Sunday, April 29, 2007
Friday, April 27, 2007
Lembrei-me agora de uma história
Noutro dia estava no Chiado com dois amigos quando passa por nós um daqueles rapazes novos e magrinhos, vestidos de preto coçado e sem duche há dois anos, de boné esticado, que suplica, do fundo do seu parasitismo desokupado,
“Entre os três, não se arranja aí uma moedinha?”,
ao que eu continuei a minha marcha indiferente e um dos meus amigos responde, com o ar bem natural de quem – como ele – vive na dimensão paralela dos que se tão a cagar,
“Só cheques e cartões de crédito, filhos da puta!”
e continuámos a nossa caminhada.
Nunca desejei tanto ter sido eu a dizer alguma coisa e ainda hoje, semanas depois, invejo o meu amigo pelo prazer que lhe deve ter dado dizer aquilo àquele calão sem vergonha.
Wednesday, April 25, 2007
Reality check (toda a gente vê séries)
Hoje estava na sala e pedi à minha mãe se me fazia o favor de baixar o som da telenovela, porque eu já nem me conseguia concentrar na difícil de tarefa de legendar as fotografias para o meu futuro livro, tal era a berraria. Respondeu-me que lhe era impossível ouvir a telenovela comigo e o meu irmão a conversar, de maneira que tinha de ouvir aquela cacofonia que são as telenovelas brasileiras a um volume suficiente que abafasse o resto da comunicação da sala.
Como não gosto de telenovelas, não conseguia legendar as fotografias e não podia conversar, vim para o computador escrever isto. O meu irmão pirou-se da sala. E a telenovela lá ficou, com a minha mãe. Amanhã, lá nos vemos outra vez.
É espantoso como a ficção monopoliza a vida das pessoas, ao ponto de interferir no bem-estar das interacções pessoais e familiares. E as telenovelas são só um pequeno exemplo – aliás, a minha mãe também é um péssimo exemplo neste caso, porque raramente vê e geralmente até é excessivamente boa conversadora.
Todos os meus amigos vêem séries. Todos. Metade já papou o 24 Horas, o Prison Break, o OC, as Donas de Casa Desesperadas, o Lost, o House, a Anatomaia de Grey. As séries todas. Toda a gente conhece os Friends de cor. Encomendam as terceiras e quartas séries da net. Discutem os episódios que viram no dia antes. Bocejam noites sem dormir à frente da televisão. Metem óculos escuros e perguntam-se se não parecem o Jack Bauer.
Dezenas de pessoas que conheço passam os domingos à tarde a empolgar-se com uma fuga da prisão, ou a babar-se com o McDreamy ou com a Eva Longoria. Às vezes não consigo arranjar pessoas para jogar futebol aos domingos à tarde. E durante os dias de semana, quem sai de casa para beber um copo ou um café quando a rede terrorista está quase a ser desmantalada? Ou quando o House se digna a curar mais um doente?
É impressionante. As pessoas deixam de ir à praia, aos bares, a um passeio, a um jogo de futebol, para ficar em casa a ver séries. São dias inteiros. Horas e horas de vida. Séries, telenovelas, gente linda , amores perfeitos, tiros certeiros.
É ficção. A malta da minha idade está totalmente agarrada à ficção. Muitos já perderam a noção da beleza de uma brisa de fim de tarde ou, vá lá!, de uma página de um livro.
Ficar em casa a ver séries é, hoje, um programa como qualquer outro. Há o ir sair, o ir passear, o ir conversar com alguém, o ir às compras, o ir namorar, o ir a um museu, e o ficar em casa sozinho a ver vidas que não existem nas séries. É cómodo, entretém. Vicia.
Tendo episódios por ver em casa, muita gente já nem sequer se preocupa em arranjar programas para o dia.
As séries, ao contrário dos filmes, têm o perigo de serem um universo ilimitado. Um filme começa e acaba. Como um livro. Aliás, o livro, para além do mais, ainda exercita mil e uma funções do cérebro.
Conheço pessoas que passam domingos e domingos a ver séries! Não são os domingos ressacados em que só faz é bem desligar o cérebro e ver três episódios do que quer que seja. Não. É o programinha de domingo: ver séries. Ficar em casa sozinho a ver séries.
Séries ao domingo. Telenovelas à semana. Sexta à noite mais três episódios. “Eh pá já sao duas. Agora é tarde para ir beber um copo.”
E lá se vai à realidade.
Não achando perigoso, nem assustador, nem um caso patológico, acho que o fenómeno das séries está, pelo menos, a exigir demasiado da Realidade das pessoas.
Esse, e outros, mas isso é conversa para outro dia.
Tuesday, April 24, 2007
Salvar a Democracia - Brainstorming
Proponho excluir da eligibilidade para cargos públicos* pessoas filiadas nos partidos políticos e definir níveis curriculares mínimos para cada cargo.
Por exemplo 30 anos de prática de medicina e uma pós-graduação em gestão de hospitais para o Ministro da Saúde, ou 20 anos de Gestão de empresas privadas e um PHD em Macroeconomia para o Ministro da Economia, ou 10 anos de actividade social para o Ministro da Solidariedade, ou 30 anos de experiência bancária e um MBA em gestão para um Administrador da Caixa Geral de Depósitos. Por exemplo.
Assim, passaríamos, finalmente, a ter pessoas competentes a gerir o dinheiro que suamos com os nossos impostos.
Isto porque quem tivesse realmente ambição de poder não precisava de subir na escada partidária para chegar a cargos de topo dentro aparelho estatal. Os partidos continuariam a ser as associações de incompetentes que são, mas o verdadeiro poder estaria na mão de profissionais independentes com capacidades técnicas nos vários ramos sociais e científicos.
(É por certo uma ideia aparentemente disparatada, especialmente se acolhida com o estado de cepticismo e impotência com que os cidadãos desta podre democracia que é a nossa agem hoje em dia, mas se tantos incompetentes nepotistas e corruptos conseguem ser ministros e administradores, não acredito que os restantes 10 milhões e tal de cidadãos do país que lhes alimentam os luxos estejam de tal modo adormecidos que não estejam dispostos a encetar uma silenciosa revolução a favor da honestidade e da competência na gestão das suas próprias vidas.)
(Essa revolução nasce da insatisfação das pessoas e toma forma no momento em que os cidadãos comuns compreenderem que a podridão partidária não é uma couraça de aço indestrutível, mas antes uma associação de gente pouco inteligente, muito menos inteligente, aliás, do que quem está de fora. E muito menos numerosa.)
*Ministérios, Secretarias de Estado, Administração de empresas públicas, Presidência de Institutos Agências e Fundações Estatais
Sunday, April 22, 2007
Charme
Não devia ouvir a música há uns 5 anos, mas hoje passou na rádio. Estava um calor de meio-dia em Elvas, o alcatrão ripostava a luz fina do sol para me mastigar a ressaca de uma noite mal dormida e eu só conseguia imaginar este vídeo, enquanto o carro continuava a sua marcha desmembrada pelo país acima.
Friday, April 20, 2007
Hoje estou mais ou menos assim (hoje, ontem, amanhã e não sei desde quando nem até quando)
Citando
Por isso, gosto de saber que alguém se deu ao trabalho de pesquisar um bocado sobre o assunto e dar-me, também a mim, razão:
http://ablasfemia.blogspot.com/2007/04/alemanha-18-dead-in-german-school.html
Enquanto és

Te queixas do emprego
E da namorada que te abandona
Enquanto danças,
Criticando aquela música
E o preço da gasolina
Enquanto trabalhas
Irritado com o chefe
E com o ordenado que escasseia
Pessoas como tu perdem pernas no meio da rua.
Gosto de ler
Já não me lembro da última vez em que disse a alguém “Não gostei nada daquele livro.” ou “Esse autor é mesmo fraquinho!”
É verdade que andei à guerra com o Lobo Antunes pela sua Memória de Elefante, mas depois de me habituar àquela cabeça transtornada acabei por lhe dar o merecido valor que cabe aos génios. Inicialmente, também já me estava a passar com o Steinbeck com East of Eden, mas hoje em dia já não consigo adormecer sem avançar algumas páginas.
Geralmente, mesmo que inicialmente não goste por uma razão ou por outra, dou o benefício da dúvida aos livros e acabo por lê-los até ao fim. Acho que, à excepção do Conto de Duas Cidades do Charles Dickens, nunca deixei um livro de ficção a meio. Nem sei porque deixei esse. Acho que estava em pulgas para ler outro e acabei por não voltar a pegar-lhe.
Quando estou a ler um livro, mesmo que não esteja a gostar muito, encontro pequenos pormenores que me deliciam. Um pensamento, uma forma de o escrever, uma escolha de palavras. Pequenas coisas. Há livros que valem por si só do princípio ao fim e que fechamos, no final, com aquela agonia alegre de uma vida que vivemos e ficou para trás. Mas outros, que não têm a mesma majestade enquanto Livro, podem cativar-nos por breves passagens ou por todo um estilo.
Acho que é por isso que nunca desgostei de um livro – cada livro de ficção é um mergulho profundo na cabeça de outra pessoa, nos seus debates internos, no seu expressionismo, na esquizofrenia com que cria, do zero, gentes e lugares a quem dá vida própria. Mesmo que não nos agrade o estilo, a personagem, o enredo, temos perante nós a possibilidade de conhecer alguém com quem dialogamos apenas através do mundo que cria: o autor falando-nos através do espaço imaginário que criou para nós, nós respondendo-lhe através da nossa recriação pessoal desse mesmo espaço.
Para além de tudo isto, desconfio que o facto de geralmente só ler autores consagrados ou autores premiados também contribui para que eu goste dos livros que leio. Acontece que, regra geral, os Grandes autores escrevem – na minha opinião – para exorcizar na ficção os problemas que os afligem e os consomem. E assim, mesmo no mundo fictício de um universo ficcionado, o leitor têm acesso às fúrias, dúvidas, certezas e alegrias de quem lhe escreve.
Os Grandes autores são, na maioria dos casos, pessoas supremamente inteligentes ou profundamente perturbadas com a sua vida e o seu tempo. Por isso, é-me difícil não gostar de os ler, mesmo que não goste do que me escrevem.
Os grandes livros – que não são necessariamente os livros que mais nos entretêm – encerram anos e anos de dúvidas e interrogações, que só através da escrita são superadas.
É enriquecedor poder, enquanto leitor, aceder a essas questões e questionar, na nossa própria consciência, os mistérios que elas encerram e que levaram alguém a inventar todo um mundo inexistente, como forma de as varrer de si.
Thursday, April 19, 2007
Gosto disto
Aqui.
Não sei se está relacionado com o filme "Os Imortais". Não tenho tempo para andar à procura.
Acho que música da Enya por trás está bem escolhida.
Já o li também sem música. Gosto na mesma.
Sim, gosto disto.
Olho para trás e vejo o deserto. Olho em frente e vejo a cidade! Não me sinto longe nem perto. Sinto apenas a fugir a mocidade. Rodo e fico a olhar as sombras escuras. Rodo e deixo a cidade nas minhas costas. Mas porque é que me persegues e perduras? No fundo é disso que tu gostas... Deixa-me maldito passado. Deixa-me ver o sol a brilhar. Não sejas o meu reflexo nublado. Deixa-me apenas viver e acreditar. Vou deixar de te sentir. Vou deixar de te dar valor. Eu quero voltar a sorrir e ignorar toda esta dor. Quero olhar em frente. Quero entrar na cidade. Posso já não ter figura de gente, mas tenho cá dentro a verdade! Quero que estas lágrimas brilhantes se transformem em cristais. Quero que os meus braços sejam as estantes onde os livros escritos são os meus sinais. Quero de ti separar-me. Nem que seja litigioso. Quero de ti arrancar-me como quem arranca a carne do osso. Quero entrar, em pé, na cidade da vida e não te quero levar comigo. Quero dar-te com o pé, sofridão escondida. Não te quero como amigo.
Free Hugs
Eu não vou estar cá, o que é uma pena.
Wednesday, April 18, 2007
A carta de demissão, quando fruto de dois minutos de reflexão entre a sua impressão e a saída do seu autor do escritório, já atrasado
“Caro Dr…
Venho por este meio…
…e isto…e aquilo…
…com os melhores cumprimentos…”
Imprimi a carta, assinei com o meu nome e olhei-a. Um pequeno documento com o peso de uma vida que dá uma curva. Aquela folha de papel é o acto solene que culmina um ano e meio de trabalho, uma série de entrevistas, dezenas de interrogações e uma decisão.
Olho a minha carta de demissão e sinto-me ligeiramente mais vivo do que antes de a olhar.
Sou alguém, naquela folha de papel. O receptor da carta recebe algo que trata exclusivamente de mim.
Estou ali, naquela folha. E não posso fugir dela.
Que pouco vale a palavra dita, quando uma escrita a pode provar em contrário.
É forte, e melancólico, o poder das cartas de demissão.
Monday, April 16, 2007
Monday morning
Já hoje, quando saltei da cama assustado com o atraso que se avizinhava, eram 9 da manhã.
Tomei um duche a correr e descobri que não tinha espuma de barbear nem lâminas novas, pelo que me deparei com a dolorosa perspectiva de um lento barbear a sabonete e lâmina usada, ainda para mais depois de dois dias de barba rija.
Enquanto chapinhava na água do lavatório e arrancava a custo a magnífica barba que me tornara num maravilhoso galã durante o fim-de-semana, tocava a “Garota do Ipanema”, em inglês, no rádio ao meu lado. Quando acabou, começa uma guitarrada brasileira que prontamente identifiquei como a “Garota Nacional” dos Skank. Nisto eram obviamente para lá das 9:20 da manhã.
Felizmente, por esta altura a barba já tinha desaparecido quase toda da minha cara luzidia e só me restava espalhar o after-shave sobre a pele irritada, no que ouço o locutor dizer, numa voz agarotada:
- Tivemos a Garota do Ipanema, primeiro, seguido da Garota Nacional. Porque é de garotas que nós gostamos!
E eu, que por aquela altura devia era estar a pensar na hora absurda a que ia chegar ao trabalho, no calor da caminhada apressada até lá e na chatice de ainda ter de meter um fato, tive a espantosa reacção de falar com o rádio num cúmplice e infantilmente descomprometido..
- Ah pois é!..
..após o que me olhei ao espelho com o sorriso impecável da cara lavada e pensei, para comigo, que se as minhas fantasiosas suposições sobre o outro lado do espelho forem verdadeiras, alguém deve ter soltado uma alegre gargalhada enquanto me mirava do lado de lá da imagem abonecadinha que eu via no meu reflexo.
Thursday, April 12, 2007
Monday, April 09, 2007
Tuesday, April 03, 2007
The Love Show
Chovem rios sobre Lisboa quando surges através dos vidros embaciados do meu carro. Os faróis iluminam às farripas o teu cabelo de tinta barata que se cola, gelado, a uma lividez encharcada. Abrando quando me acenas de mão na anca. Da tua perna escorregam fios de água gelada que se afogam nos saltos pretos dos sapatos que trazes e te comem os pés. Reparo na cor que te escorre pela cara até à boca. São lágrimas desbotadas de uma máscara que vestes para mim.
Encosto o carro junto a ti. Avanças, decidida. Quantos anos terás? 18? 19?
Abro o vidro.
- Se eu te der cinquenta euros vais para casa?
- Para minha ou para tua?
Já não és uma menina. Nem eu.
- Para tua, sem mim.
- Tás a querer gozar com quem, caralho?
- Não tou a gozar. Entra.
- Cinquenta euros não chegam para a sopa de amanhã pá.
- Ai não? Quanto custas?
- Setenta.
- Entra.
Abro-te a porta. Sentas o rabo molhado no banco ao meu lado. Quase te vejo a anca. És bonita. Uma manta de retalhos bem cosidos.
- Gostava que não trabalhasses hoje.
- Trabalhas tu por mim?
- Não, mas pago-te e levo-te a casa.
- E fodes-me em minha casa?
- Não! Não! Não te fodo! Hoje não fodes! Vais para casa, descansar.
Olhas-me aterrada. Achas-me um tarado esquizofrénico.
- Vai gozar com outra pá.
- Como é que te chamas?
- Rute
- Rute, eu não costumo..pagar por isto, tás a perceber? Gostava só que fosses para casa dormir e tomar um duche quente. Está um gelo. Está escuro. Chove.
- E pagas-me para isso??
- Pago. Se prometeres que vais para casa e ficas lá, pago.
- E és o quê, um anjo da guarda?
- Acreditas em anjos?
- Não.
- Então não perguntes.
Atrás, luzes fortes mandam-me avançar. Encosto mais à frente.
- Então?
- Pá..eu nem acredito nisto. Porquê eu?
- Não sei.
- Pá ya. Quer dizer. Nem sei que te diga. Nunca me aconteceu isto.
- Pois.
- Mas não quero que me leves a casa. Deixa-me num táxi.
- Posso pagar-to?
- Já sabes que não vou recusar.
- Há aqui alguma paragem?
- Há, a uns dois minutos.
- Vai-me dizendo o caminho.
Arranco devagarinho, a chuva cai assutadora sobre o vapor do vidro.
- Que vais fazer, quando chegares a casa?
- Eu?
- Sim.
- Pá..olha nem sei. Aquecer-me. Ver a minha filha. Vê-la a dormir.
- Tens uma filha?
- Tenho duas. Uma vive com o pai.
- E esta, contigo?
- Sim. Tem dez meses Fica c’ávó durante a noite..
- E durante o dia?
- Também.
- Trabalhas de dia também?
- Ya, num café.
Escuto a chuva que cai. Uma melodia feminina penetra-me como o fumo quente de um chá num dia de Inverno.
- E tu, que vais fazer?
Olho-a, desprevenido. Eu? Que vou eu fazer? E porque queres tu saber?
- Eu..olha nem sei..tomar duche, dormir. Acabei de jogar futebol, como podes ver.
- Ya. Jogas à bola, é?
- Sim, com os meus amigos. Às segundas jogamos a estas horas.
- E trabalhas em quê?
Mais uma vez me deixas embaraçado. Tenho vergonha do que sou, do meu caminho, perante o que tu és. Por outro lado, gosto que saibas que os capitalistas de fato e gravata que te comem e te cospem são seres humanos como tu.
- Numa mega empresa, a aprender com os melhores a ser ainda melhor que eles.
- Parece-me melhor que o meu emprego!
Rimos com uma cumplicidade de velhos amigos que seguem caminhos diferentes e se encontram num amargo café a meio da vida.
- Olha curto esta música.
- É gira é..
- Direita.
- Ahn?
- Vira à direita.
- Ah, desculpa não tava a perceber.
- Mas que música é?
Ponho mais alto.
- Ah é uma da gaja dos Morcheeba. Costuma dar nos Morangos, acho eu.
- Putas.
Olho-a. “Mas a puta não és tu?”, pergunto-me.
- Mas.. a puta não és tu?
- Eu?
- Desculpa..
- Pá não te preocupes. Mas vou ter de te fazer uma pergunta de volta.
- Chuta.
- Esquerda e depois direita.
- Hum?
Ris-te.
- Foda-se és mesmo distraído! Vira à esquerda e depois à direita..
- Ah! Então? E a pergunta?
- Olha, achas que uma gaja que tem a segunda filha aos 20 anos, perdeu o pai para a morgue e a mãe para o alcool antes dos quinze, rebenta os cornos no absinto desde os doze, trabalha das sete às sete a ganhar 400 Euros por mês e está à meia-noite a chorar rímel e pecados no meio da rua à espera de um velho bêbado para lhe chupar a pila, é uma puta?
- Deixas-me sem resposta.
- E essas gajas vestidinhas de alface, a cuspir guita no vomitado de besanas de caipirinhas, com casas na praia e olhos azuis, com pais nos bancos e mães a arranjar as unhas nos cabeleireiros todas as terças e sextas, que fodem o melhor amigo do namorado e depois lhe vão chorar para o Mercedes à porta de uma mansão com piscina, são o quê?
- São putas, também, é?
- Foda-se. Essas é que são! Eu. Pá eu, achas que eu gosto de estar aqui?
Sou demasiado formatado para te compreender. Não me deste tempo suficiente para te julgar. Eras só uma puta, quando te abri a porta. Foste uma mulher da vida, quando entraste. Agora já não sei o que és. És um tiro no escuro que saíu na direcção errada.
- Desculpa Rute. Não sei como te responder. Gostava, mas não posso. Tenho imenso respeito por ti. Pelo teu esforço, pelo teu sacrifício, tás a ver?
- Tens pena de mim.
- Pá tenho.
- Não tenhas. Sou adulta. Sei lutar. Direita. É ali, vês?
- Sabes lutar, mas preferia que lutasses com outras armas..
- Como é que te chamas?
- Luís.
- Que idade tens?
- Vinte e três.
- Vinte e três..mais dois que eu..
- Mais dois que tu..
- E, desculpa que te diga, não sabes nada da vida.
Não tenho resposta. Acredito em ti. Conseguiste tocar-me. A chuva parou e desligo o motor. Saio para te abrir a porta.
- Ai mas que cavalheiro..
- Senti vontade de te ir abrir a porta.
- E meninos como tu abrem a porta a putas?
- Já abri portas a putas piores. Não lhes paguei foi setenta euros para irem para casa.
- Pagaste-lhes jantares para irem para tua, não foi? Todas têm um preço, nem todas assumem é isso.
- Não acredito no que dizes.
- Provavelmente nunca vais acreditar.
Rio-me.
- Provavelmente não. Olha, toma os setenta euros..
Aceita-os.
- És um gajo bacano Luís. Não sei que te diga pá..
- Dorme bem Rute.
- Não vou conseguir dormir, vou ficar a pensar em ti.
- Não fiques. Os anjos desaparecem como apareceram.
- Não acredito em anjos.
- Então faz de conta que eu nunca existi.
Sorrio-lhe e volto para o carro. Espera que entre e acena-me, antes de abrir a porta do táxi e sentar o rabo já seco no banco de lona gasta.
Esta noite vai ver a filha no primeiro adormecer, quem sabe se deitará a seu lado e derramará uma pequena lágrima de mãe ausente sobre a sua pequena almofada. Adormecerá exausta junto do fruto de um amor arrependido e acordará com a mãe que a verá, surpreendida, na cama da neta. Amanhã, talvez sorria. O mais provável é não o fazer. Vai gastar todos os sorrisos a que tem direito, hoje.
E eu.
Eu, sigo no meu carrinho de brincar para casa, ingénuo portador de uma boa acção que me desvenda a tristeza de uma vida demasiado bem parida.
Sunday, April 01, 2007
Telma Monteiro: Convite para lanchar

Acabei de te ver nos Globos de Ouro e gostava de te poder convidar para fazer qualquer coisa.
Sempre tinha ouvido falar de ti nos jornais e fiquei especialmente contente quando foste campeã da Europa, mas nunca até hoje te tinha visto na televisão! Devo dizer que fiquei triste quando vi o teu ar abatido por o prémio de hoje ter ido para a Vanessa Fernandes - seja como for, sem dúvida que perdeste para outra grande campeã!
Olha eu não sou nada o tipo de "ir tomar café", nem queria reduzir o nosso primeiro encontro a um galão resfriado, por um lado, mas, por outro, também acho que não temos intimidade para um jantar.
Por isso, lembrei-me de que talvez fosse porreiro irmos lanchar a qualquer lado, ou beber um copo aí num fim de tarde quando chegar o bom tempo..? Conheço imensos sítios giros em Lisboa, de certeza que ias adorar!
Se achares piada à ideia, avisa. Tenho um bocado medo que nunca leias isto, mas seja como for o convite fica feito e quem sabe se tu não és leitora do meu blog, sem eu saber?!
Se fores, podes deixar aqui um comentário e depois logo arranjamos maneira de trocar números sem que o resto destes cuscos que são os meus leitores se aperceba!
Entretanto, se se der o caso de teres um namorado que também seja judoca, esquece este convite e pede-lhe imensa desculpa da minha parte!!
Vá fico à espera
Beijinho
Luís
P.S.: Esta fotografia foi a melhor que arranjei..
Aquele fim de Inverno
O Amor
Quando pela primeira vez olhou para Ana, João Pedro soube imediatamente que nunca a iria beijar. Tragicamente, essa primeira troca de olhares foi o primeiro momento de um amor que haveria de assaltar João Pedro durante todos os minutos da sua longa vida.
João Pedro era um miúdo igual aos outros, para além da sensibilidade muito própria que o levava a ter sempre consigo um livro e um bloco de anotar a vida, ferramentas onde mergulhava cada minuto das aulas de ciências que odiava, ele que era um incoformado pensador e debitava no papel e nos campos de futebol a vida que tinha dentro de si. Já Ana era uma rapariguinha tímida, de cabelos lisos presos com ganchos às cores, e uns olhos azuis vivos como duas gotas de chuva acabada de cair, uma princesa de finos traços e um sorriso sem chave que o abrisse.
Foram apresentados por uma amiga comum num fim de tarde à porta da escola, no meio de um aceso debate sobre os exames nacionais e os cursos que todos haviam de seguir, quando Setembro batesse à porta.
Ana era de outra escola e viera ter com a sua amiga para seguirem juntas para a aula de ballet, e quando João Pedro chegou ao círculo de rapazes que já a rodeava, ela olhou-o com aquele tímido olhar de despretensiosa curiosidade que os seus caracóis acastanhados pediam. João Pedro não era o sex-symbol daquela turma de 12º ano, mas o nariz arrebitado e os profundos olhos castanhos carregavam o magnetismo ingénuo dos corações mais puros e inconformados.
Quando o grupo se dispersou em direcção aos afazeres do início de noite de um Março frio como nenhum outro, João Pedro deixou-se ficar com Ana e a amiga e seguiu com elas até ao metro. No momento de parar para se despedirem, Ana olhou-o com o ar nostálgico de uma despedida demasiado antecipada, e naquele momento em que se entreolharam antes de um “até à próxima” desesperado, as pontas dos seus dedos tocaram-se como por uma magia inevitável de amor inconformado. Ana, a bela e inacessível Ana, estava magnetizada pelo sorriso tímido de João Pedro e pela profundidade do seu sofrimento por ela, aquele tremer incontido que sentira nos seus passos e na respiração acelerada pelo vento frio que lhes levantara os casacos e os cabelos a caminho do metro.
No dia seguinte, a amiga saltou para cima de João Pedro mal ele entrou na sala de aula. “Então”, segredou-lhe baixinho da mesa de trás, “tás doidinho pela minha amiga..”.
João Pedro virou o pescoço num lento embasbacar de criança apanhada e olhou-a longamente do interior dos seus olhos castanhos, enquanto o professor, lá bem longe, debitava as monocórdicas propriedades reflectoras das lentes convexas. Virou-se, depois, e calmamente se dobrou sobre um papel rasgado do seu caderninho, onde escrevinhou por impulso um papel para a amiga.
“Nem que seja a última coisa que faça na vida, hei-de beijar a tua amiga com tanto amor e tanta loucura que o azul dos olhos dela me vai gelar o sangue e fulminar para sempre num segundo de mil desejos”
A Incerteza
Ana voltou na terça seguinte, dia de ballet, e procurou João Pedro com o olhar mal avistou a amiga no meio dos seus amigos. Topando-a, a amiga olhou-a com o ar divertido de uma velha casamenteira e segredou-lhe baixinho: “Aninha, escusas de procurar que ele não aparece. Está no jardim das traseiras à tua espera.”. O coração de Ana pulou como nunca pulara e a tímida princesa olhou a amiga com o olhar aterrado de quem é apanhado numa armadilha demasiado boa para ser confrontada. A amiga sorriu-lhe com um brilho nos olhos e puxou-a pela mão para fora da escola, afastando o bando de rapazes que já se metia com Ana, correndo com ela para as traseiras da escola, onde a abandonou à sorte e seguiu, sozinha, para o ballet.
Ana ficou de pé ao vento, aterrada na sua branca timidez de menina encasulada. A verdade é que até há pouco tempo fora namorada de um amigo de longa data e não sabia o que sentir por aquele desconhecido com tantos mistérios por detrás dos olhos castanhos que a tinham olhado com aquele carinho sem perguntas à porta do metro. Dobrou a esquina com cuidado e viu João Pedro enconstado contra a parede, sentado na posição pensadora dos que esperam algo que nunca chegará. Quando a sentiu chegar, João Pedro levantou-se de um pulo e ajeitou o cabelo, já meio acinzentado naquele escurecer de cidade deprimida.
- Ana..
- Olá João Pedro..
- Não tava à espera que aparecesses aqui..
- Pois a Joana trouxe-me..
- E sabias que eu estava cá?
- Hum..
- Não precisas de ficar encarnada..
- Aii..sabia..sei lá..não sei porque é que vim João Pedro..eu não te conheço..
- Nem eu a ti, e tou aqui à espera à meia hora ao frio..
- Tadinho!
- Olha..queres ir até àqueles bancos? Podemos ficar sentados e falar um bocado..não sei..
- Parece boa ideia..
- Lá não tá tanto frio, tem aquelas árvores a proteger, vês?
- Ainda bem..mas mesmo assim acho que vou enregelar!
- Oh! Olha toma o meu casaco, queres?
- Não, não é preciso! Que querido!
- Vá toma! Não tenho frio! Tenho esta camisola vês?
- Desta vez aceito. Mas so porque tens a camisola João..
- Take a seat..é o meu sítio preferido da escola. Nunca ninguem vem para aqui. Passo horas neste banco a pensar na vida
- Gosto deste sítio João Pedro.
- Também eu. Faz-me pensar!
- E estás a pensar em quê, posso saber?
- Agora?
- Agora.
- Agora em nada, agora tou a falar contigo..
- Hum. E preferes?
- Prefiro, porque antes de apareceres estava a pensar em como seria se estivesses aqui ao meu lado..
E nisto passaram todo o fim de tarde daquele dia, descobrindo-se a cada palavra e a cada toque, numa atracção respeitosa de duas pessoas que se amam mas não têm a sorte nem a coragem de dar o salto para algo maior.
Ana voltou durante muitos fins de tarde durante aquele mês, e sempre que se sentava com João Pedro no banco que era só os dois, trocando piropos e debatendo o sentido da vida, numa cumplicidade atormentada pelas constantes dúvidas de João Pedro sobre as intenções dela, sentia por ele um carinho agigantado pela admiração que as suas palavras lhe provocavam.
Mas nunca, durante esse mês de Março e o início de Abril, João Pedro teve a coragem e a confiança para beijar Ana, nem quando os seus brilhantes olhos azuis lhe suplicavam que se inclinasse sobre ela para sempre. João Pedro tinha medo da reacção de Ana. Amava-a de tal forma, que preferia possuí-la em tardes de banco de jardim para sempre, do que arriscar beijá-la e perdê-la numa rejeição que só ele era capaz de inventar, na sua cabeça de hipóteses e labirintos.
A Coragem
Um dia Joana agarrou João Pedro pelo braço e disse-lhe na cara o que ele temia ouvir.
“A Ana tá completamente apaixonada por ti João Pedro. Tás a ouvir? Está doida por tu não dares o passo que ela espera. E não vai esperar por ti para sempre, João Pedro. Vai para o Brasil com o ex-namorado e a família dele e dela para a semana. São amigas as famílias e ela, como deves calcular, ainda sente uma mínima atracção por ele. João Pedro ou a agarras agora ou a perdes para sempre.”
João Pedro gelou na imaturidade da sua mente labiríntica. Como amava Ana! Como a amava! Mas como beijá-la? João Pedro raras vezes gostara de alguém como gostava de Ana e jamais conseguia ver nela o objecto de um beijo. Não sabia definir o que sentia. Queria-a toda para si no seu conceito, na sua fragilidade, na sua vozinha calma e no seu sorriso com covinhas. Beijá-la parecia-lhe a perversão daquela imagem imaculada de Ana.
Na verdade, João Pedro não se sentia digno dela.
“Amanhã é o jantar de turma. Vamos sair depois. Ela vai sair também com os amigos dela. João Pedro, mais do que isto não te posso ajudar.”
“Obrigado”, respondeu João Pedro, e fugiu para o seu banco das traseiras amadurecer a alegria e o medo que sentia.
Chegou o dia seguinte, e depois dele, devagarinho, a noite, e quando a viu na discoteca, linda, de branco e azul, João Pedro evitou-a até não conseguir senão estar frente-a-frente com ela.
- Olá..
- Olá João Pedro..
João Pedro não sabia o que dizer. A música, as luzes, o fumo que o penetravam, nada o deixava ver naquela a Ana que se sentava com ele durante horas de anoitecer nas traseiras da escola. Sentia-se estranho. Não queria estar com ela ali. Queria pegar nela e voar dali para fora, para um jardim de primavera sem ninguém senão um céu azul que ouvisse as suas conversas de barriga para o ar. Ali, Ana era assustadoramente linda, assustadoramente desejada, assustadoramente dona de si e de todos os outros. Ana, ali, não era só sua, e ela sabia-o. Frente-a-frente com ela, num espaço só dos dois naquela cave escura, João Pedro tinha medo de a perder. Ele, que com um leve esticar de pescoço a faria sua para sempre, tinha medo de a perder com um beijo ali, naquele sítio tão selvagem, tão impessoal, tão contrário ao seu amor por ela.
- Não tava à espera de te ver aqui
- Não tavas?!
- Não..quer dizer..ate tava..não sei..
- Não gostas de me ver?
- Gosto
- Não parece..
- Porquê?
- Tas com ar de enjoado..
- Desculpa..não tou muito bem..
- Mas não te apetece tar comigo portanto?
- Apetece claro. Mas se calhar preferia tar noutro lugar!
- Mas a musica tá óptima! Queres dançar?
- Não me apetece muito. Olha não queres ir ali falar para um sitio mais calmo?
- Quero..depois..não posso sair daqui de ao pe deles! Oh João Pedro apetece-me mesmo dançar!
- Quem é aquele, ja agora?
- Qual? O loiro?
- Sim..
- É o Pedro. O meu antigo namorado. Ja te tinha falado nele..
- Vais dançar com ele é?
- João pedro não sejas parvo! Tu é que não queres dançar comigo..
João Pedro sentiu-se numa angústia incontrolada, subitamente louco de ciúmes pelo irritante à vontade do loiro de cabelo liso que se ria e divertia com um copo na mao, tão dentro daquele ambiente como Ana. E tão a vontade como ele estava constrangido.
João Pedro não era ninguem ali. O seu era um Mundo de harmonias e equações por resolver. Um Mundo de raios de sol e anoiteceres em bancos de jardim e fins de tarde na praia e violas e conversas e olhares cristalinos.
Sentia-se um pedaço de nada à deriva. E irritava-o saber que Ana saía à noite todas as semanas. Não conseguia conceber as sextas passadas, não conseguia imaginar Ana naquele sitio depois das conversas com ele no banco das traseiras. E o loiro, aquele irritante loiro a falar com ela. De certeza que Ana o via todas as sextas! “E eu não passo do idiota que ela usa para ter alguma coisa que fazer durante a tarde.”
Neste estado de destruição, João Pedro concluiu que Ana não deveria ver nele mais do que um entretem. Auto-comiserado, resignou-se com a sua posição de solitário enamorado de quintas à tarde e perguntou-lhe:
- Vemo-nos esta terça, na escola?
- Mas vais embora???
- Vou, não me parece que seja muito benvindo aqui..
- João Pedro que estupidez!! Fica cá! Quero imenso que fiques.
Agarrou-lhe na mão
- A fazer o quê?
- Sei lá, aqui, comigo..
- O loiro não pára de olhar..
- Olha antes para mim..
- Ana, esquece. Tenho de ir. Quero imenso ver-te para a semana, só nós, sem ninguém, nem barulho, nem luzes e fumo.
- Pois. Então olha..ate terça..
João Pedro saiu a correr e apanhou o primeiro táxi para casa.
O Adeus
Quando apareceu na terça, Ana vinha diferente. Não lhe sorriu no seu timido olá de olhos azuis que o habituara e que ele amava. Não se sentou perto dele. Não fez perguntas. Esteve, não mais. João Pedro tentou falar-lhe dos assuntos que a encantavam, dos filósofos gregos, dos seus planos para o verão, das trivilalidades que a faziam rir, mas nada. Ana não estava ali.
- O que se passa contigo Ana?
- Nada..
- Nada não..estás estranha..
- Pois..
- Foi por eu ter ido embora na sexta?
- Mais ou menos..
- Tem a ver com o loiro não tem?
- Não..
- Tem, não tem?
- Curti com ele na sexta.
João Pedro gelou num arrepio circular entre a ponta dos cabelos e o mais fundo do seu desespero. Ele sabia, e soubera-o desde a primeira lágrima caída mal entrara no táxi de sexta-feira.
Levantou-se.
- Gostas dele?
- Não sei..
- E de mim!?
- João Pedro, se calhar era altura de parares de brincar comigo...
- Se calhar não sou como tu achas que sou. Se calhar não sou como queria ser.
- Pois João Pedro. Não sei. Não quero ficar indecisa para sempre.
- E se...
- Se o quê?
- Se eu te tivesse beijado na sexta?
- Na sexta. Na quinta. Na quarta. Em todos os dias em que desesperei por um carinho, um abraço, um olhar de atrevimento, João Pedro. Não sei que te diga. Passou. Passou. És um grande amigo. Se calhar, sempre foste só um grande amigo.
- Pois. Se calhar fui só isso. Olha, dás-me o meu casaco? Vou-me embora.
- Para onde é que vais?
- Para longe de ti, já que de mim não posso fugir.
- João Pedro..
- Adeus Ana..
O resto da Vida
Na verdade, quando andava a passos largos a caminho de casa, João Pedro sentia uma enorme e trágica liberdade, a liberdade de quem finalmente se ilumina e se compreende.
Naquele dia, João Pedro percebeu que o seu amor era conceptual, enorme, imaginativo. E Ana era viva, linda, desejada, quase carente. Jamais João Pedro poderia satisfazer Ana sem o beijo que não lhe dera e nunca lhe daria, porque o seu amor era um amor de letras e palavras, e o dela o de carinhos e beijos em crescendo.
João Pedro seguiu para Paris para estudar Filosofia, onde leccionou durante anos até regressar a Portugal já num devaneio de fim de juventude. Amou e foi amado por muitas mulheres, de todo o Mundo que se concentrava em Paris, mas jamais soube dar-se a nenhuma, porque jamais compreendeu a verdadeira essência de nenhuma delas.
Ana licenciou-se em Direito, casou aos 26 anos com o terceiro namorado que teve depois de Pedro e abandonou o escritório para tomar conta dos três lindos filhos que teve, sustentados por um marido atencioso e trabalhador.
João Pedro e Ana viram-se muitas e muitas vezes durante toda a vida, por todos os cantos de Lisboa. Sempre se falaram e conversaram numa cumplicidade nostálgica e genuína que jamais perderiam, mas a atracção dos anos passados nunca proporcionou o beijo que faltou e sempre faltaria, num Amor que podia ter sido e que não voltou nunca mais, porque as oportunidades de amar passam uma vez e depois perdem-se para sempre no estranho universo das coisas que deveriam ter acontecido.