Sunday, November 12, 2006

No Reino do Tigre

Rio abaixo

Duas australianas, um casal ingles e um reformado japones ajudam-me a remar rio abaixo ate perto do Parque Nacional de Chitwan, uma enorme selva onde tigres formam o topo da cadeia alimentar, partilhando o seu territorio com rinocerontes asiaticos, macacos e crocodilos. O dia de rafting leva-me atraves de um rio azul-baco rodeado de verdes montanhas, paralelo a estrada principal do Nepal, de maneira que a nossa diversao e acompanhada de gritos animados dos tejadilhos dos autocarros nepaleses. Um dia diferente, alegre, ocidental mas natural. Passamos por debaixo de enormes pontes suspensas, aqui e ali ocupadas por mais um sari colorido vestido por mais um linda nepalesa ou mais um veloz e trabalhador nepales.

Ao longo desta minha jornada tenho observado como e bonita a mulher nepalesa, tanto no campo como na cidade. Decerto a mulher da cidade tem, aos meus olhos, um ar muito mais asseado; a mulher da cidade que o pode fazer, pinta-se, cuida-se, sabe o que veste e como o deve vestir. A nepalesa da vida dura do campo veste sobre a sua bela aparencia as roupas que tem, mais numa logica de cobrir-se e aquecer-se. Mas sao lindas as suas feicoes, com os seus dentes direitos, olhos vivos e rasgados, narizes proporcionados e longos e lisos cabelos negros. Em Kathmandu, encantam-me nos seus saris coloridos, fardas de universidade ou roupas ocidentais. Em cada esquina sou surpreendido por mulheres que considero lindas. Apesar de tudo, na sujidade da cidade essa beleza nao corresponde a uma atraccao fisica. Seja como for, por vezes e tentadora a forma como sorriem e olham timidas e curiosas para o turista que as observa, tambem curioso mas talvez menos timido. Os homens nao correspondem ao elevado padrao feminino, e neles noto muito mais a diversidade etnica do pais. Regra geral, tem um aspecto muito mais sujo do que elas, nao se arranjam, embora a nova geracao faca obviamente um esforco para modernizar a ocidental a sua maneira de vestir. Uma curiosa sucessao de pensamentos levou-me alias a concluir que o jovem nepales nao e tao feio como o adulto. Ja a crianca nepalesa possui um encanto e uma beleza unicos, nas suas caras redondas e olhos longilineos, pese embora esses serem os tracos associados a raca mongoloide, uma das duas racas que forma, com a indo-ariana (na minha opiniao, muito mais feia), o painel racial nepales, de onde originam todas as suas etnias.

Todas as mulheres tem desde bebes o nariz furado e as jovens usam normalmente o cabelo apanhado. Os homens tem-no muito curto e geralmente forte, e foram rarissimos os carecas que encontrei pelo Nepal fora. (Em contrapartida, parece-me que nao ha um unico holandes na posse de todo o cabelo com que originalmente foi dotado). Muitos usam bigode e, ou muito me engano ou sao maioritariamente os de raca indo-ariana que o fazem. Penso alias, sem complexos, que o homem mongoloide e de muito mais agradavel feicao do que o seu compatriota indo-ariano, nao tendo no final da minha jornada nepalesa conseguido entender se a mesma formula se aplica para a populacao feminina, que parece surpreender pela sua beleza qualquer que seja a sua origem genetica.

A mulher nepalesa acompanha a todo o momento a beleza de qualquer paisagem em que me encontre. A medida que os dias passam, e para mim um dado cada vez mais adquirido que e ela a verdadeira joia do Nepal.

Entrando na selva

Acompanhado dessas caras que me olham amigaveis, atravesso os cenarios povoados de rios e montanhas num autocarro que me leva durante duas horas desde o final do rafting ate a regiao do Terai. De repente, as montanhas dao lugar a incontaveis arvores e um ar mais denso entra pela janela por onde a minha cabeca espreita. Aqui, nao ha montanhas. Em menos de nada, paro numa poeirenta rua e sou recebido por alguem que me chama.

"Mr Luis! Mr Luis!" - desta vez, tinha decidido esticar o orcamento e instalar-me num lodge dentro do parque, isto e, no meio da selva. Deixo de ser Luis para ser Mr. Luis. Pelos vistos, os dolares ate conseguem mudar o nosso nome.

Uma jornada de jeep pela selva adentro preenche-me por completo depois de um dia de rafting divertido mas acessivel em qualquer parte do Mundo. Aqui, na escuridao de um cenario incognito, conduzido por alguem que nao conheco num jeep que guincha entre buracos e enormes charcos, no reino do tigre, estou de novo sozinho comigo.. Cada vez penetramos mais naquela densidade, sem falar. Ele nao fala ingles. Passam kilometros e estou longe de qualquer orientacao, seguranca, voz.

De repente, a selva abre-se numa enorme planicie. Os fracos farois nao sao suficientes para disfarcar a imensa escuridao onde estou. Que Mundo distante. E esta frio, no vento que entra pelas janelas abertas e me abanam o cabelo. Penso no que acontece se o motor falhar. Provavelmente um tigre vira curioso em busca da sua refeicao. Esta noite escura. Eles andam ali, escondidos por detras da luz dos nossos farois.

De repente, um vulto na noite. O carro abranda. O condutor manda-me sair. Ouco agua. Vejo um rio. Uma canoa. Olho em volta antes de sair do jeep. Sei la o que me observa na escuridao. Duas trocas de palavras em nepales e metem-me na canoa. Entro a medo. So ouco a corrente do rio e o suave fluir da embarcacao nas aguas escuras. Sou um personagem vivo num auto de Gil Vicente, guiado por um barqueiro silencioso atraves de um rio cheio de crocodilos. Quando chegamos a margem, salto para a noite escura. Comeco a duvidar do que faco ali e se fiz bem em responder aos chamamentos do homem que me esperava na estacao de autocarros. Dois farois acendem-se. Esta ali outro jeep.

"Welcome Sir!". Que alivio! O jeep tem o nome do hotel escrito. "Chitwan Jungle Lodge". Estou a salvo. Nunca estive em perigo. Estava tudo na minha cabeca. Ainda bem, pelo menos durante uma hora senti-me um intrepido explorador vitoriano.

Que ingenuo! Que feliz!

Rinocerontes e elefantes na madrugada

Sou recebido no lodge com um tratamento que nao se adequa ao que tenho recebido ate agora. O gerente recebe-me e explica-me o que posso fazer nos dias seguintes: passeios de canoa, safaris de elefante, caminhadas na selva. A minha volta, os clientes reunem-se em mesas e bebem um copo antes da chamada para jantar. Fui o ultimo a chegar. Toda a gente sabe quem e o "Louis" que chegou tres horas depois do suposto porque foi mimado e quis vir de rafting em vez de autocarro. Mas e tudo gente educada, simpatica, em camaradagem. Um quadro de argila tem o nome de cada "guest" e o seu plano de actividades para o dia seguinte. Todo o hotel e construido em madeira, iluminado a meia-luz por um gerador proprio. Cada quarto e uma pequena cabana de madeira, sem luz electrica. Um pequeno refugio no coracao da selva, onde passarei as proximas duas noites. Quando me deito depois de intensas e interessantes conversas a volta de uma fogueira improvisada impulsionada por uma alema (numa crowd internacional maioritariamente de ferias, o que trouxe alguma diversidade as relacoes que tinha vindo a manter), todos os barulhos da selva penetram atraves da madeira e embalam o meu sono profundo, perdido num lugar sem mapa e ilimunado por um pequeno candeeiro a querosene.

De madrugada, todo o conforto de um cha quente antes de me encaminharem para uma plataforma de 5 metros de altura. Ouco passos pesados. Um elefante. Dois. Tres. Somos doze pessoas em quatro elefantes e a plataforma serve para subirmos para o seu dorso. Pela primeira vez vejo um elefante asiatico. E muito menor, mais elegante, menos elefante do que o africano. Mas ainda assim enorme, macico, animal. Um animal formidavel. Penetramos na selva no seu passo ritmado, acompanhados apenas pelo silencio da madrugada. Esta quase escuro. Nao falamos. Os nossos olhos perscrutam extasiados as abertas na vegetacao. Onde esta o tigre? Onde esta o rinoceronte?

Algo se agita. Olhamos. Nao. Era so mais uma copa de arvore que o nosso elefante devora. Dez agitacoes e alguns kilometros depois, nao e um elefante a mover a vegetacao. E um rinoceronte. Esta mesmo ali ao nosso lado, enorme, assustador, primitivo, selvagem. Estou sentado num elefante perante um rinoceronte asiatico selvagem numa selva perdida do Nepal. O silencio sepulcral que domina os passageiros do elefante estende-se ao cerebro, ao resto do corpo. O momento e paralisante, intenso, unico. O Sol nasce por entre a vegetacao. Aqui, as altas arvores de trinta metros dao lugar a uma vegetacao amarelada, perfeita para o rinoceronte dissimular. Ou o tigre. Mas, na restante hora, tudo o que vemos sao veados fugidios e a vegetacao a acordar para mais um dia.

Durante o resto da manha, passa-se o pequeno-almoco, conheco gente, troco impressoes. Aqui, os turistas sao diferentes. Tem mais dinheiro, empregos de carreira, conversas mais mundanas. De certa forma, em Chitwan encontro as pessoas mais interessantes da viagem, gente empenhada numa troca de impressoes intensa, profunda, informada. Comprometida. A turba que viaja a volta do Mundo e mais relaxada, descontraida. Gosto dos dois Mundos.

Temos programado um passeio de canoa. Deixamo-nos vogar ao longo do rio, a medida que a vida animal se passeia nas margens e a colorida populacao local desafia as regras do parque e penetra nos seus limites, para se banhar na agua fresca. Aqui, nao ha crocodilos. Vimo-los mais a frente, num charco lamacento, silenciosos, cinicos, sonolentamente a procura do seu almoco. O dia passa devagar, ao ritmo da selva. Chega o almoco. Depois, reunimo-nos em volta de um enorme elefante e ouvimos explicacoes sobre o que o distingue do africano. Ouvimos como se amestra um elefante, compreendemos como sao bem tratados no seu cativeiro. Isso tira-me um certo peso da consciencia: o meu prazer derivara do cativeiro de um animal e isso deixara-me algo desconfortavel. Depois o ver ali, a meio metro de mim, solto e sem nada que o impedisse de me atacar com a sua enorme tromba, compreendo que o homem e o elefante trabalham em conjunto em Chitwan. Isso deixa-me descansado para o resto da tarde e para o safari seguinte onde nao vimos um unico animal selvagem mas compreendemos o que e o silencio da selva, antes do Sol se por.

Alias, quanto o enorme disco alaranjado inicia o final do seu ciclo descendente, sou eu que nao consigo silenciar as minhas emocoes. Estamos fora da vegetacao numa planicie com ervas apenas de dois metros. Como o elefante e maior do que isso, vejo como o sol desaparece la atras, enorme, limpido, astral. Quente. Asiatico. Longinquo. Inalcancavel. Meu.

Maoistas, apartheid, o campo ingles e as tribos africanas

Regressamos ja a noite vai escura. Todo o lodge se reune junto ao bar, em animadas conversas de fim de tarde. Partilho cervejas com um ingles nascido no Zimbabue e emigrado para Joanesburgo primeiro e para Nottingham depois. Uma canadiana de Toronto que acabara de ser despedida do seu ambicioso emprego e viaja pela Asia. Um nepales que acompanha um grupo de japoneses no seu tour pelo Nepal. Um investment banker ingles, com experiencia tantos nos escritorios da city como nos pubs de Sidney durante a sua volta ao Mundo de anos idos. E um jardineiro pre-reformado dos arredores de Oxford.

Durante toda a minha vida, nunca tivera uma conversa tao absorvente, rica, diversa, equilibrada. Passam cervejas atras de cervejas, caras serias e gargalhadas. Passa a chamada para jantar, passa o jantar, passa o cha, passa o cafe, passa a hora em que os restantes guests se vao deitar. Passa tudo mas nos estamos ali fixos uns nos outros, partilhando as nossas vidas. Ouco em primeira mao o relato vivo do fim do apartheid, absorvo a opiniao espantosamente culta de um nepales letrado sobre os dias historicos que agitam o seu pais, conheco as sensacoes de uma canadiana durante meses na China rural, apercebo-me dos desejos e motivacoes de um ingles de 60 anos que caminhou durante 20 dias de trekking no Evereste. Discutimos o porque do sub-desenvolvimento de Africa, de como o seu sistema tribal nao permite a sua governacao, discutimos as vidas vertiginosas de Londres, a formacao da Uniao Europeia, o lugar que Portugal ali ocupa, as relacoes entre o Canada e os EUA, entre a Africa do Sul e o resto do Mundo. Falamos de tudo.

Quando abandonamos o bar ja cambaleantes, sabemos que na escuridao algo acompanha com o olhar o nossos passos fugidios em direccao as cabanas. Nao vimos o tigre em Chitwan, mas vimos muito mais. E, seja como for, sabemos que ele esta la, a espreita. No fundo, talvez tenhamos um pacto tacito: ele nao se mostra, mas tambem nao agride. Estamos no seu Reino.

So isso, ja me preenche por completo, antes da minha partida, do meu regresso a vida humana e a estrada poeirenta onde o autocarro me recolhe em direccao ao regresso a Kathmandu.

3 comments:

Lorena said...

Muito intenso esse relato sobre o teu Sol.

Esta sexta fui jantar a um restaurante Nepalês, para os lados da Infante Santo, de seu nome Himchuli. Foi engraçado voltar a cheirar tais iguarias e tentar trocar algumas palavras com os empregados, tarefa esta que foi bastante complicada devido ao seu rudimentar Português.

Lembrei-me então, mais uma vez, da tua viagem e das dificuldades que deves ter em comunicar por aí.

Abraços e continua com o bom trabalho

Anonymous said...

Dava um rim e um pulmão para me meter numa máquina do tempo e para ter dito que sim quando me perguntas-te:
e tu canetas? Não queres vir comigo?

Anonymous said...

"Estou sentado num elefante perante um rinoceronte asiatico selvagem numa selva perdida do Nepal"

Dizer o quê...