Sunday, April 29, 2007

Salada com nozes



Ele olha-se ao espelho despenteado. Gosta da camisa. Ajeita a franja com a mão. Mais um bocadinho. Está bem assim. “Não estou mal. Mais, é fingimento.” Borrifa-se com água de colónia. Cheira a jardim suspenso. Salta porta fora e marcha muito direito em direcção ao carro. Nao quer amarrotar-se.

Ela seca o cabelo com cuidado. Vira-se e revira-se em frente ao espelho na hora de se pentear. Faz. Desfaz. Aquela madeixa nao fica bem com o top azul. Nao. Pinta os olhos, afinal. “Ficam mais verdes. Ele tinha-me dito que gostava de olhos verdes.” Top verde, entao. Volta à casa-de-banho. Rodopia. Não. Estes brincos nao. “Ele gosta de mulheres simples, ouvi-o dizer isto.” Sem brincos. Cabelo esticado, olhos pintados, top verde e sem brincos. Volta ao quarto. Ténis ou botas? “Ténis.” Quais? “Estes.” Não. “Estes.” Nao ficam bem de atacador castanho. “Mãe! Mãe?? Onde é que estão os atacadores brancos que foram para lavar?” Esquece. Outros ténis afinal. “Os pretos!” Pronto. Volta à casa-de-banho. Olha-se. “Falta aqui alguma coisa”. Pega no elástico. Ata o cabelo. Não!! Estica-o de novo. Rodopia. Sorri. Faz cara tímida. Tentadora. Charmosa. Misteriosa. Surpreendida. “Já cá cantas!”. Sai porta fora, dá uma voltinha sobre si própria, apaga a luz da casa-de-banho. Já tem tudo preparado no quarto. Pastilhas. Perfume. Batôn para o cieiro. Um mini-espelho. Chaves de casa. Tá tudo.

Ele pára o carro à porta. “Cheira a primavera aqui. Ela vai topar que me encharquei em água-de-colónia. Onde é que eu tinha a cabeça. Que otário.” Abre a janela para arejar. Dá-lhe um toque.

Um toque no telemóvel. “Ai já chegou!”. O coração bate-lhe sem parar. Respira fundo. Tenta controlar-se. Mais uma corrida ao espelho. Franjinha ajeitada. “Vamos.” Pega nas coisas. Sai de casa. Em sobressalto. Abre a porta da rua. Abre-se num sorriso. Está linda.

“Está linda, meu Deus.” Está totalmente dona de si. Entra no carro com confiança. Por dentro, treme.

“Olá!”
“Olá, então, tás boa!”

E lá vão eles. Entram no restaurante. Ele já tinha pedido uma mesa à janela, pelo telefone. Pensa sempre em tudo.

Sentam-se. Conversam. Ele está mais nervoso. Ela nao. Não parece. Sorri. Controla. Está aterrada.

- Então, senhores, o que vai ser?

- Humm..ai ainda nao sei.. (“Meu Deus que fome! Devia ter comido qualquer coisa em casa. Mas nao vou pedir um bife. Fica mal! E este robalo. Humm. É carissimo. Vai-me achar uma idiota. Polvo. Não, polvo não, se estiver duro não o consigo cortar. Estas costoletas é que devem tar boas. Não! Não posso. Ai. Salada. Que merda. Vai ter que ser..”)..olhe se calhar vou comer esta salada de queijo de cabra. Tem nozes?

- Vem com nozes sim, senhora.

- Ah, que bom! (“Que merda, odeio nozes”). Era essa salada entao!

- Sim senhora, e como prato principal?

- (“Porra.”) Ai é só isso..nao estou com muita fome. (“Ele vai achar que eu sou doida. Leva-me a jantar e como só uma salada. Que mal. Ai que mal”). Olhe..o bife é muito grande? (“O que é que eu estou a fazer????”)

- É sim, é mais ou menos assim. Normal.

- Hum..deixe tar entao. É so a salada. (“Sou a maior otária que este gajo ja levou a jantar..”)

- Muito bem. E o senhor?

- Eu.. (“Agora é que esta miúda me lixou. Merda. Estou a morrer de fome. Também, que estupidez vir com fome jantar com esta deusa. Enfim. Caguei. Homem que é homem nao pensa nestes pormenores idiotas”)..olhe, eu.. era este bife com molho de pimenta.

- (“Cabrao! E eu aqui com a salada. Está visto que ele está muito mais à vontade do que eu. Será que ele está a pensar nisto?”)

- Sim senhor.

- (“Claramente, esta miúda está pouco confortável. Vou ter de quebrar o gelo. Hum. Ou nao. Também é bom ter o controlo. É, é isso. Agora mando eu. Que bom.”). Olhe, e o que é que tem aí de vinho tinto? Bebes, nao bebes??

- (“Nao me vais apanhar bêbeda meu querido! Mas vou-te deixar a achar que sim.”) Humm bebo. Claro que sim!

- Temos o Marquês de Borba Reserva, está muito bom..

- (“Nunca ouvi falar disto. Deve ser um balúrdio.”) Venha esse. É um dos meus preferidos.

E lá vai ele. E ficam eles. Ele faz conversa. Ela responde. Ela faz. Ele responde. Ela relaxa. Ele põe-na à vontade. Sabe que ela está nervosa. Mas não quer ser ele a dominar. Não faz parte do feitio dele. Olha-a com olhos distantes. Acha-a linda e encantadora. Ela acha-o engraçadinho. Nao percebe de onde lhe vem tanta confiança. Mas gosta. Fá-la sentir bem. Está a tratá-la como uma mulher. Está farta de ser um objecto. Gosta dele. Será que ele gosta dela? Ele é de aço. Nao consegue perceber o que ele pensa. Ele percebe o que ela pensa. Porque percebeu que ela não gosta de saladas.

Chega a conta. Dançam o bailado da falsa cerimónia. Paga ele: certas danças têm o guião pré-estabelecido.

Entram no carro.

- Apetece-te ir para casa..? (“Estou doido para beijá-la..será que ela quer mesmo?”)

- Hum não sei..(“Claro que nao! Só se for para tua!”)..tou um bocado cansada..

- Eu também.. (“O que é que eu tou para aqui a dizer?”)..quer dizer..tenho que trabalhar amanhã e.. (“Quando é que eu vou beijar esta mulher??, nao vou cair no cliché de lhe saltar para cima à porta de casa dela!”)

- ..pois, vamos para casa então (“Ai, tá-se a cagar para mim. Que tristeza.”)

- (“Merda. Agora ja nao posso voltar atrás. Que fiasco”) Bora, eu levo-te..

- (“Serve de muito, com os meus pais lá....ou me saltas à boca à porta de casa ou devo ser um monstrinho..”)


Chegam à porta de casa dela. Ele treme. Ela nao lhe deu dica nenhuma. Quer? Nao quer?

- É aqui?

- É!

Pára o carro. Desaperta o cinto. Ela também.

- Gostei imenso de hoje.. (“Fica! Fica!”)

- Também eu.. (“Dou-te trinta segundos antes de sair do carro”)

- (“Ela não saiu. É agora ou nunca. Mas se calhar quer ficar só a fazer conversa. Será que é menina para beijar ao primeiro encontro? Se nao for vai-me achar um alarve.”) E achas que nos vamos ver esta semana..?

- (“Ahh, pelo menos curtes-me!! Entao b-e-i-j-a-me, só falta pedir-te por favor! Que é que achas que estou aqui a fazer dentro do carro, já estivemos duas horas à conversa num sítio bem mais agradável, achas que estou aqui para conversar??”) Acho que sim...

- Pois eu na quinta devo sair cedo do trabalho.. (“Tenho de parar de dizer merda. Se levar com os pés nunca mais vai querer sair comigo. Mas se nao tentar, vai-me achar um mariquinhas. Mas isso depende do que ela quer. O que é que ela está a fazer dentro deste carro, se nao quiser??”)

- Então podemos combinar na quinta.. (“Achas que eu ia querer estar contigo na quinta se nao te achasse a minima piada??”)

- (“Se nao me achasse a minima piada nao ia querer estar comigo na quinta! Agora a questao é se, querendo estar comigo quinta, está disposta a beijar-me hoje..”)

- (“Tás completamente doido e nao tens coragem de dar um passo. Nao me digas que vou ter de ser eu? Nao é ÓBVIO que estou aqui mortinha por um beijo???”)

- (“Este silencio só tem um significado..”)

- (“Tens mais um segundo antes que eu baze e arranje uma desculpa para nao te ver quinta”)

- Que tal estava a salada?

- Hum?

E beijou-a.

19 comments:

Amarcord said...

Quem não ficar corado enquanto lê isto q atire a primeira pedra...

Vee said...

tal e qual

Pedro said...

que fim delicioso (:

O melhor post de chocolate do mundo! said...

Giro:)

Lorena said...

Já estava com saudades destes diálogos.

Foi o norte do país que te inspirou?

Abraços

astuto said...

Grande diálogo. O que mais me fascina é exactamente isso. O jogo psicológico nas relações: quem está mais nervoso?, quem avança?, será hoje?...
Muito bem escrito.

Cumprimentos.

fil said...

speechless!

SE said...

Que real!?!O pensamento é a única coisa que é mesmo só nossa...ninguém o consegue ter/ler/conhecer...a arte está em conseguir gerir o que queremos guardar só para nós e o que não nos importamos de partilhar com os outros...às vezes a expressão dos nossos próprios olhos deixa transparecer mais do que queremos...Adorei!

SAM said...

TRABALHOR ERGUE O TEU PUNHO EMANCIPADOR, GOLPEANDO SEM MEDO O TIRANO EXPLORADOR !!

inespimentel said...

Os desencontros dos primeiros encontros, pautados por silêncios e equívocos, mais as leituras que fazemos uns dos outros, cheias de pressupostos, as expectativas de abrir portas em vez de as fechar, a cada gesto, a cada palavra, sorriso, impulso, é muita adrenalina, muito nó no estomago e perninha a tremer,está tudo aí neste dialogo bem real!

star said...

que sweet...

Bhagavad-gitá said...

quando é que vamos beber um copo ao final de uma tarde quente e luminosa?! .. mal venha o sol voute desafiar.

Rita said...

Adorei! :)

somemarbles said...

um dia conheci uma pessoa, que não comia salada com nozes, mas salada com pevides...

iac!

MiSs Detective said...

delicioso el-gee

Sara Lambelho said...

Muito delicioso, mesmo!

Engraçado como escreveste tão bem o pensamento de ambos ... Muito perspicaz. ;)

Beijinho esvoaçado para ti.

O melhor post de chocolate do mundo! said...

Ela habituou-se a ler o que ele escrevia. Não esticava o cabelo e mantinha a mania de só se pentear no banho e de ir prendendo as madeixas com ganchos ao acaso, mas procurava palavras suas todos os dias. Apesar de não ser ele, ser só um vulto por trás de um nick.

Ele desapareceu.

rosé mari said...

grande nozada que o gajo lhe mandou al final

Inês said...

este post sirocco correu mundo..acho que é o teu texto mais famoso..lol mas pelo q tenho visto ha muitos com nível igual ou superior a este..ta perfeito..!!
Quem é que não passou já alguma vez na vida por esta situação? e é tao bom.. eu acho que é a melhor fase.. Quanto a esse fim... adorei! Perfeito..tive ate ao fim a suster a respiração e pensar s ias acabar em grd..confesso q s tivesses acabado d outra maneira tinha ficado muito desiludida com o miudo da historia..q panhonhas..ainda bem q constrois homens de jeito!LOL..enfim..dp lembra-me de te mandar um video q te vai fazer rir de mais..

beijinhos