esta náusea.
Mas que mal faz? Já avisto o casal do cacilheiro. Ainda lá estão e não param o beijo para me olhar. Há quanto tempo se estão a beijar? Pouco. Pouquissimo. Hoje, estou mesmo muito rápido.
A mão direita envolve congelada a chave do carro. Pelo menos assim não cai ao rio. Lá ao longe, as luzes sobre a ponte movem-se perpendiculares ao meu último esforço. Alguém a correr cruza-se comigo. E dois homens de bicicleta. Pelos vistos, ainda há cá gente a esta hora. Mas eu estou cego. Já não toco no chão.
Os restaurantes estão cheios e os vultos que se sentam às mesas são setas no canto do meu olho. Só vejo o fim. Faltam cem metros. Como vôo!! Tenho de aproveitar. Dou tudo o que tenho, sem esforço. Hoje, nada me custa. Cem metros. Quatro inspirações, quatro expirações. Cinquenta. Dez. Cinco. Com uma última passada regresso ao ponto de partida. Páro o cronómetro e respiro fundo o ar puro do descanso. O coração ainda esvoaça quando olho para o mostrador. Vinte e quatro, trinta e nove. Vinte e quatro, trinta e nove!! Menos um minuto que ontem!! Ahhh que bom!!
Hoje, foi uma grande corrida. Apetece-me ir dar uma volta a qualquer lado. Estou bem disposto. Hoje, como sempre, a corrida deixou-me alegre.
Estava frio, escuro e ventoso. Tinha roupa leve, poucas preocupações, pulmões abertos e a vida pela frente. Tinha espaço só para mim, pernas que me obedeciam e uma mente a divagar.
Hoje senti-me bem. Eu e o meu corpo, um só. Correr, mesmo em esforço, é sempre bom. Sempre duro, sempre íntimo, sempre em luta contra nós. Sempre bom. Mas hoje, hoje ainda foi melhor.
E amanhã tenho a certeza que vai ser igual.
Hoje, corri sem preconceitos contra a gravidade. Geralmente, os primeiros cinquenta passos dão-me a ideia do que vai ser a próxima meia hora. Perros, soltos, lentos, velozes, bem respirados, em esforço, de pulmões abertos, ou com uma certa azia. Tudo é possível, no momento em que me lanço a correr, e tudo será, durante meia hora, como nos primeiros trinta segundos.
Hoje, os meus movimentos fluíram sem gravidade. Estava um gelo, o chão escorregava sob a humidade de uma chuva miudinha acabada de cair e, para além de uma garça solitária, ninguém se atreveu a exercitar-se neste dia. Ou então, ninguém gosta de se exercitar às nove da noite. Eu, na verdade, também não. Olho em frente, para o Padrão dos Descobrimentos lá ao fundo, representante dos primeiros 25% do que me falta. Nove da noite, um vento gelado paralisa-me as mãos e o cabelo esvoaça com o vento e com a velocidade. Ouço a minha respiração bem treinada, quatro inspirações, quatro expirações,quatro inspirações, quatro expirações, quatro..meu Deus, como estou vivo hoje!, não há obstáculo que me trave, não há ninguém a ver-me, não há – já – as palavras do chefe que quase me impediam de estar ali naquele momento.
“Luís, quanto é que te falta daquilo que te pedi ontem?” – “Pá já fiz uma boa parte. Tá porreiro, mas preciso ainda de umas seis ou sete horas para acabar.” – “Preciso disto amanhã à hora do almoço pá..” - “Claro. Amanhã tou cá às sete então. Mas agora tenho mesmo de sair.” – “Tu é que sabes pá! Até amanhã”.
Até amanhã. São oito e meia, e preciso de respirar.
Quatro inspirações, quatro expirações.
Ouço os meus ténis desprezar a pedra molhada. O chão, hoje, não é nada para mim. Nada. Hoje, quem manda em mim sou eu. Não há músculo das minhas pernas que não se submeta ao sorriso que me oxigena a mente, enquanto passo pelas esplanadas interiores cheias de passageiros acomodados, ansiosos, também eles, pelo seu início de noite. Cada um o vive à sua maneira e eu, ultimamente, tenho-o vivido, meia hora por dia, saltitando velozmente pelo chão à beira-rio.
Está uma ventania, há ondas que se formam sobre a superfície escura do Tejo. Nada que me impeça de continuar o meu caminho. Um casal beija-se esperando pelo ferry para Cacilhas. Quando os vejo, já passei por eles. Não são nada para mim, ali só interesso eu, na minha marcha imparável, orgânica, satisfeita com ela própria. Fico feliz por eles, porém. Sinto algum carinho por todos os que estão ali fora ao frio, como eu. O meu dia de hoje e o seguinte passam-me pela cabeça. Sou de novo criança, vejo imagens da escola, vejo imagens do futuro, recordo viagens e amores. Parece que tudo faz mais sentido, às nove da noite junto ao rio, quando o único contacto com a terra é meio segundo de sola de borracha a cada momento.
Depois do clube de vela, onde algumas vozes solitárias arrumam as últimas quilhas, eis os Jerónimos. Os Jerónimos! Lembro-me, enquanto os meus passos inspiram toda a frescura da noite fria, amigas argentinas dizerem-me, em Roma, que tinham passeado pelos Jerónimos na sua vinda a Lisboa. Esses mesmos Jerónimos que tanto as impressionaram, são o palco fugidio da minha corrida. Sinto um arrepio de posse. Que luxo, esta corrida lado a lado com os Jerónimos. Tão mágicos para tanta gente, tão cénicos para mim. Companheiros do dia-a-dia que nem um olhar me merecem. Estão lá e eu estou aqui, ou estava, porque já percorro, quase sem tocar no chão, a rosa-dos-ventos de mármore cem metros mais à frente.
Vejo, no meu ritmo egocênctrico, os primeiros carros, estacionados na escura tira de alcatrão que alcanço em dois saltos.
Nove da noite em Lisboa.
Vidros embaciados denunciam amores proibídos. Passo indiferente, e não deixo de magicar. O que pensarão de mim aqueles casais enamorados? E serão enamorados? Imagino como me olham e comentam, “Bem! Olha-me este gajo, já viste. Às nove da noite aqui a correr. Ganda maluco.” Ou então “Porra este tipo deve gostar mesmo de correr. Deve-lhe fazer bem isto; tá melhor do que nós, aqui encafuados a fumar canhões. Foda-se, abre lá a janela. Olha para aquilo, é rápido o gajo. Já ali vai.”
E lá vou eu, tão oxigenado pela minha corrida que não me apercebo que ninguém me vê do lado de lá dos vidros. Os olhos não estão postos em mim. Os olhos miram-se mutuamente. Os amores escondidos são fugazes e intensos. Não há tempo a perder, no amor das nove da noite nas Docas.
“Já são nove, tenho de ir para casa. A minha mulher já me anda a ligar.” Este BMW está quase a arrancar. Mas há mais. Muito mais.
Há um Polo de três portas. “És tudo o que eu precisava”, diz ela, afagando-lhe suavemente os caracóis castanhos. “Nunca vi ninguém que me olhasse assim”, responde ele com ar ternurento, “e nunca pensei gostar tanto de estar assim com alguém”. E beija-a. E eu corro. E ele pensa: “És tão fácil. Achas que se gostasse de estar contigo te trazia a este recanto escuro e deixava os vidros fechados. Foda-se. Ainda por cima beijas mal.”
Estes e outros desabafos, e mais beijos, se trocam, e chegam-se bancos da frente para trás, enquanto eu sigo na minha passada indiferente, longe dos desamores das nove da noite.
Não. Eu, quando estou ali, estou comigo, entregue à minha obstinada decisão de acabar o dia a correr. Dou a volta no sítio do costume. Olho para o relógio. Doze minutos. Sorrio enquanto passo por um pescador que acaba de lançar a cana. Ontem fiz treze, neste marco. Bem me parecia que estava a correr bem. Deve ser do frio.
Inspiro com mais dificuldade no regresso. Quatro, quatro. Quatro, quatro. O Polo já se foi. Chega um jeep. Mais um beijo fugaz. E eu já passei. Ninguém me pára. Cheira-me a gasolina na bomba da Galp. Um, dois segundos. Bah! Que horror. Todos os dias esta náusea.
Mas que mal faz? Já avisto o casal do cacilheiro. Ainda lá estão e não param o beijo para me olhar. Há quanto tempo se estão a beijar? Pouco. Pouquissimo. Hoje, estou mesmo muito rápido.
A mão direita envolve congelada a chave do carro. Pelo menos assim não cai ao rio. Lá ao longe, as luzes sobre a ponte movem-se perpendiculares ao meu último esforço. Alguém a correr cruza-se comigo. E dois homens de bicicleta. Pelos vistos, ainda há cá gente a esta hora. Mas eu estou cego. Já não toco no chão.
Os restaurantes estão cheios e os vultos que se sentam às mesas são setas no canto do meu olho. Só vejo o fim. Faltam cem metros. Como vôo!! Tenho de aproveitar. Dou tudo o que tenho, sem esforço. Hoje, nada me custa. Cem metros. Quatro inspirações, quatro expirações. Cinquenta. Dez. Cinco. Com uma última passada regresso ao ponto de partida. Páro o cronómetro e respiro fundo o ar puro do descanso. O coração ainda esvoaça quando olho para o mostrador. Vinte e quatro, trinta e nove. Vinte e quatro, trinta e nove!! Menos um minuto que ontem!! Ahhh que bom!!
Hoje, foi uma grande corrida. Apetece-me ir dar uma volta a qualquer lado. Estou bem disposto. Hoje, como sempre, a corrida deixou-me alegre.
Estava frio, escuro e ventoso. Tinha roupa leve, poucas preocupações, pulmões abertos e a vida pela frente. Tinha espaço só para mim, pernas que me obedeciam e uma mente a divagar.
Hoje senti-me bem. Eu e o meu corpo, um só. Correr, mesmo em esforço, é sempre bom. Sempre duro, sempre íntimo, sempre em luta contra nós. Sempre bom. Mas hoje, hoje ainda foi melhor.
E amanhã tenho a certeza que vai ser igual.
Sunday, January 21, 2007
Coisas do dia-a-dia
Noutro dia aconteceu-me uma coisa engraçada.
Ia, no meu hábito diário, pé ante pé para o trabalho, no meu fatinho, sobretudo e sapatinhos impecáveis, quando, no shuffle do iPod, os Metric começaram a tocar The Police and the Private. Inicialmente não liguei, mas quando cruzava a Praça da Alegria, já a chegar à Avenida da Liberdade, comecei a sentir-me mais leve, a perder conteúdo.
Fiquei assustadíssimo, porque não é normal perder peso em tão pouco tempo, e olhei à minha volta, para ver se mais alguém se apercebia do ar que me enchia todo o corpo, enquanto a Emily Haines me lembrava, numa voz grave e electrizante “never expect to be sure...who you’re working for”. Nem liguei muito à letra, e tentei manter-me direito, mas os meus pés guinavam em direcções contrárias às minhas indicações e às tantas ficaram tão leves que a força dos meus joelhos já não os conseguia mover. Nesta altura eu estava aterrado, especialmente porque as pessoas à minha volta continuavam na sua rotina cabisbaixa a caminho do trabalho, sob os reluzentes raios de luz que todas as manhãs se escapam, matinais, por entre as altas copas da Avenida da Liberdade, sem reparar na minha mutação.
O sinal ficou verde e eu tentei, num derradeiro esforço, entre acordeões e sintetizadores, forçar-me em frente, mas algo na música me estava a hipnotizar, junto com os meus pés e o resto do corpo. Sem dar por mim, e já longe da realidade de carros que zurziam à minha volta, autorizados por um semáforo que já tinha mudado de novo, eu estava a flutuar pela passadeira, em plena Avenida da Liberdade. Não se podia dizer que estivesse a voar, porque alguma coisa nos meus pés me prendia ao chão, como chumbo num fio de pesca, mas, definitivamente, nada em mim tocava na terra. Entre a sola dura dos meus pesados sapatos e o alcatrão da estrada, uma fina camada de música arrastava-me em frente, como numa passadeira rolante feita de acordes. E eu, que por essa altura já me tinha entregue por completo à impotência perante uma força maior, ergui a cabeça e deixei-me levar, já nem sequer pelos pés que deslizavam pelo ar acima, mas por uma força qualquer que também me puxava pelos ombros, como se eu fosse uma tesa marioneta, movida ao sabor dos graves e dos agudos.
Em menos de nada, estava à porta do trabalho. Pause. “Não posso aparecer no escritório a voar”, pensei, “vão achar que sou louco e não quero perder o emprego só porque encontrei uma música com asas.”
Ainda combalido, lá entrei no elevador, onde inventei o meu melhor sorriso cínico quando o burocrata dos Recursos Humanos me disse, com o seu maior entusiasmo profissional, enquanto o elevador subia, “Já viu, oh Luís! Isto de andar no elevador é como voar, fechamos a porta e passados trinta segundos estamos 50 metros mais alto.”
“É que é mesmo!”, respondi, mostrando-lhe o cuidado com que lavo os dentes de manhã, enquanto pensava: “Sabes lá tu o que é voar.”
Passou-se um dia de trabalho e, à volta, ansioso por voar de novo, liguei o iPod. Massive Attack. Maximo Park. Mazzy Star. Metallica (“Metallica?!”). Metric. (“Metric!! Play!! Play!!”). Play. Sem bateria.
“Merda.”, pensei, “Vou ter de ir a pé”.
E lá fui eu, magicando planos para a minha próxima audição da música, imaginando uma maneira de voar mais alto desta vez.
Sábado acordei, tomei um duche e, refrescado por longas horas de sono, vesti-me, tendo o cuidado de calçar uns Onisukas sob uma roupa ligeira (às riscas, claro, mas isso não mexe com a força da gravidade). Apetecia-me ir até ao Chiado e, como moro perto, mandei-me a pé.
iPod. Metric. Play.
Comecei a andar sem preocupações, pé ante pé, sentido-me leve, como só o sábado de manhã com sol e frio me faz sentir. “Get straight and wait here, while I try to find the exit sign! When will you stop asking strangers? No one wants what we want!”. Sem reparar, fechei os olhos, de novo hipnotizado.
Desta vez, o efeito chegou mais depressa, de novo sem que eu o esperasse. Aliás, já nem me lembrava do episódio de sexta-feira. “When they close the gates I’ll cry”. E lá ia eu. Passado segundos, já não pensava. “The whole World wants, what we are!”. Quando cheguei ao fim da rua, já pedalava os meus ténis verdes no ar, como se uma bicicleta invisível me transportasse rua acima, entre arcadas caiadas de branco e velhotas à janela. “Ah então isto é que é o Bairro Alto dos primeiros andares. Que giro.”
Enquanto a música continuava, preenchia-me todo o corpo um fio condutor, etéreo e indifinido, meio transparente e meio vibrante, uma espécie de bolha de ar luzidia, que nunca cheguei a perceber se era feita de sintetizadores, de imaginação, ou de Sol reflectido nas janelas abertas. “You're working for the police and the private, the pilots and the pirates”.
“Meu Deus!”, pensei maravilhado, “Estou a voar!!!” E estava. Já ía, por esta altura, bem acima dos telhados atijolados de Lisboa,e vagueava, levemente, em direcção a uma ou outra nuvem. Desde pequeno, sempre quis saber se as nuvens faziam de trampolim se lhes saltássemos em cima, de maneira que fechei os olhos e esperei até ser levado até lá. Senti, enquanto a música fluía, indiferente, no seu ritmo sonhador, uma fresca humidade percorrer a minha cara, o meu peito e finalmente as minhas pernas e pés.
Abri os olhos. “Estou em cima duma nuvem!” maravilhei-me, meio encadeado pelo poder luminoso do Sol que me cegava os sentidos. “Que calor. Vou saltar.” Abri os braços, fiz força para baixo, encolhi os joelhos e, impulsionado por um baixo imaginário, elevei-me acima da nuvem, totalmente tomado pelo sonho infantil de saltar indefinidamente sobre a superfície elástica de uma nuvem.
“Got to get you, the orphanage is closing in an hour”. Ela cala-se. A música perde, lentamente, volume e instrumentos. Sinto-me trespassado por uma fresca humidade de algodão e o vento que me colhe os cabelos. Tenho chumbo nos pés. “O que é isto!!”, berro, agarrando-me ao iPod. A nuvem já ficou bem lá em cima, trespassada pelo meu corpo em queda.
“Play! Play”. Carrego furiosamente no botão, enquanto sinto o meu corpo desfragmentar-se em direccção ao chão. Um orgão martela lentamente os seus últimos acordes. “Play!”, berro, desesperado, apercebendo-me tarde demais que tenho o “hold” das teclas activado. Não há nada a fazer, vou cair. Tal como quando subia, fecho os olhos e aguardo embate. “Meu Deus, isto vai doeeerrr”.
Acaba a música. Abro os olhos.
O Fernando Pessoa olha-me no impávido olhar esverdeado. “Põe tudo o que és, naquilo que fazes”, parece dizer-me. Alguns turistas olham-me com olhar divertido, e apontam para o meu cabelo desgrenhado e a roupa húmida. Devo parecer estranho, a olhar uma estátua nos olhos, com roupa colada ao corpo e um iPod a sair-me do bolso de trás das calças.
“Como é que eu já cá estou”, pergunto-me embasbacado, intrigado por não me lembrar do caminho de casa até ali. “Devo ter vindo a voar, só posso”.
Sorrio divertido e desço a rua. “Meu Deus, como sou distraído.”
Está uma bela manhã de Inverno. De certeza que, com um dia destes, Ícaro se teria salvo.
Ia, no meu hábito diário, pé ante pé para o trabalho, no meu fatinho, sobretudo e sapatinhos impecáveis, quando, no shuffle do iPod, os Metric começaram a tocar The Police and the Private. Inicialmente não liguei, mas quando cruzava a Praça da Alegria, já a chegar à Avenida da Liberdade, comecei a sentir-me mais leve, a perder conteúdo.
Fiquei assustadíssimo, porque não é normal perder peso em tão pouco tempo, e olhei à minha volta, para ver se mais alguém se apercebia do ar que me enchia todo o corpo, enquanto a Emily Haines me lembrava, numa voz grave e electrizante “never expect to be sure...who you’re working for”. Nem liguei muito à letra, e tentei manter-me direito, mas os meus pés guinavam em direcções contrárias às minhas indicações e às tantas ficaram tão leves que a força dos meus joelhos já não os conseguia mover. Nesta altura eu estava aterrado, especialmente porque as pessoas à minha volta continuavam na sua rotina cabisbaixa a caminho do trabalho, sob os reluzentes raios de luz que todas as manhãs se escapam, matinais, por entre as altas copas da Avenida da Liberdade, sem reparar na minha mutação.
O sinal ficou verde e eu tentei, num derradeiro esforço, entre acordeões e sintetizadores, forçar-me em frente, mas algo na música me estava a hipnotizar, junto com os meus pés e o resto do corpo. Sem dar por mim, e já longe da realidade de carros que zurziam à minha volta, autorizados por um semáforo que já tinha mudado de novo, eu estava a flutuar pela passadeira, em plena Avenida da Liberdade. Não se podia dizer que estivesse a voar, porque alguma coisa nos meus pés me prendia ao chão, como chumbo num fio de pesca, mas, definitivamente, nada em mim tocava na terra. Entre a sola dura dos meus pesados sapatos e o alcatrão da estrada, uma fina camada de música arrastava-me em frente, como numa passadeira rolante feita de acordes. E eu, que por essa altura já me tinha entregue por completo à impotência perante uma força maior, ergui a cabeça e deixei-me levar, já nem sequer pelos pés que deslizavam pelo ar acima, mas por uma força qualquer que também me puxava pelos ombros, como se eu fosse uma tesa marioneta, movida ao sabor dos graves e dos agudos.
Em menos de nada, estava à porta do trabalho. Pause. “Não posso aparecer no escritório a voar”, pensei, “vão achar que sou louco e não quero perder o emprego só porque encontrei uma música com asas.”
Ainda combalido, lá entrei no elevador, onde inventei o meu melhor sorriso cínico quando o burocrata dos Recursos Humanos me disse, com o seu maior entusiasmo profissional, enquanto o elevador subia, “Já viu, oh Luís! Isto de andar no elevador é como voar, fechamos a porta e passados trinta segundos estamos 50 metros mais alto.”
“É que é mesmo!”, respondi, mostrando-lhe o cuidado com que lavo os dentes de manhã, enquanto pensava: “Sabes lá tu o que é voar.”
Passou-se um dia de trabalho e, à volta, ansioso por voar de novo, liguei o iPod. Massive Attack. Maximo Park. Mazzy Star. Metallica (“Metallica?!”). Metric. (“Metric!! Play!! Play!!”). Play. Sem bateria.
“Merda.”, pensei, “Vou ter de ir a pé”.
E lá fui eu, magicando planos para a minha próxima audição da música, imaginando uma maneira de voar mais alto desta vez.
Sábado acordei, tomei um duche e, refrescado por longas horas de sono, vesti-me, tendo o cuidado de calçar uns Onisukas sob uma roupa ligeira (às riscas, claro, mas isso não mexe com a força da gravidade). Apetecia-me ir até ao Chiado e, como moro perto, mandei-me a pé.
iPod. Metric. Play.
Comecei a andar sem preocupações, pé ante pé, sentido-me leve, como só o sábado de manhã com sol e frio me faz sentir. “Get straight and wait here, while I try to find the exit sign! When will you stop asking strangers? No one wants what we want!”. Sem reparar, fechei os olhos, de novo hipnotizado.
Desta vez, o efeito chegou mais depressa, de novo sem que eu o esperasse. Aliás, já nem me lembrava do episódio de sexta-feira. “When they close the gates I’ll cry”. E lá ia eu. Passado segundos, já não pensava. “The whole World wants, what we are!”. Quando cheguei ao fim da rua, já pedalava os meus ténis verdes no ar, como se uma bicicleta invisível me transportasse rua acima, entre arcadas caiadas de branco e velhotas à janela. “Ah então isto é que é o Bairro Alto dos primeiros andares. Que giro.”
Enquanto a música continuava, preenchia-me todo o corpo um fio condutor, etéreo e indifinido, meio transparente e meio vibrante, uma espécie de bolha de ar luzidia, que nunca cheguei a perceber se era feita de sintetizadores, de imaginação, ou de Sol reflectido nas janelas abertas. “You're working for the police and the private, the pilots and the pirates”.
“Meu Deus!”, pensei maravilhado, “Estou a voar!!!” E estava. Já ía, por esta altura, bem acima dos telhados atijolados de Lisboa,e vagueava, levemente, em direcção a uma ou outra nuvem. Desde pequeno, sempre quis saber se as nuvens faziam de trampolim se lhes saltássemos em cima, de maneira que fechei os olhos e esperei até ser levado até lá. Senti, enquanto a música fluía, indiferente, no seu ritmo sonhador, uma fresca humidade percorrer a minha cara, o meu peito e finalmente as minhas pernas e pés.
Abri os olhos. “Estou em cima duma nuvem!” maravilhei-me, meio encadeado pelo poder luminoso do Sol que me cegava os sentidos. “Que calor. Vou saltar.” Abri os braços, fiz força para baixo, encolhi os joelhos e, impulsionado por um baixo imaginário, elevei-me acima da nuvem, totalmente tomado pelo sonho infantil de saltar indefinidamente sobre a superfície elástica de uma nuvem.
“Got to get you, the orphanage is closing in an hour”. Ela cala-se. A música perde, lentamente, volume e instrumentos. Sinto-me trespassado por uma fresca humidade de algodão e o vento que me colhe os cabelos. Tenho chumbo nos pés. “O que é isto!!”, berro, agarrando-me ao iPod. A nuvem já ficou bem lá em cima, trespassada pelo meu corpo em queda.
“Play! Play”. Carrego furiosamente no botão, enquanto sinto o meu corpo desfragmentar-se em direccção ao chão. Um orgão martela lentamente os seus últimos acordes. “Play!”, berro, desesperado, apercebendo-me tarde demais que tenho o “hold” das teclas activado. Não há nada a fazer, vou cair. Tal como quando subia, fecho os olhos e aguardo embate. “Meu Deus, isto vai doeeerrr”.
Acaba a música. Abro os olhos.
O Fernando Pessoa olha-me no impávido olhar esverdeado. “Põe tudo o que és, naquilo que fazes”, parece dizer-me. Alguns turistas olham-me com olhar divertido, e apontam para o meu cabelo desgrenhado e a roupa húmida. Devo parecer estranho, a olhar uma estátua nos olhos, com roupa colada ao corpo e um iPod a sair-me do bolso de trás das calças.
“Como é que eu já cá estou”, pergunto-me embasbacado, intrigado por não me lembrar do caminho de casa até ali. “Devo ter vindo a voar, só posso”.
Sorrio divertido e desço a rua. “Meu Deus, como sou distraído.”
Está uma bela manhã de Inverno. De certeza que, com um dia destes, Ícaro se teria salvo.
Saturday, January 20, 2007
Friday, January 19, 2007
Citando de novo
Sexta passada fui até ao Lux e a noite foi de tal maneira violenta que sábado acordei tarde, fui para o miradouro lanchar com uns amigos enquanto Lisboa escurecia sob o sol alaranjado, dei um salto às docas para a corridinha diária, tomei um duche e, de corpo partido mas bem fresquinho e agasalhado, fui buscar o jantar ao restaurante japonês ao lado de casa e instalei-me no sofá a ver a primeira parte do Sporting e a segunda do Barcelona. Depois, vi o Hotel Ruanda (completando, depois de Shooting Dogs, a minha duologia pessoal de filmes sobre os crimes hediodos do Ruanda) com o meu irmão e, não contente com um dia, na sua tranquilidade, perfeito, vim ver os mails pela última vez antes de me deitar. Tinha alguns comentários no blog. A partir de comentários aqui no blog, descubro outros blogs, é sempre assim, porque vou sempre aos blogs de que comenta ver quem são as pessoas e, por vezes, ver os blogs que essas pessoas têm referenciados. Nesse sábado à noite, através deste processo de referências sucessivas, descobri um blog que é tão bom que me apetece guardá-lo só para mim, por um lado, e divulgá-lo a todo o Mundo, por outro. Lembro-me que fiquei horas a lê-lo. Li literalmente dois anos do princípio ao fim, durante tempo suficiente para arruinar os meus planos de me deitar cedo.
Parece que no sábado me escapou um texto - porque só o descobri hoje - que, para mim, resume a pessoa que o escreve, que eu não conheço de lado nenhum mas que se expressa com tanta transparência, que se poderia dar ao luxo de desprezar as palavras, se quisesse.
Chama-se "Marta" e escreveu isto:
http://wwwbanalidades.blogspot.com/2005/09/rabisco.html
É tão raro eu gostar da mesma coisa que a maioria das pessoas, que seria muito provável estar aqui a citar um blog em vão. No entanto, neste caso, acho difícil alguém desgostar do que a "Marta" escreve e, se a divulgo, é porque sinto que estou a fazer justiça a uma pessoa muito especial, que justifica, com o seu, a existência de blogs.
Parece que no sábado me escapou um texto - porque só o descobri hoje - que, para mim, resume a pessoa que o escreve, que eu não conheço de lado nenhum mas que se expressa com tanta transparência, que se poderia dar ao luxo de desprezar as palavras, se quisesse.
Chama-se "Marta" e escreveu isto:
http://wwwbanalidades.blogspot.com/2005/09/rabisco.html
É tão raro eu gostar da mesma coisa que a maioria das pessoas, que seria muito provável estar aqui a citar um blog em vão. No entanto, neste caso, acho difícil alguém desgostar do que a "Marta" escreve e, se a divulgo, é porque sinto que estou a fazer justiça a uma pessoa muito especial, que justifica, com o seu, a existência de blogs.
Citando
Raras vezes li um texto que me entusiasmasse tanto e portanto não tinha alternativa senão referi-lo aqui:
http://esperobemquenao.blogspot.com/2007/01/passo-explicar-isto-no-uma-declarao-de.html
http://esperobemquenao.blogspot.com/2007/01/passo-explicar-isto-no-uma-declarao-de.html
Babel
Um executivo japonês, que marcou uma caçada em Marrocos, atrasa-se um dia na partida de Tóquio. A agência mete-o noutro grupo. O guia do novo grupo não é Hassan. O executivo, que nunca o conhece porque o vôo se atrasou, não lhe dá uma espingarda. E Hassan, que nunca teve a espingarda, não a vende ao vizinho, que não a dá aos filhos para que a levem para o campo e matem os chacais que matam as cabras que pastoreiam. Os filhos não disparam a espingarda que não têm contra um autocarro de turistas, e Susan não é ferida no seu assento à janela. Rachel poderá tomar conta dos filhos de Susan tal como esperado e não terá de se mover nos corredores do poder americano para ajudar a amiga Susan, que não estará em apuros em Marrocos. A empregada mexicana poderá ir sozinha ao casamento do filho, e manterá a sua vida americana, igual ao que foi durante 16 anos. Abdul e a sua família continuarão na sua rotina diária, o seu filho mais velho não morrerá às mãos da polícia, e o mais novo não será condenado a prisão e continuará no seu caminho adolescente até à maturidade. Um polícia japonês jamais compreenderá o coração de uma adolescente surda-muda. Na cordilheira do Atlas o dia de amanhã será igual ao de ontem, a família de Rachel seguirá a sua pacata existência de subúrbio em San Diego, com os seus dramas conjugais e empregada mexicana, e o polícia japonês continuará a olhar a mulher como sempre olhou.
Quantos motivos poderiam ter levado o vôo do executivo japonês a atrasar-se. Quantos outras razões poderiam haver, para ele nunca ter conhecido Hassan, para nunca lhe ter dado uma espingarda, sequer para ele nunca ter ido a Marrocos. Quantos infinitos conjuntos de causas com efeito se juntam num dado momento, para que tudo se passe de uma forma, e não de outra.
Quanta responsabilidade, em cada pequeno acto.
Quantos motivos poderiam ter levado o vôo do executivo japonês a atrasar-se. Quantos outras razões poderiam haver, para ele nunca ter conhecido Hassan, para nunca lhe ter dado uma espingarda, sequer para ele nunca ter ido a Marrocos. Quantos infinitos conjuntos de causas com efeito se juntam num dado momento, para que tudo se passe de uma forma, e não de outra.
Quanta responsabilidade, em cada pequeno acto.
Thursday, January 18, 2007
Dois homens cruzam-se na noite escura
Dois homens cruzam-se na noite escura.
Estou há semanas com esta frase na cabeça. Na verdade, a esta frase corresponde uma imagem, que também me vagueia pelo sub-consciente: num ângulo recto iluminado, dois homens surgem cada um de um dos lados escuros da parede lisa. Vestem fatos claros e chapéus. São ambos versões desfocadas de um Dick Tracy imaginário. A geometria e as cores opacas da imagem têm algo de um Magritte obscuro. Nesta cena, que não passa de um momento, os homens, na verdade, ainda não se cruzaram, estão ainda a contornar cada um o seu lado do ângulo. Porém, não só já se antevêem, como sabem da chegada um do outro. Estão ambos à mesma distância do ponto onde se vão cruzar.
Os dois homens nunca embaterão surpreendidos, pois provavelmente têm encontro marcado e pararão no momento em que contornarem a esquina. Para quê, não está claro para mim. (Eu só sei que dois homens se cruzam na noite escura). Já pensei um bocado neste encontro (nomeadamente sempre que a frase “dois homens cruzam-se na noite escura” me surge) e várias hipóteses se apresentam, nenhuma das quais isenta de secretismo. Penso que, para começar, os homens, quando se cruzarem no ângulo, não vão falar – no máximo sussurrarão. Um deles acenderá um cigarro, e é esta a única forma que terei de distingui-los, porque os fatos amarelos-baços e os chapéus da mesma cor são iguais, como igual é o nó das gravatas pretas sobre as camisas brancas engomadas. Eu vejo-os de cima, como que do cimo de um prédio do outro lado da rua, e evidentemente sou o único observador desta cena geométrica, onde a única certeza é um encontro furtivo numa esquina mal iluminada.
Infelizmente nem as caras vejo, escondidas sabiamente sob as abas largas dos chapéus de feltro. Provavelmente, estou em Chicago nos anos 30, mas isso não é líquido para mim. No entanto, a confirmar-se essa hipótese, provavelmente vai ser delineado um contrabando de scotch ou encomendado um assassínio. Seja como for, só existe esta esquina, portanto a referência geográfica é inútil: não me vai levar a lado nenhum.
Não sei se a minha hipótese de cumplicidade é válida: os dois homens poderiam perfeitamente ser inimigos. No entanto, algo na sua indumentária me diz que são um reflexo mútuo. Nesse sentido, apesar de em momento algum eu admitir que possam ser uma só pessoa frente a um espelho - visto que só há um cigarro - sinto alguma secreta identidade conjunta nos dois homens. E mesmo assim nada se pode excluir, porque o cigarro é ele próprio uma hipótese posterior à cena original, em que ambos estão ainda em movimento e, portanto, o homem da direita ainda não acendeu o seu cigarro. Como tal, esse cigarro pode nem existir, remetendo-nos para a questão do verdadeiro número de homens que se aproxima daquela esquina. Seja como for, estou convencido de que são dois, e tenho quase a certeza de que este é um encontro de malfeitores. Com alguma classe, por certo - aquela classe que o secretismo elegante proporciona -, mas malfeitores.
Tenho obviamente algum medo de ser descoberto. Por outro lado, não sou activo nesta cena, nem o meu estatuto de observador-pássaro me permite fazer realisticamente parte dela. Ainda para mais, há demasiado que eu não sei. Eu sou apenas o criador deste momento, e o seu desenlace é de tal modo misterioso para mim, que não consigo avançar da frase que me persegue há dias.
Estou há semanas com esta frase na cabeça. Na verdade, a esta frase corresponde uma imagem, que também me vagueia pelo sub-consciente: num ângulo recto iluminado, dois homens surgem cada um de um dos lados escuros da parede lisa. Vestem fatos claros e chapéus. São ambos versões desfocadas de um Dick Tracy imaginário. A geometria e as cores opacas da imagem têm algo de um Magritte obscuro. Nesta cena, que não passa de um momento, os homens, na verdade, ainda não se cruzaram, estão ainda a contornar cada um o seu lado do ângulo. Porém, não só já se antevêem, como sabem da chegada um do outro. Estão ambos à mesma distância do ponto onde se vão cruzar.
Os dois homens nunca embaterão surpreendidos, pois provavelmente têm encontro marcado e pararão no momento em que contornarem a esquina. Para quê, não está claro para mim. (Eu só sei que dois homens se cruzam na noite escura). Já pensei um bocado neste encontro (nomeadamente sempre que a frase “dois homens cruzam-se na noite escura” me surge) e várias hipóteses se apresentam, nenhuma das quais isenta de secretismo. Penso que, para começar, os homens, quando se cruzarem no ângulo, não vão falar – no máximo sussurrarão. Um deles acenderá um cigarro, e é esta a única forma que terei de distingui-los, porque os fatos amarelos-baços e os chapéus da mesma cor são iguais, como igual é o nó das gravatas pretas sobre as camisas brancas engomadas. Eu vejo-os de cima, como que do cimo de um prédio do outro lado da rua, e evidentemente sou o único observador desta cena geométrica, onde a única certeza é um encontro furtivo numa esquina mal iluminada.
Infelizmente nem as caras vejo, escondidas sabiamente sob as abas largas dos chapéus de feltro. Provavelmente, estou em Chicago nos anos 30, mas isso não é líquido para mim. No entanto, a confirmar-se essa hipótese, provavelmente vai ser delineado um contrabando de scotch ou encomendado um assassínio. Seja como for, só existe esta esquina, portanto a referência geográfica é inútil: não me vai levar a lado nenhum.
Não sei se a minha hipótese de cumplicidade é válida: os dois homens poderiam perfeitamente ser inimigos. No entanto, algo na sua indumentária me diz que são um reflexo mútuo. Nesse sentido, apesar de em momento algum eu admitir que possam ser uma só pessoa frente a um espelho - visto que só há um cigarro - sinto alguma secreta identidade conjunta nos dois homens. E mesmo assim nada se pode excluir, porque o cigarro é ele próprio uma hipótese posterior à cena original, em que ambos estão ainda em movimento e, portanto, o homem da direita ainda não acendeu o seu cigarro. Como tal, esse cigarro pode nem existir, remetendo-nos para a questão do verdadeiro número de homens que se aproxima daquela esquina. Seja como for, estou convencido de que são dois, e tenho quase a certeza de que este é um encontro de malfeitores. Com alguma classe, por certo - aquela classe que o secretismo elegante proporciona -, mas malfeitores.
Tenho obviamente algum medo de ser descoberto. Por outro lado, não sou activo nesta cena, nem o meu estatuto de observador-pássaro me permite fazer realisticamente parte dela. Ainda para mais, há demasiado que eu não sei. Eu sou apenas o criador deste momento, e o seu desenlace é de tal modo misterioso para mim, que não consigo avançar da frase que me persegue há dias.
Monday, January 15, 2007
Noites frias
1935. Um libanês parte de Beirute em direcção a Moscovo. Leva na trouxa alguns quilos de pão seco, duas garrafas de azeite e alguns garrafões de água. Montado num velho burro, atravessa o longo deserto até à Síria, onde troca o seu azeite por tâmaras frescas. A partir daí, continua pela Turquia dentro, mergulhando os sentidos nos bazares de Istambul, antes de se fazer ao Bósforo e mergulhar pela Europa acima. Passa por Plovdiv, Varna, Brasov, Bacau, Rivne, Kiev, Kharkiv, Kursk, Lipetsk e Tula antes de chegar à grande cidade de Moscovo. No caminho que o leva através das actuais Bulgária, Roménia, Moldova e Ucrânia, o libanês troca noites, histórias e encantos com os povos eslavos, os nómadas ciganos, e as frias noites dos Cárpatos. Dá a sua voz aos acordeões de velhos cantadores, monta com eles os cavalos selvagens das estepes e aquece-se com o mesmo fogo que queima as suas caras esculpidas pelos frios Invernos soviéticos. Ao longo dos quinze meses de viagem, o libanês encanta os seus esporádicos companheiros de viagem com a sua flauta de madeira, aprendendo com eles a manejar as suas próprias ferramentas musicais. Quando chega a Moscovo, leva consigo uma valiosa bagagem de conhecimento na mente, instrumentos de madeira e arame na velha trouxa, notas musicais na pele e uma enorme alegria no seu sorriso, cheio de curiosidade e histórias para partilhar. Demasiado, para um libanês em Moscovo: passados três dias da sua chegada à cidade, quando mendiga à porta de uma velha igreja, é preso, julgado na hora, acusado de reaccionário e deportado para a Sibéria. Num gélido comboio passa os seus próximos quinze dias, antes de ser despejado como gado, quase nu e desapossado de tudo à excepção da flauta que esconde sob o seu manto roto, à porta de um enorme bloco de granito, que se ergue assustador sobre uma imensidão de infinitos campos de trabalho gelados. O libanês foi enviado para um gulag. Privado de amor, carinho, solidariedade, despido de sentimentos e esperança, mantém a alma viva tocando baixinho a sua flauta, quando se deita no gelado beliche de madeira após quinze horas de trabalho no campo. Sopra levemente as tristes mortes dos mais fracos, que tombam diariamente congelados a seu lado. De início, toca para si, sob o murmúrio indiferente dos outros que adormecem. Aos poucos, um olhar curioso espreita o poeta libanês, antes do primeiro tom e depois da flauta se calar. A este, mais se juntam, à medida que os demónios gelados do gulag deixam aos homens condenados espaço para sonhar. Passam noites e noites, e com elas mais almas emagrecidas juntam o seu calor ao leito do libanês, e lágrimas saudosas à sua voz entristecida. Um dia, um prisioneiro cazaque junta à sua flauta um triângulo de metal, e aos seus debitares arabescos a rouca voz dos domadores de falcões. Passados longos meses e longas noites, em que a fria camarata se aquece ao som dos dois músicos e das vozes em coro que entretanto se juntam, dois ciganos romenos trazem aos músicos de embalar uma velha nostalgia, improvisando um acordeão com que, revezando-se, transformam o duo num quarteto. Com o coro, fica uma orquestra. A “Gulag Orkestar”, única triste Humanidade nas noites frias da desolação siberiana.
(Gulag Orkestar, o cd em que o americano Zach Condon, de 20 anos, se auto-intitula de Beirut, está a arrasar a crítica independente nos Estados Unidos, e só não arrasa a da Europa porque nós por cá já conhecemos estas tonalidades por afinidade histórica e cultural. Seja como for, vale a pena ouvir. E, já agora: o único lugar onde a história do parágrafo anterior aconteceu foi na minha imaginação.)
Saturday, January 13, 2007
Um desejo
rodeados de
milhares de anónimos insignificantes
que não vemos.
Numa praia de areia macia,
molhados pela energia alaranjada
da água morna.
No cimo de um arranha-céus, ao meio-dia.
Vidrados
um no outro e trocando
com o movimento
olhares cúmplices.
Vendo-te aterrar em mim,
enquanto te controlo com a respiração.
De olhos fechados
e em curvas
de cem cores.
Só tu e eu.
Friday, January 12, 2007
Montreal's indie scene..
Está a acontecer algo de extraordinário em Montreal, no Canadá. Não sei bem o que é que é, mas está. Tem que estar. Como é que de uma cidade com um milhão e meio de pessoas saem, no mesmo espaço de tempo, bandas como Arcade Fire (que só por si já bastava!!), Wolf Parade, Islands, Sunset Rubdown, The Unicorns, Metric, Stars, só para citar algumas? Como? Como é que isto se explica?
Pelo que sei, há um bairro chamado Quartier Latin onde tudo se passa. Não sei como é, nem como imaginá-lo. Vejo, sem critério que não as notas que soam pela minha cabeça, ruas estreitas e montras com discos de vinil. Guitarras e baterias em segunda mão expostas sob preços em pedaços de cartão, casacos dos anos setenta trocados por saxofones enferrujados. Vejo cervejas a transbordar e acordes a cada esquina. Centros sociais de portas abertas, concertos independentes a cada três passos. Vejo gente nova a entrar com sacos de supermercado em casas de dois e três andares, com pequenas escadas e janelas a dar para a rua. Nas paredes, cartazes anunciando o próximo concerto e mostra de cinema. As pessoas são magras e têm o cabelo meio comprido mas ordenadamente desgrenhado. De vez em quando, passa um grupo de amigos com cervejas na mão, barbas mal feitas e camisolas às riscas roxas e brancas. Todos têm um blazer escuro por cima, e calças rotas.
Quem será aquele careca de óculos escuros e t-shirt amarela. Porque é que tem um ténis de cada cor e está a tocar flauta no meio da rua?!
Há crachás de todas as cores e casais apaixonados. No Quartier Latin, toda a gente ri. Metade das pessoas passeia-se com um iPod, uma trompete ou uma viola acustica. Há dezenas a tocar nas rua e nas esplanadas cheias de trocas de impressões. Em mais nenhum sítio do Mundo o chão adormece tão sujo com panfletos, jornais de música e anúncios de festas independentes.
As empregadas dos bares são baixinhas e muitas usam all-stars. Os mais giros são às bolas encarnadas e amarelas. A dona calça 35 e chama-se Justine. Serve cocktails quando não está a ensaiar nas traseiras da loja de roupa usada do velhote sueco que vive em Montreal há 10 anos. Justine diz que se inspira para escrever as suas canções entre as cachecóis usados por nova-iorquinos de outras décadas e camisolas aos losangos inglesas que o Jakob Ullevat vende na sua loja.
Na música que os amigos de Justine mais gostam e que ela compôs para o aniversário de um bar na esquina de sua casa há uns meses, uma frase ecoa deslavada através das guitarras do namorado de Justine e do seu primo Mark: “What’s the green dot under that seagul’s wing in the sky? Is it you, brother, that’s what you meant when you said you were out to fly?”. Toda a gente canta isto nos concertos com Justine, e ela sorri.
Quand o Quartier Latin acorda, o ar fresco da manhã arrasta nas suas partículas geladas I’ll believe in anything dos Wolf Parade, e todos saem à rua com os seus instrumentos, em busca do acorde que os leve aos ouvidos uns dos outros. Nas primeiras horas da manhã, tocam e soam instrumentos num frenesim descontrolado, que dura horas e horas, sem parar para almoço nem para jantar, sem reparar que a noite cai e os copos de plástico se esmagam nas mãos suadas, um frenesim eléctrico e esvoaçante, que se funde nele próprio e nas paredes dos prédios, criando uma tal vibração que, de tempos a tempos, cá na Europa, um arrepio me passa pela espinha e penso: “Meu Deus, está a acontecer algo em Montreal. Que faço aqui à uma da manhã no computador da sala?”
Pelo que sei, há um bairro chamado Quartier Latin onde tudo se passa. Não sei como é, nem como imaginá-lo. Vejo, sem critério que não as notas que soam pela minha cabeça, ruas estreitas e montras com discos de vinil. Guitarras e baterias em segunda mão expostas sob preços em pedaços de cartão, casacos dos anos setenta trocados por saxofones enferrujados. Vejo cervejas a transbordar e acordes a cada esquina. Centros sociais de portas abertas, concertos independentes a cada três passos. Vejo gente nova a entrar com sacos de supermercado em casas de dois e três andares, com pequenas escadas e janelas a dar para a rua. Nas paredes, cartazes anunciando o próximo concerto e mostra de cinema. As pessoas são magras e têm o cabelo meio comprido mas ordenadamente desgrenhado. De vez em quando, passa um grupo de amigos com cervejas na mão, barbas mal feitas e camisolas às riscas roxas e brancas. Todos têm um blazer escuro por cima, e calças rotas.
Quem será aquele careca de óculos escuros e t-shirt amarela. Porque é que tem um ténis de cada cor e está a tocar flauta no meio da rua?!
Há crachás de todas as cores e casais apaixonados. No Quartier Latin, toda a gente ri. Metade das pessoas passeia-se com um iPod, uma trompete ou uma viola acustica. Há dezenas a tocar nas rua e nas esplanadas cheias de trocas de impressões. Em mais nenhum sítio do Mundo o chão adormece tão sujo com panfletos, jornais de música e anúncios de festas independentes.
As empregadas dos bares são baixinhas e muitas usam all-stars. Os mais giros são às bolas encarnadas e amarelas. A dona calça 35 e chama-se Justine. Serve cocktails quando não está a ensaiar nas traseiras da loja de roupa usada do velhote sueco que vive em Montreal há 10 anos. Justine diz que se inspira para escrever as suas canções entre as cachecóis usados por nova-iorquinos de outras décadas e camisolas aos losangos inglesas que o Jakob Ullevat vende na sua loja.
Na música que os amigos de Justine mais gostam e que ela compôs para o aniversário de um bar na esquina de sua casa há uns meses, uma frase ecoa deslavada através das guitarras do namorado de Justine e do seu primo Mark: “What’s the green dot under that seagul’s wing in the sky? Is it you, brother, that’s what you meant when you said you were out to fly?”. Toda a gente canta isto nos concertos com Justine, e ela sorri.
Quand o Quartier Latin acorda, o ar fresco da manhã arrasta nas suas partículas geladas I’ll believe in anything dos Wolf Parade, e todos saem à rua com os seus instrumentos, em busca do acorde que os leve aos ouvidos uns dos outros. Nas primeiras horas da manhã, tocam e soam instrumentos num frenesim descontrolado, que dura horas e horas, sem parar para almoço nem para jantar, sem reparar que a noite cai e os copos de plástico se esmagam nas mãos suadas, um frenesim eléctrico e esvoaçante, que se funde nele próprio e nas paredes dos prédios, criando uma tal vibração que, de tempos a tempos, cá na Europa, um arrepio me passa pela espinha e penso: “Meu Deus, está a acontecer algo em Montreal. Que faço aqui à uma da manhã no computador da sala?”
Tuesday, January 09, 2007
AAAAAAHHHHHHHHHH!
This is me SHOUTING OUT LOUD...
...VERY loud!!
And I wanna build buildings high for you
But the costs, my god, the costs I can't afford you
But I always choose another way
And this is why this love can't stay
As outras 999 vozes
A partir de hoje vão ter de se registar Blogger ou no Google para comentarem este blog.
Como sempre, todos os comentários serão aceites automaticamente e sem moderação. Apesar de tudo, o número de vozes aqui vai provavelmente descer em flecha. Isso não me preocupa muito, porque vocês vão continuar a lê-lo na mesma.
Seja como for, este blog sempre existiu com poucos bons leitores e comentadores e, portanto, não tem necessidade de mais do que isso para sobreviver. Aliás, este blog viveu com muita saúde, e durante muito tempo, sem leitores.
No entanto, aproveito a oportunidade, porque vocês também merecem, para dizer que considero ter aqui comentadores que ultrapassam em muito o necessário para uma discussão inteligente ou divertida de qualquer tema que seja. Ainda bem.
Isso, mais do que orgulhoso (porque nunca pedi a ninguém para vir cá), deixa-me alegre. Dá-me imenso gozo ver aqui opiniões, disparates, críticas, ou pequenas reacções de pessoas conhecidas ou desconhecidas.
Seja como for, maisde1000vozes existe para me satisfazer a mim. Como tal, vai continuar a ser, como desde o primeiro dia, um blog despretensioso, indiferente, pessoal, subjectivo e totalmente meu.
Como sempre, todos os comentários serão aceites automaticamente e sem moderação. Apesar de tudo, o número de vozes aqui vai provavelmente descer em flecha. Isso não me preocupa muito, porque vocês vão continuar a lê-lo na mesma.
Seja como for, este blog sempre existiu com poucos bons leitores e comentadores e, portanto, não tem necessidade de mais do que isso para sobreviver. Aliás, este blog viveu com muita saúde, e durante muito tempo, sem leitores.
No entanto, aproveito a oportunidade, porque vocês também merecem, para dizer que considero ter aqui comentadores que ultrapassam em muito o necessário para uma discussão inteligente ou divertida de qualquer tema que seja. Ainda bem.
Isso, mais do que orgulhoso (porque nunca pedi a ninguém para vir cá), deixa-me alegre. Dá-me imenso gozo ver aqui opiniões, disparates, críticas, ou pequenas reacções de pessoas conhecidas ou desconhecidas.
Seja como for, maisde1000vozes existe para me satisfazer a mim. Como tal, vai continuar a ser, como desde o primeiro dia, um blog despretensioso, indiferente, pessoal, subjectivo e totalmente meu.
B-C-R
When the sky seems to clear,
who will then be left (but a few)..?
Me and You.
(8 de Janeiro: um dia perdido.)
who will then be left (but a few)..?
Me and You.
(8 de Janeiro: um dia perdido.)
Sunday, January 07, 2007
Um beijinho de boa noite
- O que é que queres ser quando fores grande, Zé?
- Eu já sou grande!
- Não és nada. Tens 10 anos. És uma criança ainda.
- Sou mais grande que o Francisco.
- Maior. Diz-se “maior”, não se diz “mais grande”.
- Ah. Mas eu não sou criança. Já penso por mim.
- E então, o que gostavas de ser quando fosses..ainda maior?
- Gostava de ser eu próprio.
- Sim, mas isso já vais ser. Estou a perguntar, como gostarias de ocupar o teu tempo, quando crescesses?
- Mas porque não me perguntas antes como eu quero ocupar o meu tempo hoje?
- Porque..porque quero saber do teu futuro.
- Sim, mas no futuro vou ser igual ao que sou hoje. Basta que me perguntes: ”O que é que queres ser hoje?”
- Mas Zé, não vês que se eu te perguntar isso, não me estás a dar luzes sobre o teu futuro?
- Mas o que há de tão misterioso no futuro? Se no futuro eu fizer as escolhas fiéis à minha personalidade, não vou desviar-me do caminho que mais se adequa a mim. Por isso não tens de te preocupar. Não é?
- Pareces um adulto a falar.
- Mas é, ou não é?
- Olha não sei. Queria saber se gostavas de ser médico, ou jornalista, ou advogado..
- Mas mãe, como é que eu posso saber isso hoje? Eu hoje quero brincar, e ler livros e jogar à bola! Sei lá o que quero fazer daqui a 15 anos. Bombeiro talvez. Ou astronauta. Sei lá. Quero fazer o que me apetecer na altura.
- És mesmo criança. Isso é o que querem todas as crianças.
- Se te desses ao trabalho de pensar porquê, não acharias a resposta tão evidente.
- Ah é? Então diz lá porque é que TU achas que todas as crianças querem ser médicos, bombeiros e astronautas??
- Porque, mãe, as crianças não pensam demais, como tu pensas. As crianças agem para satisfazer a sua própria identidade.
- Ah. Que novidade. E então?
- Não vês que todas a crianças são ingénuas, curiosas, aventureiras, bem intencionadas?
- Vejo. E depois?
- Quais são as características de um bombeiro e de um astronauta? Não percebes a conexão?
- Tudo bem. As crianças querem ser bombeiros e astronautas porque são curiosas e aventureiras. E então filho? Onde é que queres chegar?
- Mãe, as crianças não vêem o futuro com os teus olhos utilizantes.
- Queres dizer “utilitaristas”?
- Sim, isso.
- Ainda nem sabes falar, meu bébé.
- Mãe, repara: quando respondem bombeiros ou astronautas, o que as crianças estão a dizer é: “Quando for grande, quero ser criança.”. Mas elas respondem isso enquanto crianças. E quando são crianças, “ser criança” é, para uma criança, ser ela própria. Por isso, quando perguntas a uma criança o que ela quer ser e ela te responde bombeiro ou astronauta, o que te quer dizer é que, no futuro, ela quer ser ela própria.
- Zé, estás a tentar explicar-me que as crianças não fazem a mínima ideia do que querem ser, quando são pequenas como tu?
- Fazem, mãe!! Tu é que vês as coisas ao contrário. Sabem muito bem o que querem ser. Não sabem é ver isso através dos olhos de alguém como tu. Tu, quando me perguntas o que quero ser, esqueces-te de perguntar o que é que eu sou, primeiro.
- Mas eu sei o que tu és.
- Não sabes não. Não fazes ideia. No máximo, sabes o que queres para mim.
- Então o que é que eu quero para ti?
- Que eu seja feliz.
- Então onde está a diferença entre o que eu digo e o que tu dizes, Zé?
- Está no facto de eu querer ser feliz sendo eu próprio, e de tu quereres que eu seja feliz sendo o que tu queres que eu seja.
- Então, que queres que te pergunte?!
- Pergunta-me primeiro quem sou.
- E depois?
- Depois, pergunta-me como penso eu agir no futuro, para preservar a minha identidade.
- E depois?
- Depois, espera para ver se eu a mantenho.
- E como é que vou saber?
- Pelo meu sorriso.
- Então tenho de olhar para ti todos os dias Zé.
- Claro. A felicidade não é absoluta mãe. Ou é?
- Ai Zé, às vezes complicas tanto as coisas. Gostava que fosses um miúdo normal como os outros todos...
- E sou. Igualzinho.
- Pensas demais.
- Eles é que pensam de menos.
- Estás a sorrir agora.
- Claro. Estamos a ser sinceros um com o outro. Estou a ser eu próprio.
- E amanhã, como vai ser?
- Amanhã é outro dia, mãezinha. Espero que estejas cá para julgar o meu sorriso de novo.
- E se sorrires, o que devo pensar?
- Que sou feliz.
- E se não sorrires?
- Que algo me afasta do meu caminho pessoal.
- E qual é o teu caminho pessoal?
- Mãe, parece que não ouviste nada do que eu te estive a tentar explicar...
- Desculpa, estou cansada.
- Vai para a cama então. Dás-me um beijinho de boa noite?
- Dou. Vá. Já estás quentinho na cama, agora dorme. Beijinhos.
- Até amanhã mãezinha.
- Até amanhã meu querido.
- Eu já sou grande!
- Não és nada. Tens 10 anos. És uma criança ainda.
- Sou mais grande que o Francisco.
- Maior. Diz-se “maior”, não se diz “mais grande”.
- Ah. Mas eu não sou criança. Já penso por mim.
- E então, o que gostavas de ser quando fosses..ainda maior?
- Gostava de ser eu próprio.
- Sim, mas isso já vais ser. Estou a perguntar, como gostarias de ocupar o teu tempo, quando crescesses?
- Mas porque não me perguntas antes como eu quero ocupar o meu tempo hoje?
- Porque..porque quero saber do teu futuro.
- Sim, mas no futuro vou ser igual ao que sou hoje. Basta que me perguntes: ”O que é que queres ser hoje?”
- Mas Zé, não vês que se eu te perguntar isso, não me estás a dar luzes sobre o teu futuro?
- Mas o que há de tão misterioso no futuro? Se no futuro eu fizer as escolhas fiéis à minha personalidade, não vou desviar-me do caminho que mais se adequa a mim. Por isso não tens de te preocupar. Não é?
- Pareces um adulto a falar.
- Mas é, ou não é?
- Olha não sei. Queria saber se gostavas de ser médico, ou jornalista, ou advogado..
- Mas mãe, como é que eu posso saber isso hoje? Eu hoje quero brincar, e ler livros e jogar à bola! Sei lá o que quero fazer daqui a 15 anos. Bombeiro talvez. Ou astronauta. Sei lá. Quero fazer o que me apetecer na altura.
- És mesmo criança. Isso é o que querem todas as crianças.
- Se te desses ao trabalho de pensar porquê, não acharias a resposta tão evidente.
- Ah é? Então diz lá porque é que TU achas que todas as crianças querem ser médicos, bombeiros e astronautas??
- Porque, mãe, as crianças não pensam demais, como tu pensas. As crianças agem para satisfazer a sua própria identidade.
- Ah. Que novidade. E então?
- Não vês que todas a crianças são ingénuas, curiosas, aventureiras, bem intencionadas?
- Vejo. E depois?
- Quais são as características de um bombeiro e de um astronauta? Não percebes a conexão?
- Tudo bem. As crianças querem ser bombeiros e astronautas porque são curiosas e aventureiras. E então filho? Onde é que queres chegar?
- Mãe, as crianças não vêem o futuro com os teus olhos utilizantes.
- Queres dizer “utilitaristas”?
- Sim, isso.
- Ainda nem sabes falar, meu bébé.
- Mãe, repara: quando respondem bombeiros ou astronautas, o que as crianças estão a dizer é: “Quando for grande, quero ser criança.”. Mas elas respondem isso enquanto crianças. E quando são crianças, “ser criança” é, para uma criança, ser ela própria. Por isso, quando perguntas a uma criança o que ela quer ser e ela te responde bombeiro ou astronauta, o que te quer dizer é que, no futuro, ela quer ser ela própria.
- Zé, estás a tentar explicar-me que as crianças não fazem a mínima ideia do que querem ser, quando são pequenas como tu?
- Fazem, mãe!! Tu é que vês as coisas ao contrário. Sabem muito bem o que querem ser. Não sabem é ver isso através dos olhos de alguém como tu. Tu, quando me perguntas o que quero ser, esqueces-te de perguntar o que é que eu sou, primeiro.
- Mas eu sei o que tu és.
- Não sabes não. Não fazes ideia. No máximo, sabes o que queres para mim.
- Então o que é que eu quero para ti?
- Que eu seja feliz.
- Então onde está a diferença entre o que eu digo e o que tu dizes, Zé?
- Está no facto de eu querer ser feliz sendo eu próprio, e de tu quereres que eu seja feliz sendo o que tu queres que eu seja.
- Então, que queres que te pergunte?!
- Pergunta-me primeiro quem sou.
- E depois?
- Depois, pergunta-me como penso eu agir no futuro, para preservar a minha identidade.
- E depois?
- Depois, espera para ver se eu a mantenho.
- E como é que vou saber?
- Pelo meu sorriso.
- Então tenho de olhar para ti todos os dias Zé.
- Claro. A felicidade não é absoluta mãe. Ou é?
- Ai Zé, às vezes complicas tanto as coisas. Gostava que fosses um miúdo normal como os outros todos...
- E sou. Igualzinho.
- Pensas demais.
- Eles é que pensam de menos.
- Estás a sorrir agora.
- Claro. Estamos a ser sinceros um com o outro. Estou a ser eu próprio.
- E amanhã, como vai ser?
- Amanhã é outro dia, mãezinha. Espero que estejas cá para julgar o meu sorriso de novo.
- E se sorrires, o que devo pensar?
- Que sou feliz.
- E se não sorrires?
- Que algo me afasta do meu caminho pessoal.
- E qual é o teu caminho pessoal?
- Mãe, parece que não ouviste nada do que eu te estive a tentar explicar...
- Desculpa, estou cansada.
- Vai para a cama então. Dás-me um beijinho de boa noite?
- Dou. Vá. Já estás quentinho na cama, agora dorme. Beijinhos.
- Até amanhã mãezinha.
- Até amanhã meu querido.
Wednesday, January 03, 2007
Objecção de Consciência
Este oficial do exército americano recusou-se a ir para o Iraque e explica porquê nesta nesta entrevista. Não a li toda de um ponta à outra, mas várias respostas soltas levam-me a pensar que esta é uma boa entrevista para compreendermos melhor a visão de muitos soldados americanos sobre a guerra no Iraque, a Administração Bush e a reacção da sociedade americana a ambos.
Já agora, destaco a seguinte frase, porque é um soldado de carreira que a diz. Para mim, espelha bem a decadência moral e ideológica da postura actual dos Estados Unidos face à utilização das suas forças armadas:
“You know I think that John Murtha came out a few months ago in an interview and he was asked if, with all his experience, in Korea, and Vietnam, volunteering for those wars -- he was asked if he would join the military today. And he said absolutely not. And I think that with the knowledge that I have now, I agree. I would not join the military because I would be forced into a position where I would be ordered to do something that is wrong. It is illegal and immoral. And I would be put into a situation as a soldier to be abused and misused by those in power.”
É evidente que nenhum Estado age por altruísmo. Várias leituras, pensamentos e diálogos (especialmente com o meu amigo e futuro especialista de Relações Internacionais, canetas) levaram-me a compreender que os Estados agem por interesse próprio e defesa dos seus cidadãos face aos cidadãos de outros Estados. Altruísmo e solidariedade inter-estadual (no sentido: um Estado face a outro Estado) são conceitos praticamente inexistentes. Pensar, por exemplo, que há algum interesse americano em fazer o povo iraquiano feliz com a democracia, é um erro quase infantil. Os EUA querem democracia no Iraque por muitas razões de segurança e ordem internacional em seu próprio benefício. Ponto final. É o mesmo que o apoio português ao desenvolvimento dos PALOP: serve para ajudar os empresários portugueses a encontrarem novas oportunidades em mercados em expansão. Não estou com isto a assumir uma posição crítica, pois a verdade é que se o Estado não protege os cidadãos, ninguém protege. Porém, chamo a atenção para esse debate que todo o cidadão de qualquer estado se coloca: Eu ou o outro?
Por exemplo – e mais uma vez pegando num texto recomendado por canetas, se bem que enfocado noutro exemplo – quando o Governo português recebe o primeiro-ministro chinês e uma onda de protestos de activistas a favor dos direitos humanos se levanta, somos tentados a criticar Portugal por pactuar com o primeiro-ministro de um país que não os respeita. Mas depois percebemos que se não tivermos boas relações comerciais com a China, somos nós próprios – cidadãos portugueses – que sairemos prejudicados. E então percebemos: face a uma escolha, eu, português, escolho primeiro o melhor para mim e só depois o melhor para os chineses. No limite: Eu, Luís, escolho o melhor para mim e depois para o resto das pessoas. Na génese: se só poder sobreviver um, sobrevivo eu.
É esse o papel do Estado, e é essa a justificação para as intervenções americanas pelo Mundo: custam vidas alheias, mas protegem vidas americanas.
Certo ou errado, cada um julgue por si. A entrevista do Lt. Watada ajuda.
Já agora, destaco a seguinte frase, porque é um soldado de carreira que a diz. Para mim, espelha bem a decadência moral e ideológica da postura actual dos Estados Unidos face à utilização das suas forças armadas:
“You know I think that John Murtha came out a few months ago in an interview and he was asked if, with all his experience, in Korea, and Vietnam, volunteering for those wars -- he was asked if he would join the military today. And he said absolutely not. And I think that with the knowledge that I have now, I agree. I would not join the military because I would be forced into a position where I would be ordered to do something that is wrong. It is illegal and immoral. And I would be put into a situation as a soldier to be abused and misused by those in power.”
É evidente que nenhum Estado age por altruísmo. Várias leituras, pensamentos e diálogos (especialmente com o meu amigo e futuro especialista de Relações Internacionais, canetas) levaram-me a compreender que os Estados agem por interesse próprio e defesa dos seus cidadãos face aos cidadãos de outros Estados. Altruísmo e solidariedade inter-estadual (no sentido: um Estado face a outro Estado) são conceitos praticamente inexistentes. Pensar, por exemplo, que há algum interesse americano em fazer o povo iraquiano feliz com a democracia, é um erro quase infantil. Os EUA querem democracia no Iraque por muitas razões de segurança e ordem internacional em seu próprio benefício. Ponto final. É o mesmo que o apoio português ao desenvolvimento dos PALOP: serve para ajudar os empresários portugueses a encontrarem novas oportunidades em mercados em expansão. Não estou com isto a assumir uma posição crítica, pois a verdade é que se o Estado não protege os cidadãos, ninguém protege. Porém, chamo a atenção para esse debate que todo o cidadão de qualquer estado se coloca: Eu ou o outro?
Por exemplo – e mais uma vez pegando num texto recomendado por canetas, se bem que enfocado noutro exemplo – quando o Governo português recebe o primeiro-ministro chinês e uma onda de protestos de activistas a favor dos direitos humanos se levanta, somos tentados a criticar Portugal por pactuar com o primeiro-ministro de um país que não os respeita. Mas depois percebemos que se não tivermos boas relações comerciais com a China, somos nós próprios – cidadãos portugueses – que sairemos prejudicados. E então percebemos: face a uma escolha, eu, português, escolho primeiro o melhor para mim e só depois o melhor para os chineses. No limite: Eu, Luís, escolho o melhor para mim e depois para o resto das pessoas. Na génese: se só poder sobreviver um, sobrevivo eu.
É esse o papel do Estado, e é essa a justificação para as intervenções americanas pelo Mundo: custam vidas alheias, mas protegem vidas americanas.
Certo ou errado, cada um julgue por si. A entrevista do Lt. Watada ajuda.
Tuesday, January 02, 2007
Memória de Elefante
No segundo dia do ano, aprendi o que significa uma "edição ne varietur". Estou convencido, portanto, de que 2007 me guarda as lições mais importantes para o fim.
Mas enfim. Adiante.
Estava a trocar livros na Bertrand do Chiado com o iPod assustadoramente no Shuffle quando, num acorde perigoso de guitarra eléctrica, um tipo de casaco curto preto e cachecol às cores me aparece à frente, com a barba por fazer, e me olha curioso nos olhos. Apanhei um susto, e fiquei aliviado por ver que era eu que me tinha começado a mexer ao som dos Wolf Parade, sendo arrastado pelos meus irritantes passinhos de dança para a frente de um espelho. Como é óbvio, despedi-me do rapaz - era bem giro, posso até dizer - e voltei à estante.
Memória de Elefante. Nunca li um livro de António Lobo Antunes. Vou bem a tempo de dizer que é uma vergonha para um português nunca ter lido nada de alguém tão elogiado, criticado, publicado e discutido. Falou-se até, no meio erudito português, que o Nobel de Saramago ficaria melhor nas mãos de Lobo Antunes. Eu li pouco de Saramago e, como disse, nada de Lobo Antunes, mas pelo bárbaro que é, acho que nem uma luva fica bem nas mãos de José Saramago, quanto mais um prémio Nobel. (Mas dou o braço a torcer e louvo a Academia sueca, por premiar - como se vê - a qualidade literária e não o quadro mental dos autores.)
Enfim, dito isto tudo, comprei uma edição ne varietur do Memórias de Elefante, e foi então esta a lição que dele retirei, ainda sem o ter lido [aproveito para dizer que o autor da definição se chama Carlos Ceia e que encontrei isto algures pela www]:
"[Ne varietur:] Reedição de uma obra para estabelecimento definitivo do texto em vida do autor, que autoriza essa versão final. Também se diz da reedição de um texto que não sofre alterações em relação a edições anteriores. A edição crítica de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, preparada por Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha, compara as versões de 1876 e 1880 (esta na sua terceira edição, de 1889). Os editores críticos consideraram que a versão de 1875, uma versão não autorizada pelo autor, não deve ser considerado canónico, e que a edição de 1889 apresenta variantes estilísticas significativas relativamente à de 1880 e que, por isso mesmo, deve ser considerada a edição ne varietur, já assim classificada por Guerra da Cal. Esta edição não terá sido corrigida por Eça, mas foi a última por ele autorizada.
Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo (2003) é o primeiro livro de António Lobo Antunes em edição ne varietur. Este trabalho de revisão e fixação do texto definitivo, que revoga todas as edições anteriores, é realizado por uma comissão de professoras universitárias, constituída por Agripina Carriço Vieira, Eunice Cabral e Graça Abreu, sob a coordenação de Maria Alzira Seixo. Como é normativo neste tipo de edição, qualquer referência ou citação da obra de Lobo Antunes terá de ser retirada da edição ne varietur, de alguma forma comparável à edição da última vontade do autor."
De nada.
Mas enfim. Adiante.
Estava a trocar livros na Bertrand do Chiado com o iPod assustadoramente no Shuffle quando, num acorde perigoso de guitarra eléctrica, um tipo de casaco curto preto e cachecol às cores me aparece à frente, com a barba por fazer, e me olha curioso nos olhos. Apanhei um susto, e fiquei aliviado por ver que era eu que me tinha começado a mexer ao som dos Wolf Parade, sendo arrastado pelos meus irritantes passinhos de dança para a frente de um espelho. Como é óbvio, despedi-me do rapaz - era bem giro, posso até dizer - e voltei à estante.
Memória de Elefante. Nunca li um livro de António Lobo Antunes. Vou bem a tempo de dizer que é uma vergonha para um português nunca ter lido nada de alguém tão elogiado, criticado, publicado e discutido. Falou-se até, no meio erudito português, que o Nobel de Saramago ficaria melhor nas mãos de Lobo Antunes. Eu li pouco de Saramago e, como disse, nada de Lobo Antunes, mas pelo bárbaro que é, acho que nem uma luva fica bem nas mãos de José Saramago, quanto mais um prémio Nobel. (Mas dou o braço a torcer e louvo a Academia sueca, por premiar - como se vê - a qualidade literária e não o quadro mental dos autores.)
Enfim, dito isto tudo, comprei uma edição ne varietur do Memórias de Elefante, e foi então esta a lição que dele retirei, ainda sem o ter lido [aproveito para dizer que o autor da definição se chama Carlos Ceia e que encontrei isto algures pela www]:
"[Ne varietur:] Reedição de uma obra para estabelecimento definitivo do texto em vida do autor, que autoriza essa versão final. Também se diz da reedição de um texto que não sofre alterações em relação a edições anteriores. A edição crítica de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, preparada por Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha, compara as versões de 1876 e 1880 (esta na sua terceira edição, de 1889). Os editores críticos consideraram que a versão de 1875, uma versão não autorizada pelo autor, não deve ser considerado canónico, e que a edição de 1889 apresenta variantes estilísticas significativas relativamente à de 1880 e que, por isso mesmo, deve ser considerada a edição ne varietur, já assim classificada por Guerra da Cal. Esta edição não terá sido corrigida por Eça, mas foi a última por ele autorizada.
Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo (2003) é o primeiro livro de António Lobo Antunes em edição ne varietur. Este trabalho de revisão e fixação do texto definitivo, que revoga todas as edições anteriores, é realizado por uma comissão de professoras universitárias, constituída por Agripina Carriço Vieira, Eunice Cabral e Graça Abreu, sob a coordenação de Maria Alzira Seixo. Como é normativo neste tipo de edição, qualquer referência ou citação da obra de Lobo Antunes terá de ser retirada da edição ne varietur, de alguma forma comparável à edição da última vontade do autor."
De nada.
Subscribe to:
Posts (Atom)