Sunday, April 01, 2007

Aquele fim de Inverno

[Não sei bem de onde é que surge esta história. Tenho aliás dificuldade em reviver os 18 anos. Mas tinha de encaixar um João Pedro destes algures no blog. E Ana, pelo menos a dos tempos de liceu, existe. Tem é outro nome.]





O Amor

Quando pela primeira vez olhou para Ana, João Pedro soube imediatamente que nunca a iria beijar. Tragicamente, essa primeira troca de olhares foi o primeiro momento de um amor que haveria de assaltar João Pedro durante todos os minutos da sua longa vida.

João Pedro era um miúdo igual aos outros, para além da sensibilidade muito própria que o levava a ter sempre consigo um livro e um bloco de anotar a vida, ferramentas onde mergulhava cada minuto das aulas de ciências que odiava, ele que era um incoformado pensador e debitava no papel e nos campos de futebol a vida que tinha dentro de si. Já Ana era uma rapariguinha tímida, de cabelos lisos presos com ganchos às cores, e uns olhos azuis vivos como duas gotas de chuva acabada de cair, uma princesa de finos traços e um sorriso sem chave que o abrisse.

Foram apresentados por uma amiga comum num fim de tarde à porta da escola, no meio de um aceso debate sobre os exames nacionais e os cursos que todos haviam de seguir, quando Setembro batesse à porta.

Ana era de outra escola e viera ter com a sua amiga para seguirem juntas para a aula de ballet, e quando João Pedro chegou ao círculo de rapazes que já a rodeava, ela olhou-o com aquele tímido olhar de despretensiosa curiosidade que os seus caracóis acastanhados pediam. João Pedro não era o sex-symbol daquela turma de 12º ano, mas o nariz arrebitado e os profundos olhos castanhos carregavam o magnetismo ingénuo dos corações mais puros e inconformados.

Quando o grupo se dispersou em direcção aos afazeres do início de noite de um Março frio como nenhum outro, João Pedro deixou-se ficar com Ana e a amiga e seguiu com elas até ao metro. No momento de parar para se despedirem, Ana olhou-o com o ar nostálgico de uma despedida demasiado antecipada, e naquele momento em que se entreolharam antes de um “até à próxima” desesperado, as pontas dos seus dedos tocaram-se como por uma magia inevitável de amor inconformado. Ana, a bela e inacessível Ana, estava magnetizada pelo sorriso tímido de João Pedro e pela profundidade do seu sofrimento por ela, aquele tremer incontido que sentira nos seus passos e na respiração acelerada pelo vento frio que lhes levantara os casacos e os cabelos a caminho do metro.

No dia seguinte, a amiga saltou para cima de João Pedro mal ele entrou na sala de aula. “Então”, segredou-lhe baixinho da mesa de trás, “tás doidinho pela minha amiga..”.

João Pedro virou o pescoço num lento embasbacar de criança apanhada e olhou-a longamente do interior dos seus olhos castanhos, enquanto o professor, lá bem longe, debitava as monocórdicas propriedades reflectoras das lentes convexas. Virou-se, depois, e calmamente se dobrou sobre um papel rasgado do seu caderninho, onde escrevinhou por impulso um papel para a amiga.

“Nem que seja a última coisa que faça na vida, hei-de beijar a tua amiga com tanto amor e tanta loucura que o azul dos olhos dela me vai gelar o sangue e fulminar para sempre num segundo de mil desejos”

A Incerteza

Ana voltou na terça seguinte, dia de ballet, e procurou João Pedro com o olhar mal avistou a amiga no meio dos seus amigos. Topando-a, a amiga olhou-a com o ar divertido de uma velha casamenteira e segredou-lhe baixinho: “Aninha, escusas de procurar que ele não aparece. Está no jardim das traseiras à tua espera.”. O coração de Ana pulou como nunca pulara e a tímida princesa olhou a amiga com o olhar aterrado de quem é apanhado numa armadilha demasiado boa para ser confrontada. A amiga sorriu-lhe com um brilho nos olhos e puxou-a pela mão para fora da escola, afastando o bando de rapazes que já se metia com Ana, correndo com ela para as traseiras da escola, onde a abandonou à sorte e seguiu, sozinha, para o ballet.

Ana ficou de pé ao vento, aterrada na sua branca timidez de menina encasulada. A verdade é que até há pouco tempo fora namorada de um amigo de longa data e não sabia o que sentir por aquele desconhecido com tantos mistérios por detrás dos olhos castanhos que a tinham olhado com aquele carinho sem perguntas à porta do metro. Dobrou a esquina com cuidado e viu João Pedro enconstado contra a parede, sentado na posição pensadora dos que esperam algo que nunca chegará. Quando a sentiu chegar, João Pedro levantou-se de um pulo e ajeitou o cabelo, já meio acinzentado naquele escurecer de cidade deprimida.

- Ana..
- Olá João Pedro..
- Não tava à espera que aparecesses aqui..
- Pois a Joana trouxe-me..
- E sabias que eu estava cá?
- Hum..
- Não precisas de ficar encarnada..
- Aii..sabia..sei lá..não sei porque é que vim João Pedro..eu não te conheço..
- Nem eu a ti, e tou aqui à espera à meia hora ao frio..
- Tadinho!
- Olha..queres ir até àqueles bancos? Podemos ficar sentados e falar um bocado..não sei..
- Parece boa ideia..
- Lá não tá tanto frio, tem aquelas árvores a proteger, vês?
- Ainda bem..mas mesmo assim acho que vou enregelar!
- Oh! Olha toma o meu casaco, queres?
- Não, não é preciso! Que querido!
- Vá toma! Não tenho frio! Tenho esta camisola vês?
- Desta vez aceito. Mas so porque tens a camisola João..
- Take a seat..é o meu sítio preferido da escola. Nunca ninguem vem para aqui. Passo horas neste banco a pensar na vida
- Gosto deste sítio João Pedro.
- Também eu. Faz-me pensar!
- E estás a pensar em quê, posso saber?
- Agora?
- Agora.
- Agora em nada, agora tou a falar contigo..
- Hum. E preferes?
- Prefiro, porque antes de apareceres estava a pensar em como seria se estivesses aqui ao meu lado..

E nisto passaram todo o fim de tarde daquele dia, descobrindo-se a cada palavra e a cada toque, numa atracção respeitosa de duas pessoas que se amam mas não têm a sorte nem a coragem de dar o salto para algo maior.

Ana voltou durante muitos fins de tarde durante aquele mês, e sempre que se sentava com João Pedro no banco que era só os dois, trocando piropos e debatendo o sentido da vida, numa cumplicidade atormentada pelas constantes dúvidas de João Pedro sobre as intenções dela, sentia por ele um carinho agigantado pela admiração que as suas palavras lhe provocavam.

Mas nunca, durante esse mês de Março e o início de Abril, João Pedro teve a coragem e a confiança para beijar Ana, nem quando os seus brilhantes olhos azuis lhe suplicavam que se inclinasse sobre ela para sempre. João Pedro tinha medo da reacção de Ana. Amava-a de tal forma, que preferia possuí-la em tardes de banco de jardim para sempre, do que arriscar beijá-la e perdê-la numa rejeição que só ele era capaz de inventar, na sua cabeça de hipóteses e labirintos.

A Coragem

Um dia Joana agarrou João Pedro pelo braço e disse-lhe na cara o que ele temia ouvir.

“A Ana tá completamente apaixonada por ti João Pedro. Tás a ouvir? Está doida por tu não dares o passo que ela espera. E não vai esperar por ti para sempre, João Pedro. Vai para o Brasil com o ex-namorado e a família dele e dela para a semana. São amigas as famílias e ela, como deves calcular, ainda sente uma mínima atracção por ele. João Pedro ou a agarras agora ou a perdes para sempre.”

João Pedro gelou na imaturidade da sua mente labiríntica. Como amava Ana! Como a amava! Mas como beijá-la? João Pedro raras vezes gostara de alguém como gostava de Ana e jamais conseguia ver nela o objecto de um beijo. Não sabia definir o que sentia. Queria-a toda para si no seu conceito, na sua fragilidade, na sua vozinha calma e no seu sorriso com covinhas. Beijá-la parecia-lhe a perversão daquela imagem imaculada de Ana.

Na verdade, João Pedro não se sentia digno dela.

“Amanhã é o jantar de turma. Vamos sair depois. Ela vai sair também com os amigos dela. João Pedro, mais do que isto não te posso ajudar.”

“Obrigado”, respondeu João Pedro, e fugiu para o seu banco das traseiras amadurecer a alegria e o medo que sentia.

Chegou o dia seguinte, e depois dele, devagarinho, a noite, e quando a viu na discoteca, linda, de branco e azul, João Pedro evitou-a até não conseguir senão estar frente-a-frente com ela.

- Olá..
- Olá João Pedro..

João Pedro não sabia o que dizer. A música, as luzes, o fumo que o penetravam, nada o deixava ver naquela a Ana que se sentava com ele durante horas de anoitecer nas traseiras da escola. Sentia-se estranho. Não queria estar com ela ali. Queria pegar nela e voar dali para fora, para um jardim de primavera sem ninguém senão um céu azul que ouvisse as suas conversas de barriga para o ar. Ali, Ana era assustadoramente linda, assustadoramente desejada, assustadoramente dona de si e de todos os outros. Ana, ali, não era só sua, e ela sabia-o. Frente-a-frente com ela, num espaço só dos dois naquela cave escura, João Pedro tinha medo de a perder. Ele, que com um leve esticar de pescoço a faria sua para sempre, tinha medo de a perder com um beijo ali, naquele sítio tão selvagem, tão impessoal, tão contrário ao seu amor por ela.

- Não tava à espera de te ver aqui
- Não tavas?!
- Não..quer dizer..ate tava..não sei..
- Não gostas de me ver?
- Gosto
- Não parece..
- Porquê?
- Tas com ar de enjoado..
- Desculpa..não tou muito bem..
- Mas não te apetece tar comigo portanto?
- Apetece claro. Mas se calhar preferia tar noutro lugar!
- Mas a musica tá óptima! Queres dançar?
- Não me apetece muito. Olha não queres ir ali falar para um sitio mais calmo?
- Quero..depois..não posso sair daqui de ao pe deles! Oh João Pedro apetece-me mesmo dançar!
- Quem é aquele, ja agora?
- Qual? O loiro?
- Sim..
- É o Pedro. O meu antigo namorado. Ja te tinha falado nele..
- Vais dançar com ele é?
- João pedro não sejas parvo! Tu é que não queres dançar comigo..

João Pedro sentiu-se numa angústia incontrolada, subitamente louco de ciúmes pelo irritante à vontade do loiro de cabelo liso que se ria e divertia com um copo na mao, tão dentro daquele ambiente como Ana. E tão a vontade como ele estava constrangido.

João Pedro não era ninguem ali. O seu era um Mundo de harmonias e equações por resolver. Um Mundo de raios de sol e anoiteceres em bancos de jardim e fins de tarde na praia e violas e conversas e olhares cristalinos.

Sentia-se um pedaço de nada à deriva. E irritava-o saber que Ana saía à noite todas as semanas. Não conseguia conceber as sextas passadas, não conseguia imaginar Ana naquele sitio depois das conversas com ele no banco das traseiras. E o loiro, aquele irritante loiro a falar com ela. De certeza que Ana o via todas as sextas! “E eu não passo do idiota que ela usa para ter alguma coisa que fazer durante a tarde.”

Neste estado de destruição, João Pedro concluiu que Ana não deveria ver nele mais do que um entretem. Auto-comiserado, resignou-se com a sua posição de solitário enamorado de quintas à tarde e perguntou-lhe:

- Vemo-nos esta terça, na escola?
- Mas vais embora???
- Vou, não me parece que seja muito benvindo aqui..
- João Pedro que estupidez!! Fica cá! Quero imenso que fiques.

Agarrou-lhe na mão

- A fazer o quê?
- Sei lá, aqui, comigo..
- O loiro não pára de olhar..
- Olha antes para mim..
- Ana, esquece. Tenho de ir. Quero imenso ver-te para a semana, só nós, sem ninguém, nem barulho, nem luzes e fumo.
- Pois. Então olha..ate terça..

João Pedro saiu a correr e apanhou o primeiro táxi para casa.

O Adeus

Quando apareceu na terça, Ana vinha diferente. Não lhe sorriu no seu timido olá de olhos azuis que o habituara e que ele amava. Não se sentou perto dele. Não fez perguntas. Esteve, não mais. João Pedro tentou falar-lhe dos assuntos que a encantavam, dos filósofos gregos, dos seus planos para o verão, das trivilalidades que a faziam rir, mas nada. Ana não estava ali.

- O que se passa contigo Ana?
- Nada..
- Nada não..estás estranha..
- Pois..
- Foi por eu ter ido embora na sexta?
- Mais ou menos..
- Tem a ver com o loiro não tem?
- Não..
- Tem, não tem?
- Curti com ele na sexta.

João Pedro gelou num arrepio circular entre a ponta dos cabelos e o mais fundo do seu desespero. Ele sabia, e soubera-o desde a primeira lágrima caída mal entrara no táxi de sexta-feira.

Levantou-se.

- Gostas dele?
- Não sei..
- E de mim!?
- João Pedro, se calhar era altura de parares de brincar comigo...
- Se calhar não sou como tu achas que sou. Se calhar não sou como queria ser.
- Pois João Pedro. Não sei. Não quero ficar indecisa para sempre.
- E se...
- Se o quê?
- Se eu te tivesse beijado na sexta?
- Na sexta. Na quinta. Na quarta. Em todos os dias em que desesperei por um carinho, um abraço, um olhar de atrevimento, João Pedro. Não sei que te diga. Passou. Passou. És um grande amigo. Se calhar, sempre foste só um grande amigo.
- Pois. Se calhar fui só isso. Olha, dás-me o meu casaco? Vou-me embora.
- Para onde é que vais?
- Para longe de ti, já que de mim não posso fugir.
- João Pedro..
- Adeus Ana..

O resto da Vida

Na verdade, quando andava a passos largos a caminho de casa, João Pedro sentia uma enorme e trágica liberdade, a liberdade de quem finalmente se ilumina e se compreende.

Naquele dia, João Pedro percebeu que o seu amor era conceptual, enorme, imaginativo. E Ana era viva, linda, desejada, quase carente. Jamais João Pedro poderia satisfazer Ana sem o beijo que não lhe dera e nunca lhe daria, porque o seu amor era um amor de letras e palavras, e o dela o de carinhos e beijos em crescendo.

João Pedro seguiu para Paris para estudar Filosofia, onde leccionou durante anos até regressar a Portugal já num devaneio de fim de juventude. Amou e foi amado por muitas mulheres, de todo o Mundo que se concentrava em Paris, mas jamais soube dar-se a nenhuma, porque jamais compreendeu a verdadeira essência de nenhuma delas.

Ana licenciou-se em Direito, casou aos 26 anos com o terceiro namorado que teve depois de Pedro e abandonou o escritório para tomar conta dos três lindos filhos que teve, sustentados por um marido atencioso e trabalhador.

João Pedro e Ana viram-se muitas e muitas vezes durante toda a vida, por todos os cantos de Lisboa. Sempre se falaram e conversaram numa cumplicidade nostálgica e genuína que jamais perderiam, mas a atracção dos anos passados nunca proporcionou o beijo que faltou e sempre faltaria, num Amor que podia ter sido e que não voltou nunca mais, porque as oportunidades de amar passam uma vez e depois perdem-se para sempre no estranho universo das coisas que deveriam ter acontecido.

14 comments:

Clara Mafalda said...

Hoje não consigo dizer mais do que: 'hey there delilah', simplesmente a música da minha vida, A música, A letra, A melodia ..
Acho que depois de me licenciar em Direito, vou fazer como a Ana.
beijinho

El-Gee said...

Tinha o pressentimento de que ias aparecer aqui bem cedo, chamada por esta musica..

Miguel Costa said...

Sempre deu para ver o teu fascinio pelo "estranho universo das coisas que poderiam ter acontecido". Aliás bastou ter lido a frase debaixo do titulo do blog, e outros textos que escreveste, mas hoje arranjaste um bom nome para esse lugar

Lorena said...

"- Para onde é que vais?
- Para longe de ti, já que de mim não posso fugir."

Simplesmente brilhante...

Maria Strüder said...

Isto mais parece aqueles Contos de Amor da revista Maria.

fil said...

Estou sem palavras...!!!!! Adorei...

Joana said...

Mais ou menos lamechas, todos nos já fomos ou o João ou a Ana num determinado momento da nossa vida. Todos nós temos o nosso "universo das coisas que deveriam ter acontecido". Todos nós já voltamos as costas no momento em que iamos para saltar em free falling.

Nêspera said...

Gostei muito.
E o que se passa com o amor não consumado destes dois passa-se com tudo o resto na vida.

Oportunidades.
Passam uma vez na vida.
Agarrar agarramos sempre alguma, o problema é que nunca sabemos (nem vamos saber) qual foi a melhor.
Isto já remete para outros post teus.

rosé mari said...

já nos aconteceu a todos...o medo da rejeição leva-nos a preferir viver permanentemente no nosso sonho, a imaginar os "ses", o "what could have been", em vez de nos atirarmos de cabeça, e materializarmos isso tudo.

"não tens nada a perder", é o que mais se ouve nestas situações. para quem tem medo, há tudo a perder, porque quem tem medo de falhar prefere viver na dúvida, no "se", do que no eventual falhanço.

rosé mari said...

ah, e mais uma vez brilhante como consegues relatar estes sentimentos e estados de espírito não tão óbvios através de uma simples história, por acaso tava para escrever há uns tempos uma coisa sobre o medo da rejeição, só que estava guardada num dos vários drafts.

mas, diga-se o que se quiser, esse gajo foi um grandessíssimo garoto.

Pink Lady said...

Simplesmente... Fabuloso! Quem é que nunca viveu uma situação destas? É bom revermo-nos... E sabermos que não somos os únicos!

vânia said...

tenho que confessar que é o único blogue em que consigo ler posts deste tamanho! não me fascina ler no ecrã, mas aqui só consigo parar no fim. *

Unknown said...

"num Amor que podia ter sido e que não voltou nunca mais, porque as oportunidades de amar passam uma vez e depois perdem-se para sempre no estranho universo das coisas que deveriam ter acontecido."

Esta frase resume uns 5 anos da minha vida!

Obrigada pelo que escreves **

the girl in the other room said...

Porque será que a maior parte de nos tem uma Ana e um João Pedro na vida?

Cada vez mais fã destes textos que tocam o que ninguem diz*