Thursday, November 30, 2006
Primeiras Impressões da Terra
Fala-se muito de muita coisa. Então em música, todos os dias aparece alguém novo, algum teenie idol, algum ex-criminoso a debitar rimas, alguma banda de garagem inglesa ou algum australiano com uma viola acústica.
Depois, aparecem aqueles de quem não se fala. Há que gostar de uns para se saber dos outros, e por aí fora, até se descobrir música pouco divulgada que nos faz levantar do ar.
No meio disto, alguns vendem milhões e outros nem saem do anonimato. Alguns, sem voz, são aclamados por metade do Mundo e outros, génios, ficam para sempre confinados ao seu reduzido círculo de ouvintes. Ou vice-versa
Qualidade e vendas nem sempre são sinónimos. Geralmente nem são.
E independentemente disto e de tudo o resto, há um CD perfeito chamado First Impressions of Earth dos The Strokes. Já tem uns meses, não estou a dar novidade a ninguém.
Este cd é a obra de arte mais perfeita que alguém deu ao Mundo em 2006.
No meu 2006, há o antes e o depois disto. Este CD anda sozinho. Tem asas. É uma bomba de energia a rebentar em cada repeat. Demoro menos cinco minutos num percurso de vinte, quando o venho a ouvir a caminho de casa. Quase que voo.
E de cada vez que ouço, não resisto e volto a perguntar-me o que me pergunto há meses, sem encontrar a resposta: como é que alguém fez uma coisa assim?
Wednesday, November 29, 2006
Pegadas na lama escura
I.
Esta pessoa que vemos na fotografia chama-se António de Almeida Santos e foi Presidente da Assembleia da República Portuguesa entre 1995 e 2002. Hoje, é presidente do partido que forma o nosso Governo e que detém a maioria dos assentos de deputado na Assembleia da República.
Recordemos alguma da Legislação do foro exclusivo da Assembleia da República, tal como é definida no site do Governo Português:
"Regimes de eleições e referendo; cidadania e símbolos nacionais; regimes do estado de sítio e de emergência; organização e funcionamento da Defesa Nacional, das forças de segurança, e dos Serviços de Informação; restrições a direitos dos militares e agentes das forças de segurança; regime geral do orçamento do Estado, das regiões e das autarquias"
Recordemos agora, muito resumidamente, alguns artigos que definem a Assembleia da República, tal como estão apresentados na Constituição da República Portuguesa. Segundo esse documento que rege o nosso Estado, "a Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses" (Artigo 147º), e "os Deputados representam todo o país " (Artigo 152º).
Sobre o mesmo tema, o site da Assembleia da República indica que "compete ao Presidente [da Assembleia da República] representar a Assembleia, presidir à Mesa, dirigir os trabalhos parlamentares, fixar a ordem do dia, depois de ouvir a Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares, assinar os Decretos e outros documentos expedidos em nome da Assembleia da República e superintender na sua administração.
Ainda nesse site, vale a pena, antes de nos debruçarmos sobre o cerne deste artigo, recordar as palavras do actual Presidente da Assembleia, Jaime Gama, sobre o órgão a que preside: "A Assembleia da República é o coração da vida política e a alma da própria democracia, a casa representativa do povo português, eleita por todos nós, cidadãs e cidadãos de Portugal"
II.
Feita a apresentação ao ex-Presidente e explicitada que está a função e o impacto na vida de todos os portugueses do órgão a que durante sete anos presidiu, analisemos com atenção as palavras com que responde, numa entrevista de 29 de Novembro de 2006 à revista "Sábado", à pergunta As pessoas pedem-lhe cartas de recomendação?:
"É verdade. Confesso que uma vez por outra ainda meto cunhas, mas não tanto agora. Era fácil dizer: tenha paciência, mas cunhas eu não meto. Mas isso é desumanidade, porque ali há uma aflição e eu tenho possibilidade de a resolver."
Esta afirmação é tão enorme e despudoradamente aberrante, que eu não só não sei por que parte da sua alarvidade começar a dissecá-la, como também não creio que esteja a honrar a inteligência de Leitor algum ao tentar explicar-lhe a minha opinião sobre a mesma, já que estas palavras falam por si.
No entanto, pensemos em conjunto:
Haverá algo mais anti-democrático do que meter uma cunha? Haverá algo mais desprestigiante para uma instituição pública do que existirem cunhas perpetradas por altos membros do seu aparelho? Haverá algo tão despudorado como alguém eleito pela unanimidade dos deputados à Assembleia da República admitir que o faz? Haverá algo mais egocênctrico do que justificar uma cunha metida por abuso de poder, com o desejo de resolver uma aflição?
Haverá algo mais idiota do que ter sido Presidente da Assembleia da República durante sete anos e ainda achar que resolver o problema de alguém com uma cunha não vai causar um desequilíbrio no sistema - em qualquer sistema - prejudicando mais pessoas do que a que se ajudou?
III.
Haverá alguém, para além de mim, que se preocupe com isto?
Monday, November 27, 2006
Saturday, November 25, 2006
Obrigado!
Viajar sozinho é, para todos os efeitos, uma experiência pessoal. De certa forma, e apesar das pessoas que se conhece e com quem se partilham Momentos, a memória da viagem será sempre individual, solitária. Isto é um grande perigo, pois põe em causa a Sobrevivência da viagem, que fica tenuamente ligada à frágil memória da pessoa que a viveu.
Ao passar para este blog os meus dias, e ao ver como era acompanhado por quem me lia, encontrei uma forma de legitimar a minha viagem, de a tornar real, na medida em que os Leitores eram a prova palpável de que eu estava a viajar e a garantia de que essa viagem nunca se perderia nos corredores incertos da memória.
E, quanto mais comentários lia, mais vontade tinha de partilhar, pois sabia que estava a viajar acompanhado. Os meus Leitores foram, para mim, um companheiro tão amigável e tão exigente como se estivessem a viajar comigo. Talvez por isso tenha, por eles, passado tantas horas em cafés de internet moribundos, escrevendo furiosamente em teclados hebraicos duros como pedra. Talvez por isso tenha cogitado mentalmente frases que resumissem o que sentia, durante o dia. Por vezes, dava por mim a sentir em frases; isto é, ao mesmo tempo que sentia, transformava os sentimentos em palavras.
Se bem que eu o fizesse com o simples propósito de proporcionar ao meu Leitor, mais tarde, uma leitura o mais aproximada possível dos meus sentimentos, esta é uma experiência curiosa e muito mais importante do que parece: colocar sentimentos em palavras é o maior desafio e o maior constrangimento da comunicação humana. Jamais serão as palavras suficientes para exprimir o que pensamos. Portanto, quanto mais tentarmos, melhor nos compreenderemos mutuamente.
Seja como for, porque foram a minha motivação e a minha crítica, dirijo a palavra - pela primeira vez neste blog, que sempre foi dirigido ao Abstracto - directamente aos meus Leitores durante esta viagem: Obrigado!
Deu-me imenso gozo ler os vossos comentários e, sem eles, facilmente teria perdido a motivação para escrever. Apesar de nunca ter respondido directamente a ninguém, procurei incorporar os vossos comentários, perguntas e expectativas nos meus textos seguintes. Daí que estes textos também sejam vossos.
Esta lenga-lenga parece totalmente absurda mas, dado que o blog é meu, resvervo-me o direito de estar aqui com lamechiches até me apetecer. Se o faço, é porque sinto mesmo que o vosso acompanhamento foi importante e quero deixar-vos isso claro.
Foi muito divertido ler desconhecidos gostarem do que eu escrevo e, ainda mais, saber que agradei aos meus amigos.
Vou continuar com a política de não responder aos comentários um a um, mas ao/à defensor/a ofendido/a dos hippies, gostava de lembrar que não é por uma pessoa me salvar a vida que mudo a minha opinião sobre ela: na verdade, um Ser Humano salvar a vida a outro é um acto normal e obrigatório, que não me merece louvor especial. O inverso é que merece crítica.
E agora, maisde1000vozes volta a Lisboa. Os que continuarem a ler, não esperem muito disto: servirá, como sempre, para descarregar Energia.
Wednesday, November 22, 2006
Clubbin' in Beijing
Big Mac
Estou em Pequim durante um dia, à espera do meu voo para Lisboa. Um dia em Pequim. Chego às oito da manhã, o dia cai as seis da tarde. 15 milhões de pessoas, 10 horas. Um milhão e meio de pessoas por hora.
Realmente, estou mesmo só de passagem.
Depois de cidades relativamente acolhedoras como Kathmandu e Lhasa, sou apanhado desprevenido pela dimensão desumana (ironicamente, cheia de humanos) de Pequim. Como primeiro acto da minha jornada, entro num MacDonald’s. Lembro-me do meu amigo Lorena escrever no seu brilhante blog que, ao terminar o seu périplo de 3 meses pela Ásia e devorar um BigMac, sentir que essa sim era uma refeição verdadeiramente gourmet, depois das iguarias exóticas do Oriente. Na altura, compreendi o que escrevia mas não penetrei ao certo no significado da frase. Pareceu-me um divertido malabarismo literário. Não era.
Aquele Big Mac sabe-me a carne fresca, sabe-me a casa, sabe-me a metrópole, a avenidas com trânsito ordenado, a arranha-céus, a roupas caras, a multinacionais luzindo em cartazes de neon, a vidas agitadas, a mochilas de escola, a sobretudos compridos, a centro comercial, a passos apressados, a livros em inglês, a taxímetros que funcionam, a horários de autocarro, a calças de ganga, a sábado de manhã.
O MacDonald’s está cheio. As lojas, os transportes e as largas avenidas de oito faixas também. É bem cedo de manhã mas os 15 milhões de pessoas não despertam para um dia de descanso: despertam para o consumo, para o movimento, para uma Vida que se sente a respirar, nesta enorme metrópole. Se não fossem os sinais em chinês e os olhos em bico, poderia estar em qualquer grande metrópole desenvolvida do Mundo. É certo que cada cidade tem as suas características únicas e essenciais, a sua impressão digital que a distingue das outras. Porém, o primeiro olhar de alguém que chega da vastidão tibetana não procura logo o Único: começa por procurar o familiar. Os passeios limpos, o cheiro fresco a manhã metropolitana, os sinais de trânsito, os peões na passadeira, as montras familiares, os prédios enormes e os vidros que reflectem carros reluzentes que passam lá em baixo na estrada. Pequim é uma Cidade do Mundo. Dez minutos bastam para compreendê-lo.
Idealogias
Centro a minha exploração no que, para mim, é o mais vivo de qualquer cidade: a sua praça principal. Recordo o nome Tiananmen da memorável imagem do jovem estudante que, em protesto contra as restrições das liberdades individuais da China de 1989 (a data aqui é irrelevante, pois o protesto é tão actual hoje como há há 17 anos), se colocou diante de um tanque em movimento no meio da praça. Vivi durante muitos anos fascinado por esse herói anónimo que se lança voluntariamente para uma batalha desigual frente a um tanque de 10 toneladas, até ler, algures, um pequeno parágrafo onde alguém louvava o condutor do tanque.
O Mundo vê na imagem o Homen Livre contra a Máquina Opressora, mas esquece-se do militar que conduzia essa máquina que, apesar das ordens de avançar, não resiste à sua Humanidade e trava abruptamente quando o seu jovem conterrâneo se coloca em rota de colisão com a máquina assassina que conduz. Também ele, o segundo herói dessa imagem, terá desaparecido, provavelmente, nos corredores do terror chinês.
Estes e outros pensamentos me percorrem enquanto me deixo embasbacar pela enormidade da praça. É um espaço alarve, frio, cinzento. Terrível. Edifícios austeros decoram as suas extremidades e espalham-se inclusivamente pelo meio da praça, guardados por uma infinidade de guardas primorosamente fardados, nas suas expressões sérias. Que tristes! Tristes vidas, as dos guardas e soldados, empedradas marionetas de um regime obsoleto.
Diz Maruja Torres no seu magistral relato de um périplo pela América Latina, Amor América, que “No hay nada más absurdo que una frontera, ni nadie mas idiota que el tipo uniformado que se siente importante porque cree que divide el mundo al exigir un papel.”.
Não há nada mais absurdo do que uma praça principal com centenas de soldados armados, nem ninguém mais idiota do que o tipo uniformizado que se sente importante porque crê que é respeitável ao exigir ordem à força da arma que traz ao ombro.
Eu, cidadão orgulhosamente livre de um país liberal, olho com escárnio para aquelas figuras tristes, dizendo-lhes, na linguagem universal da mente: “a mim não me metes medo nem impões respeito; a mim fazes-me pena e provocas-me gargalhadas de indiferença”.
Que livre me sinto ali no meio daquela opressão socialista, rodeado pelas bandeiras chinesas reverencialmente guardadas, mirado constantemente pelos olhos aparentemente benevolentes de Mao Zedong, um dos maiores assassinos da história, cujo enorme retrato está pendurado numa das extremidades da praça. Mesmo por entre todo o burburinho económico das suas enormes avenidas, roupas caras, pessoas bem sorridentes e empresas de todo o Mundo que ali se estabelecem, a China é orgulhosamente socialista, opressora, castradora. A Praça da Tiananmen, palco vivo e efeverscente de amores e desamores, primeiros passos e trambolhões, visitas turísticas e piqueniques, bicicletas e papagaios de papel, é, ainda hoje perigosamente ideológica, esmagadora e anónima. Triste. Arcaica.
Ridícula.
A Cidade Proibida
Depois da Procura do passado em Lhasa, em Pequim desejo voltar à busca do presente. Porém, ecoam-me na memória os passos d’”O Último Imperador” nos pátios desertos da Cidade Proibida e, blasfemando contra Bertolucci pelo realismo com que filma esse espaço monumental, decido que não posso sair de Pequim sem ver o Palácio das maiores e mais poderosas dinastias chinesas de séculos idos, mesmo que para isso tenha de abdicar da continuação das minhas deambulações pela enorme e real metrópole que é a Pequim do século XXI.
Mesmo tendo visto o filme, não estava preparado para algo tão grande em espaço e tão sublime em beleza. A Cidade Proibida é uma sucessão de pátios muralhados, gigantescos, rodeados de templos e palácios. Após cada pátio, outro, como um sistema de comportas de água. Deixo-me assim derivar naquele sentido único, imaginando que sou uma rolha de cortiça no canal do Panamá: flutuo no primeiro pátio, vou até às portas do segundo, passo para lá, flutuo no segundo..e deixo-me ir, de pátio em pátio, de templo em templo, de memória em memória, de passo em passo, até ser só mais um pequeno chinesinho rodeado de eunucos. Até ser só um último imperador.
Estou em Pequim durante um dia, à espera do meu voo para Lisboa. Um dia em Pequim. Chego às oito da manhã, o dia cai as seis da tarde. 15 milhões de pessoas, 10 horas. Um milhão e meio de pessoas por hora.
Realmente, estou mesmo só de passagem.
Depois de cidades relativamente acolhedoras como Kathmandu e Lhasa, sou apanhado desprevenido pela dimensão desumana (ironicamente, cheia de humanos) de Pequim. Como primeiro acto da minha jornada, entro num MacDonald’s. Lembro-me do meu amigo Lorena escrever no seu brilhante blog que, ao terminar o seu périplo de 3 meses pela Ásia e devorar um BigMac, sentir que essa sim era uma refeição verdadeiramente gourmet, depois das iguarias exóticas do Oriente. Na altura, compreendi o que escrevia mas não penetrei ao certo no significado da frase. Pareceu-me um divertido malabarismo literário. Não era.
Aquele Big Mac sabe-me a carne fresca, sabe-me a casa, sabe-me a metrópole, a avenidas com trânsito ordenado, a arranha-céus, a roupas caras, a multinacionais luzindo em cartazes de neon, a vidas agitadas, a mochilas de escola, a sobretudos compridos, a centro comercial, a passos apressados, a livros em inglês, a taxímetros que funcionam, a horários de autocarro, a calças de ganga, a sábado de manhã.
O MacDonald’s está cheio. As lojas, os transportes e as largas avenidas de oito faixas também. É bem cedo de manhã mas os 15 milhões de pessoas não despertam para um dia de descanso: despertam para o consumo, para o movimento, para uma Vida que se sente a respirar, nesta enorme metrópole. Se não fossem os sinais em chinês e os olhos em bico, poderia estar em qualquer grande metrópole desenvolvida do Mundo. É certo que cada cidade tem as suas características únicas e essenciais, a sua impressão digital que a distingue das outras. Porém, o primeiro olhar de alguém que chega da vastidão tibetana não procura logo o Único: começa por procurar o familiar. Os passeios limpos, o cheiro fresco a manhã metropolitana, os sinais de trânsito, os peões na passadeira, as montras familiares, os prédios enormes e os vidros que reflectem carros reluzentes que passam lá em baixo na estrada. Pequim é uma Cidade do Mundo. Dez minutos bastam para compreendê-lo.
Idealogias
Centro a minha exploração no que, para mim, é o mais vivo de qualquer cidade: a sua praça principal. Recordo o nome Tiananmen da memorável imagem do jovem estudante que, em protesto contra as restrições das liberdades individuais da China de 1989 (a data aqui é irrelevante, pois o protesto é tão actual hoje como há há 17 anos), se colocou diante de um tanque em movimento no meio da praça. Vivi durante muitos anos fascinado por esse herói anónimo que se lança voluntariamente para uma batalha desigual frente a um tanque de 10 toneladas, até ler, algures, um pequeno parágrafo onde alguém louvava o condutor do tanque.
O Mundo vê na imagem o Homen Livre contra a Máquina Opressora, mas esquece-se do militar que conduzia essa máquina que, apesar das ordens de avançar, não resiste à sua Humanidade e trava abruptamente quando o seu jovem conterrâneo se coloca em rota de colisão com a máquina assassina que conduz. Também ele, o segundo herói dessa imagem, terá desaparecido, provavelmente, nos corredores do terror chinês.
Estes e outros pensamentos me percorrem enquanto me deixo embasbacar pela enormidade da praça. É um espaço alarve, frio, cinzento. Terrível. Edifícios austeros decoram as suas extremidades e espalham-se inclusivamente pelo meio da praça, guardados por uma infinidade de guardas primorosamente fardados, nas suas expressões sérias. Que tristes! Tristes vidas, as dos guardas e soldados, empedradas marionetas de um regime obsoleto.
Diz Maruja Torres no seu magistral relato de um périplo pela América Latina, Amor América, que “No hay nada más absurdo que una frontera, ni nadie mas idiota que el tipo uniformado que se siente importante porque cree que divide el mundo al exigir un papel.”.
Não há nada mais absurdo do que uma praça principal com centenas de soldados armados, nem ninguém mais idiota do que o tipo uniformizado que se sente importante porque crê que é respeitável ao exigir ordem à força da arma que traz ao ombro.
Eu, cidadão orgulhosamente livre de um país liberal, olho com escárnio para aquelas figuras tristes, dizendo-lhes, na linguagem universal da mente: “a mim não me metes medo nem impões respeito; a mim fazes-me pena e provocas-me gargalhadas de indiferença”.
Que livre me sinto ali no meio daquela opressão socialista, rodeado pelas bandeiras chinesas reverencialmente guardadas, mirado constantemente pelos olhos aparentemente benevolentes de Mao Zedong, um dos maiores assassinos da história, cujo enorme retrato está pendurado numa das extremidades da praça. Mesmo por entre todo o burburinho económico das suas enormes avenidas, roupas caras, pessoas bem sorridentes e empresas de todo o Mundo que ali se estabelecem, a China é orgulhosamente socialista, opressora, castradora. A Praça da Tiananmen, palco vivo e efeverscente de amores e desamores, primeiros passos e trambolhões, visitas turísticas e piqueniques, bicicletas e papagaios de papel, é, ainda hoje perigosamente ideológica, esmagadora e anónima. Triste. Arcaica.
Ridícula.
A Cidade Proibida
Depois da Procura do passado em Lhasa, em Pequim desejo voltar à busca do presente. Porém, ecoam-me na memória os passos d’”O Último Imperador” nos pátios desertos da Cidade Proibida e, blasfemando contra Bertolucci pelo realismo com que filma esse espaço monumental, decido que não posso sair de Pequim sem ver o Palácio das maiores e mais poderosas dinastias chinesas de séculos idos, mesmo que para isso tenha de abdicar da continuação das minhas deambulações pela enorme e real metrópole que é a Pequim do século XXI.
Mesmo tendo visto o filme, não estava preparado para algo tão grande em espaço e tão sublime em beleza. A Cidade Proibida é uma sucessão de pátios muralhados, gigantescos, rodeados de templos e palácios. Após cada pátio, outro, como um sistema de comportas de água. Deixo-me assim derivar naquele sentido único, imaginando que sou uma rolha de cortiça no canal do Panamá: flutuo no primeiro pátio, vou até às portas do segundo, passo para lá, flutuo no segundo..e deixo-me ir, de pátio em pátio, de templo em templo, de memória em memória, de passo em passo, até ser só mais um pequeno chinesinho rodeado de eunucos. Até ser só um último imperador.
Quando saio, ainda imaginando ouvir o eco dos meus passos contra paredes frias da muralha, sou apenas o último português e os eunucos são turistas, tão numerosos quanto o eram os serventes dos imperadores Ming.
Clubbin’
Como insisto em andar a pé para todo o lado, regresso ao hostel onde tinha deixado a mochila de manhã, exausto. Tenho atrás de mim muitos quilómetros de caminhada num só dia. Caio no sofá do hall mas lembro-me de arrastar uma garrafa de cerveja antes da queda.
São conhecidas as propriedades sociológicas e químicas de uma garrafa de alcool sobre uma mesa. Em menos de nada, eu e os ocupantes dos restantes sofás somos um só e, passada a quarta cerveja partilhada, duas francesas não têm dificuldade nenhuma em arrastar-me a mim e a um argentino para uma noitada entre alunos de arquitectura franceses a estagiar em Pequim.
Descubro um bar urbano e universal, cheio de gente expatriada de todo Mundo. Descubro cocktails inebriantes, drum ‘n bass inovador, luzes fluorescentes. Descubro a dança, o calor das horas que passam, os rr’s afrancesados da Amandine.
Passam as horas e as bebidas, os sons e os calores, passam as luzes à minha volta, dançando comigo e eu com o espaço, movendo-me descomprometido ao som do momento, entre cá e lá, entre encarnado-vivo e amarelo fluorescente.
Uma delas olha-me com ar divertido durante longos segundos e depois segreda-me: “When, in two days, they at work ask you how was your weekend, you can answer” e faz um pequeno silêncio, arregalando os olhos castanhos-amêndoa, “”I was dancin’ in Beijing!””
Sorrio-lhe deleitado com a ideia, tão simples mas tão real. A amiga, que ouvira a conversa pelo canto do ouvido, puxa-me e diz: “Or even better: I was clubbin’ in Beijing!””
Olho-as meio rodopiante, entre Pequim e Paris, num enorme sorriso, enquando o remoinho dos nossos corpos inebriados varre a pista em espiral. Perdemos a noção do tempo e da linguagem, e deixamos as horas passar, por entre os nossos corpos inquietos, as luzes densas, o ritmo do baixo e o fresco calor dos cocktails..
Quando, 24 horas depois, momentos antes de aterrar em Munique, - após de ter sobrevoado, num dia sem nuvens e numa perseguição constante do pôr-do-sol, a muralha da China, o deserto de Gobi, toda a Sibéria e as repúblicas da Ásia Central - fecho os olhos, reclino a cadeira e recordo as última noite da minha viagem, os derradeiros momentos orientais do meu périplo pela Ásia montanhosa e o formigueiro provocador do meu corpo inquieto, uma frase sobrepõe-se a qualquer pensamento; uma frase sobrepõe-se a qualquer antevisão do regresso a casa, qualquer expectativa, qualquer saudade, qualquer ansiedade, qualquer medo, qualquer obstáculo; qualquer adversidade.
Uma frase preenche-me a mente, penetra-me a alma, flui-me livre por todos os músculos cansados depois de três semanas na estrada, fortalece-me para o regresso a casa, para mais uma partida, para outro regresso e para quantas chegadas e partidas a minha vida me reservar:
I was clubbin’ in Beijing.
Clubbin’
Como insisto em andar a pé para todo o lado, regresso ao hostel onde tinha deixado a mochila de manhã, exausto. Tenho atrás de mim muitos quilómetros de caminhada num só dia. Caio no sofá do hall mas lembro-me de arrastar uma garrafa de cerveja antes da queda.
São conhecidas as propriedades sociológicas e químicas de uma garrafa de alcool sobre uma mesa. Em menos de nada, eu e os ocupantes dos restantes sofás somos um só e, passada a quarta cerveja partilhada, duas francesas não têm dificuldade nenhuma em arrastar-me a mim e a um argentino para uma noitada entre alunos de arquitectura franceses a estagiar em Pequim.
Descubro um bar urbano e universal, cheio de gente expatriada de todo Mundo. Descubro cocktails inebriantes, drum ‘n bass inovador, luzes fluorescentes. Descubro a dança, o calor das horas que passam, os rr’s afrancesados da Amandine.
Passam as horas e as bebidas, os sons e os calores, passam as luzes à minha volta, dançando comigo e eu com o espaço, movendo-me descomprometido ao som do momento, entre cá e lá, entre encarnado-vivo e amarelo fluorescente.
Uma delas olha-me com ar divertido durante longos segundos e depois segreda-me: “When, in two days, they at work ask you how was your weekend, you can answer” e faz um pequeno silêncio, arregalando os olhos castanhos-amêndoa, “”I was dancin’ in Beijing!””
Sorrio-lhe deleitado com a ideia, tão simples mas tão real. A amiga, que ouvira a conversa pelo canto do ouvido, puxa-me e diz: “Or even better: I was clubbin’ in Beijing!””
Olho-as meio rodopiante, entre Pequim e Paris, num enorme sorriso, enquando o remoinho dos nossos corpos inebriados varre a pista em espiral. Perdemos a noção do tempo e da linguagem, e deixamos as horas passar, por entre os nossos corpos inquietos, as luzes densas, o ritmo do baixo e o fresco calor dos cocktails..
Quando, 24 horas depois, momentos antes de aterrar em Munique, - após de ter sobrevoado, num dia sem nuvens e numa perseguição constante do pôr-do-sol, a muralha da China, o deserto de Gobi, toda a Sibéria e as repúblicas da Ásia Central - fecho os olhos, reclino a cadeira e recordo as última noite da minha viagem, os derradeiros momentos orientais do meu périplo pela Ásia montanhosa e o formigueiro provocador do meu corpo inquieto, uma frase sobrepõe-se a qualquer pensamento; uma frase sobrepõe-se a qualquer antevisão do regresso a casa, qualquer expectativa, qualquer saudade, qualquer ansiedade, qualquer medo, qualquer obstáculo; qualquer adversidade.
Uma frase preenche-me a mente, penetra-me a alma, flui-me livre por todos os músculos cansados depois de três semanas na estrada, fortalece-me para o regresso a casa, para mais uma partida, para outro regresso e para quantas chegadas e partidas a minha vida me reservar:
I was clubbin’ in Beijing.
Saturday, November 18, 2006
Luzes frias na madrugada, vapores quentes no infinito
Nao e necessaria muita modestia para admitir que nao consigo por em palavras o que e a paisagem do comboio que abandona a fria madrugada de Lhasa para se aventurar pelos Himalayas fora em direccao a Pequim.
Quando chego a plataforma de embarque, luzes bacas iluminam carruagens de um verde metalico, que desaparecem na no horizonte da estacao. Vapores quentes escorregam, vadios, pelas bocas dos passageiros que se apressam em direccao as suas respectivas carruagens, fundindo-se, sob a escassa claridade do dia que ainda nao nasceu, com os fumos dos cigarros que os oficiais de bordo fumam, antes de mais uma viagem. Impecaveis, fardados com densos sobretudos que enrijecem os seus troncos direitos, inalam uma ultima quente nicotina, antes de partirem em direccao ao coracao das montanhas, onde o oxigenio e escasso e fumar e proibido.
Como sempre, estou atrasado, e o frio e para mim uma dor distante, de quando acordei no meu gelado quarto em Lhasa. O calor das horas, do entusiasmo, do ar sufocante do taxi que me leva ate a estacao, consola os meus musculos gelados e, quando me sento a janela da carruagem-restaurante, o cha quente que me aquece as maos frias nao tem necessidade de confortar o resto do meu corpo aconchegado.
Nao sou o unico que se arrepia quando a enorme serpente de quinze carruagens se comeca a mover devagar e irrevogavelmente em direccao a capital da enorme China. Um frances com quem partilharei o quarto, as noites de conversa e as discussoes sobre as agonias da existencia olha igualmente pela janela e, sei-o, pensa tambem no sentido da vida a bordo. Ele, a sua mae, uma americana e uma mao-cheia de chineses ficarao o resto da tarde, cada um a sua janela, a meditar sobre sabe-se la que Verdade.
Nada e verdade num comboio em andamento. Enquanto penetramos no arido planalto tibetano, onde manadas enormes de potentes iaques pastam ate a imensidao do horizonte montanhoso, questiono-me sobre a inconsequencia de qualquer decisao a bordo. Enquanto troco impressoes sobre trivialidades, amor e literatura colombiana com os meus tres novos amigos, questiono-me sobre a solidao de qualquer acto naquele comboio em andamento.
Cada enorme montanha e deixada para tras pouco depois de aparecer, e torna-se apenas num ponto solitario num passado distante. O mesmo acontece aos cavalos selvagens, aos vales glaciares, ao pequeno pastor que luta contra a altitude e acena ao progresso que o ignora na sua passagem veloz pela planicie. Tudo fica para tras menos nos, peoes do destino voluntariamente condenados a uma existencia movel, onde tempo e espaco perdem a sua preponderencia. Sou parte de um corpo em movimento, que nao controlo e do qual nao posso escapar.
Apesar da libertacao da enorme planicie, do frio que imagino la fora enquanto mais um cha me aquece o corpo, das assustadoras montanhas que aparecem gigantescas na distancia, estou distante da liberdade. Nao posso ir para alem de uma determinada distancia limitada pelo metal do comboio, nao posso ir para alem de um sistema social criado pelo destino que junta os restantes passageiros na mesma jornada que eu. Em 48 horas num comboio, cabe-me uma parcela de um pequeno mundo novo, que ajudo a nascer e a sobreviver.
Os restantes passageiros tornam-se gradualmente no meu unico Mundo: sao os outros elementos de um pequeno e unico ecosistema que divaga pausadamente pela montanha acima. Ha uma total impotencia face ao destino - tudo o que faco, cada decisao que tomo, nao e totalmente independente. Estou num comboio do qual nao posso sair. Gradualmente, apercebo-me da minha inocencia, da minha impotencia, do ridiculo das minhas accoes: ha algo maior que as limita, uma entidade superior a mim, maior que as montanhas que agora desaparecem para dar lugar a uma infinita planicie coberta de neve e gelo: o Espaco. A Falta de Espaco.
Nessa tragica letargia, descontraio entre mais um cha, e aceito a minha impotencia, acabando por adorar o facto de que durante 48 horas nao tenho mais nenhuma responsabilidade para alem de viver e respirar. Mesmo que quisesse, nao poderia nem produzir nem decidir nenhuma accao radical que mudasse o que quer que fosse na minha vida e no Mundo. Entre Lhasa e Pequim, primeiro penetrando no mais remoto planalto do Mundo e depois cruzando o coracao da China industrial, vivo numa linha paralela ao Mundo real. Uma linha densa e metalizada.
Uma linha de comboio.
Enquanto os quilometros passam, a vida a bordo repete-se numa inconsequente rotina: ir ao quarto buscar algo, voltar a carruagem-restaurante, conversar com quem la esta, abandonar a mesa e ver a paisagem, fazer olhinhos a hospedeira, pedir uma refeicao, continuar a conversa, ler, fazer olhinhos a hospedeira, ir ao quarto buscar outra coisa qualquer, voltar a carruagem-restaurante, conversar com quem la esta, abandonar a mesa e ver a paisagem, pedir uma refeicao, continuar a conversa, fazer olhinhos a hospedeira, ler, pedir uma cerveja, fazer olhinhos a hospedeira, dizer boa noite as duas senhoras, pedir outra, discutir literatura com o frances, pedir outra, tentar falar chines com a hospedeira, pedir outra, discutir o sentido da vida com o frances, pedir outra, discutir politica com o frances, pedir outra, desistir de olhar para a hospedeira, voltar ao quarto, acabar a ultima cerveja, ler, dormir, acordar e repetir tudo de novo.
E nos intervalos, reflectir sobre tudo. No comboio que so para quatro vezes em 48 horas em cidades chinesas anonimas mas com mais habitantes que o meu pais, uso o tempo paralelo para ordenar as minhas ideias, ler o que nao leio durante o resto do ano, comover-me - quase - com as vistas intocadas que vejo da janela. A linha que une Lhasa a Golmud, durante as primeiras 12 horas, e a mais alta do Mundo e atravessa territorios que o homem nao habita. Enquanto o meu olhar se debruca pelo horizonte, penso no privilegio de ali estar, a atravessar todo o Tibete, o Tibete remoto, distante, frio e desumano, o Tibete virgem e desabitado, apenas desafiado pela poderosa maquina do meu comboio, que me protege e me transporta, para longe, para muito longe, sem parar, sem se queixar, sem interromper o ritmado passar das horas sobre os carris, ate ao Sol se por, ate se levantar, ate se por de novo, ate se levantar de novo, alaranjando finalmente sob a poluicao dos suburbios de Pequim.
Estou eu e mais 1000 passageiros. Sou mais um dentro daquela maquina que nos transporta cada um rumo a sua vida real, mais um passageiro anonimo numa linha premeditada.
Depois do frio planalto tibetano, das escuras noites dos Himalayas, do Norte da China e de muitas relacoes criadas ao sabor do tempo, o comboio abranda pausadamente as oito da manha do terceiro dia, e aparecem os primeiros predios, na manha baca e escurecida. Com o passar dos minutos, a serprente reduz a sua violenta marcha para um desolado trote. Guinchando numa estafada agonia, para finalmente, exausta, fria, massiva, sob as arcadas geladas de uma movimentada estacao.
Chegamos a Pequim.
Quando chego a plataforma de embarque, luzes bacas iluminam carruagens de um verde metalico, que desaparecem na no horizonte da estacao. Vapores quentes escorregam, vadios, pelas bocas dos passageiros que se apressam em direccao as suas respectivas carruagens, fundindo-se, sob a escassa claridade do dia que ainda nao nasceu, com os fumos dos cigarros que os oficiais de bordo fumam, antes de mais uma viagem. Impecaveis, fardados com densos sobretudos que enrijecem os seus troncos direitos, inalam uma ultima quente nicotina, antes de partirem em direccao ao coracao das montanhas, onde o oxigenio e escasso e fumar e proibido.
Como sempre, estou atrasado, e o frio e para mim uma dor distante, de quando acordei no meu gelado quarto em Lhasa. O calor das horas, do entusiasmo, do ar sufocante do taxi que me leva ate a estacao, consola os meus musculos gelados e, quando me sento a janela da carruagem-restaurante, o cha quente que me aquece as maos frias nao tem necessidade de confortar o resto do meu corpo aconchegado.
Nao sou o unico que se arrepia quando a enorme serpente de quinze carruagens se comeca a mover devagar e irrevogavelmente em direccao a capital da enorme China. Um frances com quem partilharei o quarto, as noites de conversa e as discussoes sobre as agonias da existencia olha igualmente pela janela e, sei-o, pensa tambem no sentido da vida a bordo. Ele, a sua mae, uma americana e uma mao-cheia de chineses ficarao o resto da tarde, cada um a sua janela, a meditar sobre sabe-se la que Verdade.
Nada e verdade num comboio em andamento. Enquanto penetramos no arido planalto tibetano, onde manadas enormes de potentes iaques pastam ate a imensidao do horizonte montanhoso, questiono-me sobre a inconsequencia de qualquer decisao a bordo. Enquanto troco impressoes sobre trivialidades, amor e literatura colombiana com os meus tres novos amigos, questiono-me sobre a solidao de qualquer acto naquele comboio em andamento.
Cada enorme montanha e deixada para tras pouco depois de aparecer, e torna-se apenas num ponto solitario num passado distante. O mesmo acontece aos cavalos selvagens, aos vales glaciares, ao pequeno pastor que luta contra a altitude e acena ao progresso que o ignora na sua passagem veloz pela planicie. Tudo fica para tras menos nos, peoes do destino voluntariamente condenados a uma existencia movel, onde tempo e espaco perdem a sua preponderencia. Sou parte de um corpo em movimento, que nao controlo e do qual nao posso escapar.
Apesar da libertacao da enorme planicie, do frio que imagino la fora enquanto mais um cha me aquece o corpo, das assustadoras montanhas que aparecem gigantescas na distancia, estou distante da liberdade. Nao posso ir para alem de uma determinada distancia limitada pelo metal do comboio, nao posso ir para alem de um sistema social criado pelo destino que junta os restantes passageiros na mesma jornada que eu. Em 48 horas num comboio, cabe-me uma parcela de um pequeno mundo novo, que ajudo a nascer e a sobreviver.
Os restantes passageiros tornam-se gradualmente no meu unico Mundo: sao os outros elementos de um pequeno e unico ecosistema que divaga pausadamente pela montanha acima. Ha uma total impotencia face ao destino - tudo o que faco, cada decisao que tomo, nao e totalmente independente. Estou num comboio do qual nao posso sair. Gradualmente, apercebo-me da minha inocencia, da minha impotencia, do ridiculo das minhas accoes: ha algo maior que as limita, uma entidade superior a mim, maior que as montanhas que agora desaparecem para dar lugar a uma infinita planicie coberta de neve e gelo: o Espaco. A Falta de Espaco.
Nessa tragica letargia, descontraio entre mais um cha, e aceito a minha impotencia, acabando por adorar o facto de que durante 48 horas nao tenho mais nenhuma responsabilidade para alem de viver e respirar. Mesmo que quisesse, nao poderia nem produzir nem decidir nenhuma accao radical que mudasse o que quer que fosse na minha vida e no Mundo. Entre Lhasa e Pequim, primeiro penetrando no mais remoto planalto do Mundo e depois cruzando o coracao da China industrial, vivo numa linha paralela ao Mundo real. Uma linha densa e metalizada.
Uma linha de comboio.
Enquanto os quilometros passam, a vida a bordo repete-se numa inconsequente rotina: ir ao quarto buscar algo, voltar a carruagem-restaurante, conversar com quem la esta, abandonar a mesa e ver a paisagem, fazer olhinhos a hospedeira, pedir uma refeicao, continuar a conversa, ler, fazer olhinhos a hospedeira, ir ao quarto buscar outra coisa qualquer, voltar a carruagem-restaurante, conversar com quem la esta, abandonar a mesa e ver a paisagem, pedir uma refeicao, continuar a conversa, fazer olhinhos a hospedeira, ler, pedir uma cerveja, fazer olhinhos a hospedeira, dizer boa noite as duas senhoras, pedir outra, discutir literatura com o frances, pedir outra, tentar falar chines com a hospedeira, pedir outra, discutir o sentido da vida com o frances, pedir outra, discutir politica com o frances, pedir outra, desistir de olhar para a hospedeira, voltar ao quarto, acabar a ultima cerveja, ler, dormir, acordar e repetir tudo de novo.
E nos intervalos, reflectir sobre tudo. No comboio que so para quatro vezes em 48 horas em cidades chinesas anonimas mas com mais habitantes que o meu pais, uso o tempo paralelo para ordenar as minhas ideias, ler o que nao leio durante o resto do ano, comover-me - quase - com as vistas intocadas que vejo da janela. A linha que une Lhasa a Golmud, durante as primeiras 12 horas, e a mais alta do Mundo e atravessa territorios que o homem nao habita. Enquanto o meu olhar se debruca pelo horizonte, penso no privilegio de ali estar, a atravessar todo o Tibete, o Tibete remoto, distante, frio e desumano, o Tibete virgem e desabitado, apenas desafiado pela poderosa maquina do meu comboio, que me protege e me transporta, para longe, para muito longe, sem parar, sem se queixar, sem interromper o ritmado passar das horas sobre os carris, ate ao Sol se por, ate se levantar, ate se por de novo, ate se levantar de novo, alaranjando finalmente sob a poluicao dos suburbios de Pequim.
Estou eu e mais 1000 passageiros. Sou mais um dentro daquela maquina que nos transporta cada um rumo a sua vida real, mais um passageiro anonimo numa linha premeditada.
Depois do frio planalto tibetano, das escuras noites dos Himalayas, do Norte da China e de muitas relacoes criadas ao sabor do tempo, o comboio abranda pausadamente as oito da manha do terceiro dia, e aparecem os primeiros predios, na manha baca e escurecida. Com o passar dos minutos, a serprente reduz a sua violenta marcha para um desolado trote. Guinchando numa estafada agonia, para finalmente, exausta, fria, massiva, sob as arcadas geladas de uma movimentada estacao.
Chegamos a Pequim.
Wednesday, November 15, 2006
Dias tibetanos
Uma manha no Palacio
Em Lhasa, seria capaz de passar uma boa temporada. Evidentemente nao o inverno todo, como fara um brasileiro que anda ha um ano as voltas de bicicleta pela China, mas umas boas semanas. Acontece que, como sempre, tenho muitos planos para pouco tempo, pelo que terei de desdobrar as minhas noites em tempo util de dia.
No segundo dia, subo o que me parece ser uma montanha pouco depois de acordar. Estou ainda meio ensonado, mas nao o suficiente para nao reparar que essa montanha e o gigantesco Palacio de Potala, que tem uma subida tao ingreme e inclinada ate a sua entrada, que me leva meia hora e meia duzia de conversas com outros destruidos turistas e peregrinos, ate chegar la acima. Uma senhora chinesa deve ter achado piada a minha cara de esforco e tem a simpatia de esperar por mim de 5 em 5 minutos, sorrindo-me quando eu a alcanco. Dado que o seu ingles e o mesmo que o de um mudo, deduzo que so me espera para me exibir a sua condicao fisica, pelo que apos a terceira espera deixo de lhe sorrir de volta. E a minha primeira inimiga na China. (Seja como for, a saida do palacio duas horas depois sorri-me com genuinidade e, no meu intimo, fazemos as pazes.)
O Palacio de Potala e tal como eu o sonhava: enorme, mistico, frio e riquissimo. E escuro, castanho, cor-de-vinho. E dourado, ardente. Tenho a sorte de nao ter um guia a empurrar-me por ali fora (o que muito prazer me da, ja que se tivesse vindo ate Lhasa por terra nao poderia andar pela cidade desacompanhado de um guia), por isso levo o meu tempo nos patios interiores rodeados de cortinas bordadas a ouro, nos terracos ventosos com vista para a cidade e para as montanhas, nas capelas recheadas de enormes figuras onde os fidelissimos peregrinos acendem as suas velas de manteiga, deixam as suas notas e murmuram as suas oracoes. Fiquei surpreendido com a religiosidade do local, uma vez que esperava que as autoridades chinesas tivessem mundanizado a visita ao Palacio. De facto, assim nao acontece, e se a mim me custa os olhos da cara para la entrar, aos tibetanos e oferecida nao so a entrada como tambem a total liberdade religiosa no local.
Isto transforma o Potala em mais uma experiencia budista do que numa visita cultural. Na verdade, deve ser um dos poucos sitios no Mundo onde peregrinos nomadas se prostram no chao perante tumulos de diamantes ou estatuas de ouro macico. Toda a decoracao me transporta para um mundo paralelo, mistico, oriental. Nada neste palacio se assemelha a algo que eu ja tenha visto nem sentido. E impressionante a riqueza das capelas e dos tumulos, face a elegante sobriedade dos aposentos dos sucessivos Dalai Lama (sendo "sucessivos" uma escolha de palavra totalmente desapropriada, uma vez que se trata sempre da mesma pessoa reencarnada). A cada passo que dou, escada de madeira que desco, obra que admiro ou incenso que cheiro, dou gracas por ter lido o extraordinario relato de Heinrich Harrer sobre a vida no Tibete genuino nos anos 50 deste seculo, nos seus "Sete Anos no Tibete", em que inclusivamente conta como se tornou tutor daquele que e o "actual" Dalai Lama. Nas minhas habituais deambulacoes mentais, imagino-me eu proprio frente ao Dalai Lama, numa das muitas salas onde ele passou os seus anos de infancia e primeira juventude, antes do exilio para a India. As salas estao tao acessiveis e bem preservadas, que da para sonhar acordado durante muitas horas no Palacio, viajando no tempo ate aos dias em que Lhasa era uma cidade independente, pequena, viva, isolada e - admitamos - altamente sub-desenvolvida.
Sem duvida sem o encanto desses dias, em que milhares de monges vagueavam reverenciais pelos patios e capelas do palacio, a visita de hoje ao Potala mantem-se uma experiencia muito viva, muito intensa e, mais do que isso, muito comovente: nao pode haver outra sensacao senao essa, quando ao olhar do enorme terraco de onde outrora o pequeno Dalai Lama olhava o seu povo com um telescopio, se avista hoje uma enorme e impessoal praca chinesa, numa provocacao obvia e desumana ao povo tibetano. Alias, ha outra sensacao possivel: furia. Mas aprendi com o budismo que devemos evita-la.
Licoes de Teologia
Depois do meu regresso habitual ao circuito do templo de Jokhang e de me deixar perder de novo pela Lhasa antiga, e hora de me meter num autocarro em direccao ao Mosteiro de Sera. Para alguem interessado no passado da cidade, os mosteiros que a rodeiam sao a forma mais genuina de tentar aprofundar o que foi a cidade antes da invasao chinesa. De facto, as ordens de monges sempre foram a principal forca politica no teocratico Reino do Tibete e mantem hoje as suas praticas imtemporais praticamente intactas, ao contrario dos leigos cidadaos da cidade, cuja cultura esta hoje confinada ao centro de Lhasa, onde me perdi no primeiro dia e onde regresso a toda a hora. Assim sendo, uma visita a um mosteiro e um salto no tempo, ja que a presenca policial e militar chinesa e reduzida ao minimo nestes locais, e a fe budista-tibetana e ai vivida com toda a sua forca historica. O facto de se poder observa-la ao vivo, atraves das vidas dos monges, e um marco tremendamente importante da visita a Lhasa, porque demonstra com genuinidade precisamente o aspecto mais importante do Tibete desde ha muitos seculos: a religiao.
Um mosteiro no Tibete nao e como os austeros mosteiros catolicos europeus, mas antes um complexo de templos, dormitorios, capelas e jardins, que formam uma vila onde os monges desenvolvem a sua vida monastica. O Mosteiro de Sera e portanto um enorme oasis de paz, cheio de peregrinos e monges em cada esquina. Dado o silencio que envolve todo o recinto, sao cenas comuns ouvir passos numa esquina de pedra e aparecer um velho monge trajado de cor-de-laranja contrastando com as paredes de pedra e cal branca. Perco muito tempo passeando entre os edificios, maioritariamente simples mas dando lugar, aqui e ali, a enormes e ricos templos com tectos de madeira e esculturas douradas, tudo isto num cenario de montanhas nevadas, com vista sobre a cidade la ao longe.
A dada altura, do cimo de um telhado um monge comeca a tocar um gongo ritmadamente, transformando toda a atmosfera num envolvente misticismo. Os fieis prostram-se perante o templo, num reverencial silencio perante o som grave do instrumento. Congratulo-me mentalmente por estar ali naquele preciso momento, ja que poderia estar em qualquer outro lugar do enorme recinto. Passam os minutos, e comecam a surgir monges de todos os cantos. A principio, nao perco a oportunidade unica de fotografar conjuntos daqueles (para mim) exoticos personagens de quase-ficcao. Depois, caio no ridiculo de perceber que quanto mais fotografo mais aparecem, chegando ao ponto de estar rodeado de monges de cabelo rapado a caminhar na mesma direccao ao som de um gongo tocado por outro monge no cimo de um telhado. Perante esta cena, desisti alegremente da minha obsessao fotografica e absorvi o momento com todos os sentidos.
Nao o sei na altura mas venho a saber pouco depois que esta prestes a comecar uma das mais extraordinarias manifestacoes culturais a que alguma vez assisti, e com tal intensidade, genuinidade e indiferenca para comigo e restantes turistas que observam a cenam estupefactos, que sou forcado a reconhecer a minha total insignificancia para aqueles compenetrados monges.
Esta prestes a comecar a licao diaria. Apesar de nao perceber sequer uma palavra do que e dito, tenho perante mim uma cena surreal: varios monges reunem-se sentados em grupos num jardim cheio de arvores, cabendo a cada grupo um monge mais adulto, de pe. Este questiona os seus discipulos em alta voz, batendo constantemente e com violencia com o pe no chao e com uma mao na outra, erguendo a voz enquanto o faz. Na minha hora ali, nao percebo o porque desta efusividade nem a que conteudo do discurso corresponde esse gesto teatral. Mas compreendo quao seriamente e levada esta licao, pelas caras graves dos alunos, pelas respostas que dao a medo, pelas reaccoes do professor. Sao dezenas, talvez centenas, de conjuntos, e naquele jardim devem estar pelo menos 200 pessoas a falar em simultaneo, todas vestidas de igual, de cabelo rapado e berrando numa lingua para mim incompreensivel. A experiencia e intensa e nenhum estrangeiro se atreve a falar, apesar dos momentos de boa disposicao que surgem entre os grupos de monges aqui e ali. A medida que o tempo passa, a minha cabeca ja nao passa de um receptor de zumbidos anonimos em alta voz, cada vez mais velozes, porque com o passar das discussoes os alunos ganham coragem e as tantas ja discutem entre si, levantando-se e batendo o pe e as maos, para entusiasmo dos seus suados mestres, cujas veias se vislumbram ja do alto das suas concentradas cabecas rapadas. E extraordinaria a concentracao dos alunos, a lucidez dos monges e a fluidez com que ambos parecem conseguir debitar temas teologicos sem parar para respirar, com um entusiasmo e um fervor de fazer inveja a qualquer intelectual do Mundo inteiro. E ocorre-me pensar que, mesmo que compreendesse o que diziam, jamais poderia compreender porque fazem aquelas licoes ali e porque as vivem com aquela intensidade. A presenca de turistas e peregrinos transforma toda a cena num teatro que, de forma alguma, aquela reuniao pretende ser. Basicamente, tenho a atitude de um espectador de teatro mas os actores sao personagens da vida real, indiferentes a opiniao ou reaccoes da plateia.
Passo ali mais de uma hora, estupefacto e maravilhado, e quando abandono o jardim estou estafado e cheio de sons na cabeca. Quando chego a Lhasa a noite comeca a cair, ideal para mais uma ida ao cafe americano, onde encontro precisamente as mesmas pessoas do dia anterior, o que me deu o conforto de que precisava, porque os dias estao cada vez mais frios e nao ha nada como um cafe quente e uma conversa casual para os aquecer.
Rodas no ar
Apesar do bem-estar que Lhasa exala, continuo inquieto depois do meu segundo dia: nao consigo deixar de pensar em como sera a vasta planicie tibetana para la desta cidade, como serao os pequenos mosteiros vistos ao longe, as montanhas sobre a estrada, os lagos, bandeiras de oracao, os iaques a pastar. Tudo isto sao cenas do meu imaginario que tencionava viver na minha vinda frustrada de Kathmandu ate Lhasa por terra.
Assim sendo, decido que definitivamente prefiro dormir pouco mas de curiosidade satisfeita, razao pela qual me levanto as 6 da manha do terceiro dia para apanhar um autocarro ate Shigatse. Tinham-me dito que sao 280 kms. Que delicia. Pelo menos cinco horas de paisagem!
Francamente, nem sei bem o que me espera em Shigatse, e a minha alvorada e mais motivada pela jornada ate la do que pelo destino. Aparentemente Shigatse e a segunda cidade do Tibete, o que me garante que no dia seguinte conseguirei transporte de volta ate Lhasa, de modo a poder chegar a tempo de um dia depois apanhar o comboio ate Pequim. E este criterio desonroso que me leva ate um destino magico, que, para minha absoluta surpresa, suplanta ate as paisagens magnificas que tenho de atravessar ate la chegar.
A madrugada e escura e fria em Lhasa, e descubro o autocarro pelos fortes farois que iluminam a rua deserta. Esta estacionado no meio da rua. Enfio-me ansioso no gelado banco da frente, para poder apreciar melhor a viagem, e aos poucos o autocarro comeca a encher. Como ja esperava, sou o unico nao-tibetano ali dentro e transformo-me num verdadeiro e involuntario bobo da corte. A minha maquina digital, que fotografa aqui e ali as cenas da violenta paisagem, torna-se numa atraccao cientifica para os meus (materialmente) humildes companheiros de viagem, provavelmente de volta as suas casas no campo depois de uma jornada na sua capital. Familias inteiras com sacos sem fim atulham o autocarro, nos seus trajes caracteristicos, gorros de pele, trancas no cabelo, termos de cha quente.
Apesar da madrugada, tenho os olhos bem abertos durante toda a viagem: afinal, desde pequeno que sonhava com o que seria a paisagem tibetana. Desta vez, sonhei bem, e as montanhas enormes, as planicies castanhas, os iaques que pastam, os pastores de cabras e a neve nos picos mais altos acompanha-me durante cinco brilhantes horas, em que me apercebo de quao arida e infinita e esta regiao. Precisamente como eu a imaginava. Ha poucas coisas melhores na vida do que ver materializada em realidade uma imagem mental. Tenho essa sorte neste estranho autocarro. E o mais engracado de tudo isto e aquelas familias tibetanas provavelmente pensarem que devo estar perdido do meu mundo de iguais, enfiado num autocarro no meio do Tibete, em direccao a uma pequena cidade no meio do planalto. Nao sabem (nem podiam saber, porque nao tem neles o conceito de viajar por prazer) que estou exactamente onde queria estar, naquele preciso momento da minha vida. Alias, de entre todos os companheiros de viagem possiveis, seriam aquelas familias, aqueles velhotes desdentados a rezar, aquelas criancas sujas de feicoes perfeitas, quem eu escolheria para estarem comigo na minha pequena travessia da vida tibetana.
Os chineses construiram uma magnifica estrada de alcatrao atraves de todo este cenario remoto, o que, se desmistifica algo do encanto que toda esta imensidao provoca, tambem torna a viagem mais comoda, especialmente se comparada com as minhas de viagens de autocarro pelo Nepal. Tenho pena de nao poder mandar parar o autocarro e sair dali, para longe da estrada, para onde o Tibete e menos chines e mais rural, mas esse plano nao passa de um sonho infantil e tenho de me contentar em imaginar o que esta para la de todas estas montanhas e vales, que parecem nao acabar. Para alem disso, consola-me saber que este progresso alcatroado ainda so chegou a ligacao entre Lhasa e a fronteira do Nepal (um trecho da qual eu estou a percorrer) e que a restante imensidao do gigantesco territorio tibetano se encontra ainda entregue a si proprio. Para alem do mais, os meus companheiros de viagem sao o espelho vivo do Tibete remoto e rural. Tambem para eles, vejo-o, um autocarro nao e um conceito familiar.
Shigatse
Nos seus 3.900 m acima do nivel do mar, Shigatse e uma cidade antipatica para quem deseja perder-se pelas suas ruas, mas so tenho uma tarde aqui e um corajoso pacto entre a minha curiosidade e a minha consciencia leva-me subir a pe toda a cidade, ate ao cimo da colina onde Shigatse se anicha. Originalmente, Shigatse foi construida no sope de uma enorme colina (colina aqui representa cerca de 4.500m), mas a chegada dos chineses estendeu-a dai para a frente, de maneira que hoje a vista do cimo da colina mostra a antiga vila quase anexada a montanha e o desenvolvimento chines dai para a frente, ocupando uma boa parte do vale em que a cidade esta construida.
Mesmo na sua parte moderna, Shigatse e uma pequena cidade, perdida no meio de enormes montanhas. Imagino que antes da chegada do alcatrao esta fosse considerada uma cidade distante de Lhasa. As suas vielas antigas medievais irradiam paz nas suas paredes brancas, janelas coloridas e bandeiras de oracao que esvoacam ao vento. Passeio-me por ali praticamente sozinho, saudado aqui e ali por algum residente amigavel. Quando dou por mim, estou bem alto na colina, percorrendo-a paralelamente a cidade. Por todo o lado enormes pedras estao pintadas com mantras budistas ou com figuras divinas. Ha bandeiras de oracao em cada angulo, aqui e ali um pequeno altar. Iaques e cabras pastam ali. E la em baixo, as pequenas casinhas da cidade velha com os seus telhados planos pintados com simbolos religiosos e mais la a frente a cidade chinesa. E depois dela as montanhas. E em cima delas um ceu azul sem nuvens.
E no topo disto tudo eu, sozinho, silencioso, a admirar aquilo tudo e sem perceber bem o que faco ali, no topo de uma colina, rodeado de iaques e pedras com frases em tibetano, no mais profundo silencio, apenas interrompido pelos canticos religiosos de alguns trabalhadores, que tentam arduamente cultivar sabe-se la o que naquela arida montanha.
Nao e a primeira vez que me questiono o que faco em determinado sitio, durante esta viagem, nao por arrependimento ou ignorancia, mas por incredulidade para com a solidao e paz que se consegue alcancar por estas latitudes, sem dar por isso. Mais uma vez penso que dificilmente os chineses conseguirao penetrar na religiosidade de todo este territorio.
Peregrinando
Sou apanhado desprevenido quando comecam a aparecer rodas de oracao por toda a montanha. Sucessivas series de enormes rodas douradas acompanham o trilho a medida que dobro a colina, e com elas comecam a aparecer tambem os fieis tibetanos. Comeco tambem a vislumbrar enormes telhados dourados la ao fundo. Estou a chegar ao Mosteiro de Tashilhunpo, uma das mais importantes ordens tibetanas e onde pertence o Panchen Lama, a segunda figura espiritual do Tibete depois do Dalai Lama.
Acontece que os chineses tem encarcerado o Panchen Lama verdadeiro, tendo colocado no seu lugar um rapazinho escolhido e educado por eles. O verdadeiro Panchen Lama esta preso em paradeiro incerto e e considerado o mais jovem prisioneiro politico do Mundo. Nao sei onde esta o Panchen Lama chines, mas em todo o caso e uma figura insignificante e meramente politica. Mais uma vida desgracada as maos deste governo. Ou duas.
Percorro ansioso e surpreendido toda a montanha abaixo em direccao ao Mosteiro, e quando chego ca abaixo e olho para cima deixo-me espantar pela beleza do cenario, que nao era visivel da zona residencial de Shigatse: milhares de rodas de oracao brilham douradas ao Sol, bandeiras de oracao esticam-se por entre os varios picos da montanha, dezenas de pessoas percorrem os trilhos poeirentos, no que venho a perceber ser um circuito em redor da montanha e que culmina na entrada do Mosteiro. Mais uma vez em total inconsciencia, fiz parte de uma peregrinacao tibetana. Ainda bem que nao tive medo da altitude.
Um cha com sabor a manteiga
O meu dia ja tinha sido suficientemente rico para me retirar satisfeito, mas tinha pela frente um complexo gigantesco de templos dourados e casinhas brancas, casa de muitos dos mais iluminados intelectuais budistas de sempre, do contrapeso politico ao poder dos Dalai Lama. Como sempre, deixo-me perder neste cenario magico, para o qual olho com estupefaccao a cada passo que dou. O mosteiro e enorme, sao centenas de edificios brancos, ruelas estreitas, monges em cada esquina. Visto da entrada, e um enorme aglomerado de casinhas brancas, dominado por tres enormes templos dourados, encostados a uma colina castanha repleta de rodas de oracao douradas e bandeiras de oracao ao vento.
Como de costume, nao ha ali uma unica cara ocidental. As vezes, pode ocorrer que a "segunda cidade do Tibete" e um centro super povoado de ocidentais em busca de espiritualidade, mas a verdade e que, tambem para minha surpresa, esta e uma regiao ainda remota para o turista ocidental. Mesmo em Lhasa, os turistas que se cruzam na rua cumprimentam-se invariavelmente com um sorriso cumplice, num reconhecimento mutuo de quem teve de apanhar no minimo duas conexoes aereas (no meu caso quatro) para la chegar e de quem prefere o frio Outono tibetano a uma praia das Caraibas para ocupar o seu tempo livre. Todos os poucos que ca estamos temos algo em comum, especialmente porque o Tibete nao proporciona actividades de lazer ou diversao: quem ca vem, vem para conhecer o sitio, as pessoas, a religiao, a ocupacao chinesa. Nao ha aqui gente a fumar charros em esplanadas, nao ha bares com musica americana aos berros, nao ha turbas de gente recem-saida do liceu em busca de emocoes fortes. O turista que vem ao Tibete vem, invariavelmente, em Busca. Nao exclusivamente numa romantica busca espiritual ou religiosa, mas acima de tudo em busca de Genuinidade. O numero de estrangeiros no Tibete e tao reduzido que, nestes quatro dias, nao consegui dialogar senao por gestos. Nem sequer consigo que algum tibetano me explique a que horas parte o proximo autocarro ou onde fica determinado mosteiro. Quando aponto para o relogio para saber quanto tempo demora uma viagem, riem-se e apontam para os seus proprios relogios. Nao ha dialogo
verbal possivel.
Mas quando entro no Mosteiro de Tashilhunpo, o meu pensamento esta longe dessas reflexoes. So penso na imensidao daquilo, da pacifica vida monastica, de como os monges mantem o seu dia-a-dia inalterado ha seculos. Passam de todas as idades, desde reguilas criancas aprendizes ate velhos monges apoiados em bengalas. Todos fazem parte daquele lugar, daquela vida retirada. A medida que avanco para o coracao do mosteiro, sinto-me a recuar anos sem fim, e sinto admiracao por aqueles homens que dedicam a sua vida a meditacao e a aprendizagem.
Os monges nao estao, no entanto, proibidos de sair dos mosteiros, e muitos regressam as
suas casas nas cidades depois de um dia no mosteiro. Especialmente em Lhasa, e comum ver monges na rua, muitos deles a pedir dinheiro ou sentados no chao em grupos de oracao, como um desencantado violinista no metro de Lisboa. Muitas vezes, ao ve-los ali expostos aquela condicao de pedintes, questiono-me qual a sinceridade daquelas oracoes que debitam a ceu aberto: sera que rezam por quem passa na rua e esperam assim uma esmola, ou sera que precisam da esmola e que aquelas oracoes nao passam de um pequeno concerto sem significado intimo para os monges famintos que o cantam? Esta questao preocupa-me, porque encerra a genuinidade da Fe de muitos monges tibetanos: sendo comum cada familia mandar pelo menos um filho para um mosteiro, ser monge se calhar e hoje uma profissao como outra qualquer, com a agravante de nao ser remunerada. Pergunto-me quantos destes misticos personagens nao escondem por detras do seu habito profundas duvidas de fe.
E se eles as tem, como posso eu nao ter?
Em Tashilhunpo esta duvida nao tem sentido, porque aqui nada falta aos monges, ja que este mosteiro esta destinado aos filhos das melhores familias: aqui, a espiritualidade e verdadeira e unica e os monges estao concentrados na sua busca espiritual.
No final do dia, enquanto procuro a saida daquele labirinto monastico, entro por uma pequena porta de madeira e dou de caras com o mais extraordinario patio que jamais tive a oportunidade de ver fora dos livros. E um claustro com uma dimensao consideravel, a sombra do Sol que ja desaparece por detras de dois andares em madeira. As paredes tem pintados dezenhas de milhares de pequenos budas todos iguais. No centro, um enorme poste de mais de vinte metros coroado por uma densa pele de iaque no seu topo. Numa das extremidades, ergue-se um enorme templo de madeira e ouro, tao grande que quase nao vejo o topo. E no meio disto tudo, dezenas de monges, cada um com a sua farda, que vao aparecendo pelas varias portas que dao acesso ao claustro. Mais uma vez sem saber como, caio no meio da reuniao de todos os monges do mosteiro. Sao centenas, desde os mais novos aos mais velhos, e saudam-me cordialmente mas com alguma desconfianca. No entanto, ninguem me manda embora e, desconfiando de que os monges nao se estao a reunir em vao, decido esperar sentado nas escadas de pedra. Alguma coisa vai acontecer e quero estar la para ver.
Passam longos minutos em que o meu desconforto por estar num lugar que nao e meu e compensado pela observacao viva, real e priveligiada que tenho das relacoes humanas dos monges. Sao pessoas como todas as outras, e por detras da sua grave aparencia alaranjada brincam uns com os outros, falam alto, empurram-se: no fundo, gozam aquele momento de lazer. Alguns tem umas enormes capas e chapeus verdes e parecem mais recatados. Nao fosse o ambiente festivo daquele patio, e ter-me-ia ocorrido algum assustador pensamento de estar perante uma seita misteriosa, especialmente com aquele enorme idolo de iaque ali no meio.
Mas nao. A suposta seita reune-se no topo de umas escadas que dao para o primeiro andar do claustro e comeca a entoar um cantico grave e monocordico. Por sorte, estou sentado mesmo no meio deles e deixo-me envolver pelo momento. Ninguem me manda embora e ninguem parece reparar em mim para alem de um ou outro mini-monge mais reguila, por isso quando se juntam em fila e desaparecem por detras de uma pequena porta de madeira, decido que nao e momento para cerimonias e sigo-os. A cena deve parecer estranha: uma enorme fila de monges budistas com chapeus verdes na cabeca desaparece dentro de uma misteriosa capela e no meio deles esta um intimidado mas decidido portugues, totalmente desfasado da musica e do traje, desaparecendo tambem ele pela porta, entre canticos e lentos passos.
La dentro, finalmente o monge mais adulto parece reparar em mim. Arrisco um sorriso timido que parece conquista-lo e sou convidado a ficar. Tambem eles nao devem saber o que fazer perante alguem que os segue para o seu recinto de oracoes para la da hora de fecho do mosteiro. Admito para mim proprio que fui longe demais, mas o dedo do monge aponta para um recanto na escura parede um pouco afastado das almofadas onde os monges se reunem em circulo e decido ficar. Durante meia hora, estou a viver dentro de um cantico ritual que se repete ha centenas de anos neste mosteiro, em tempos partilhados pelo proprio Panchen Lama. Assisto a tudo em silencio, com o coracao aos pulos. Mais uma vez, questiono o porque da minha presenca naquele lugar e porque e que fui eu que tive a sorte de ali estar. Alguma coisa me pos naquele patio aquela hora. E alguma coisa me pos em Sera a hora da licao de teologia. E essas duas experiencias em conjunto ensinam-me que a Curiosidade e um valor que nunca podemos menosprezar. Inconscientemente, estou a combater mais um dos males budistas: a ignorancia.
As tantas, noto algum movimento no exterior da capela. Varios monges que estavam la fora dirigem-se a outra porta. Mais uma vez nao resisto a segui-los, e por esta altura ja estou totalmente confiante da minha pessoa. Nao faco cerimonia nenhuma em segui-los. Olham-me com espanto primeiro, curiosidade depois e finalmente sorriem-me. Estao a preparar o cha, uma mistela intragavel de agua e manteiga de iaque, que todo o tibetano carrega num termos e bebe durante todo o dia. Aproximo-me. Sorrio ao velos preparar a refeicao em enormes potes de barro. Sorriem de volta. Interrogam-me na sua lingua. Nao lhes sei responder, por isso solto uma sonora gargalhada que os parece divertir e cativar. Apontam-me a saida. Desapontado mas respeitador, saio. Para minha supresa, estendar almofadas no patio e apontam-me uma. Sento-me. Sentam-se tambem. Dao-me uma chavena. Quando realizo onde estou, encontro-me no patio dos budas, a partilhar cha de manteiga de iaque com os monges de Tashilhunpo. A conversa e gestual, mas a experiencia e tao fascinante para mim como para eles.
E ali estamos, num entardecer tibetano, a partilhar a nossa sinceridade em toscas trocas de palavras. O momento nao e so magnifico pelo Unico que e e pelo privilegio que tenho em fazer parte daquele ritual tao tibetano do cha. O momento tambem vive, e muito, da humanidade que se transmite mutuamente. Separam-nos a lingua, a nacionalidade, o passado individual de cada um, a religiao e acima de tudo a condicao: um turista ocidental de um lado, monges celibatarios do outro. No entanto, conseguimos passar ali um momento de comunhao, que suplanta a componente exotica que inevitavelmente lhe esta inerente.
Quando os monges se preparam para me servir mais uma chavena daquela intragavel mistela, considero que o sacrificio nao o justifica. O cha e mau demais. Sem ser execravel, e um nojo, uma especie de leite salgado com sabor a iaque, um parente da vaca. Nao ha monge tibetano amigo que valha mais um trago daquilo. Satisfeito com o pragmatismo desta decisao, levanto-me despedimo-nos como velhos amigos. Eles ali ficarao, dia apos dia, cha apos cha, cantico apos cantico, ate serem mais um monge velhinho de bengala. Eu, de volta ao meu mundo, ano apos ano, realizacao apos realizacao, ate ser mais um lisboeta velhinho de bengala.
Caminhos diferentes com um fim comum.
Regressando e partindo
O autocarro do dia seguinte tem a mesma historia do anterior. Mas desta vez, vai ainda mais cheio de gente do campo. Saimos ainda o dia e uma ilusao distante e nao dixa de ser um momento estranhamente mistico fazer-me a estrada do Tibete num autocarro com temperaturas cortantes, hipnotizado por musica tibetana que soa suave sob o ceu estrelado do ultimo halito da madrugada. Quando o dia chega por detras das montanhas, o gelo ainda me queima todo o corpo. Paramos a beira da estrada para nos aquecermos numa fogueira onde um velhinho coze ovos e cha. Recuso o cha mas como com prazer dois fumegantes ovos cozidos, a estalar de quentes. O frio la fora e tao cortante que quase tem cor, meio azulado, meio transparente.
De volta a Lhasa, regresso aos meus locais habituais. Quando cai a noite, encontro-me com amigos no cafe americano. Conversamos durante horas, comemos na rua. Volto a encontrar-me com o amigo espanhol e a americana, fazemos uma pequena festa de despedida. Trocamos presentes espontaneos. E espantosa a dimensao das relacoes que se constroem na estrada. Eles continuarao o seu periplo. Uns pela India, outros pela Mongolia. Outros regressam a casa.
Eu tenho um comboio para apanhar, com direccao a Pequim, atraves de todo o Tibete e o Norte da China. Durara 48 horas. A linha acabou de ser construida em Junho e servira para aumentar o turismo no Tibete. Nao foi por acaso que vim a Lhasa antes dos chineses comecarem a explorar essa linha, no seu projecto de multiplicar exponencialmente o turismo para o Tibete ate 2020.
Ainda bem que assim o fiz. Sem duvida, nao encontrei o que esperava mas o que descobri deixou-me satisfeito: o Tibete nao morreu.
Em Lhasa, seria capaz de passar uma boa temporada. Evidentemente nao o inverno todo, como fara um brasileiro que anda ha um ano as voltas de bicicleta pela China, mas umas boas semanas. Acontece que, como sempre, tenho muitos planos para pouco tempo, pelo que terei de desdobrar as minhas noites em tempo util de dia.
No segundo dia, subo o que me parece ser uma montanha pouco depois de acordar. Estou ainda meio ensonado, mas nao o suficiente para nao reparar que essa montanha e o gigantesco Palacio de Potala, que tem uma subida tao ingreme e inclinada ate a sua entrada, que me leva meia hora e meia duzia de conversas com outros destruidos turistas e peregrinos, ate chegar la acima. Uma senhora chinesa deve ter achado piada a minha cara de esforco e tem a simpatia de esperar por mim de 5 em 5 minutos, sorrindo-me quando eu a alcanco. Dado que o seu ingles e o mesmo que o de um mudo, deduzo que so me espera para me exibir a sua condicao fisica, pelo que apos a terceira espera deixo de lhe sorrir de volta. E a minha primeira inimiga na China. (Seja como for, a saida do palacio duas horas depois sorri-me com genuinidade e, no meu intimo, fazemos as pazes.)
O Palacio de Potala e tal como eu o sonhava: enorme, mistico, frio e riquissimo. E escuro, castanho, cor-de-vinho. E dourado, ardente. Tenho a sorte de nao ter um guia a empurrar-me por ali fora (o que muito prazer me da, ja que se tivesse vindo ate Lhasa por terra nao poderia andar pela cidade desacompanhado de um guia), por isso levo o meu tempo nos patios interiores rodeados de cortinas bordadas a ouro, nos terracos ventosos com vista para a cidade e para as montanhas, nas capelas recheadas de enormes figuras onde os fidelissimos peregrinos acendem as suas velas de manteiga, deixam as suas notas e murmuram as suas oracoes. Fiquei surpreendido com a religiosidade do local, uma vez que esperava que as autoridades chinesas tivessem mundanizado a visita ao Palacio. De facto, assim nao acontece, e se a mim me custa os olhos da cara para la entrar, aos tibetanos e oferecida nao so a entrada como tambem a total liberdade religiosa no local.
Isto transforma o Potala em mais uma experiencia budista do que numa visita cultural. Na verdade, deve ser um dos poucos sitios no Mundo onde peregrinos nomadas se prostram no chao perante tumulos de diamantes ou estatuas de ouro macico. Toda a decoracao me transporta para um mundo paralelo, mistico, oriental. Nada neste palacio se assemelha a algo que eu ja tenha visto nem sentido. E impressionante a riqueza das capelas e dos tumulos, face a elegante sobriedade dos aposentos dos sucessivos Dalai Lama (sendo "sucessivos" uma escolha de palavra totalmente desapropriada, uma vez que se trata sempre da mesma pessoa reencarnada). A cada passo que dou, escada de madeira que desco, obra que admiro ou incenso que cheiro, dou gracas por ter lido o extraordinario relato de Heinrich Harrer sobre a vida no Tibete genuino nos anos 50 deste seculo, nos seus "Sete Anos no Tibete", em que inclusivamente conta como se tornou tutor daquele que e o "actual" Dalai Lama. Nas minhas habituais deambulacoes mentais, imagino-me eu proprio frente ao Dalai Lama, numa das muitas salas onde ele passou os seus anos de infancia e primeira juventude, antes do exilio para a India. As salas estao tao acessiveis e bem preservadas, que da para sonhar acordado durante muitas horas no Palacio, viajando no tempo ate aos dias em que Lhasa era uma cidade independente, pequena, viva, isolada e - admitamos - altamente sub-desenvolvida.
Sem duvida sem o encanto desses dias, em que milhares de monges vagueavam reverenciais pelos patios e capelas do palacio, a visita de hoje ao Potala mantem-se uma experiencia muito viva, muito intensa e, mais do que isso, muito comovente: nao pode haver outra sensacao senao essa, quando ao olhar do enorme terraco de onde outrora o pequeno Dalai Lama olhava o seu povo com um telescopio, se avista hoje uma enorme e impessoal praca chinesa, numa provocacao obvia e desumana ao povo tibetano. Alias, ha outra sensacao possivel: furia. Mas aprendi com o budismo que devemos evita-la.
Licoes de Teologia
Depois do meu regresso habitual ao circuito do templo de Jokhang e de me deixar perder de novo pela Lhasa antiga, e hora de me meter num autocarro em direccao ao Mosteiro de Sera. Para alguem interessado no passado da cidade, os mosteiros que a rodeiam sao a forma mais genuina de tentar aprofundar o que foi a cidade antes da invasao chinesa. De facto, as ordens de monges sempre foram a principal forca politica no teocratico Reino do Tibete e mantem hoje as suas praticas imtemporais praticamente intactas, ao contrario dos leigos cidadaos da cidade, cuja cultura esta hoje confinada ao centro de Lhasa, onde me perdi no primeiro dia e onde regresso a toda a hora. Assim sendo, uma visita a um mosteiro e um salto no tempo, ja que a presenca policial e militar chinesa e reduzida ao minimo nestes locais, e a fe budista-tibetana e ai vivida com toda a sua forca historica. O facto de se poder observa-la ao vivo, atraves das vidas dos monges, e um marco tremendamente importante da visita a Lhasa, porque demonstra com genuinidade precisamente o aspecto mais importante do Tibete desde ha muitos seculos: a religiao.
Um mosteiro no Tibete nao e como os austeros mosteiros catolicos europeus, mas antes um complexo de templos, dormitorios, capelas e jardins, que formam uma vila onde os monges desenvolvem a sua vida monastica. O Mosteiro de Sera e portanto um enorme oasis de paz, cheio de peregrinos e monges em cada esquina. Dado o silencio que envolve todo o recinto, sao cenas comuns ouvir passos numa esquina de pedra e aparecer um velho monge trajado de cor-de-laranja contrastando com as paredes de pedra e cal branca. Perco muito tempo passeando entre os edificios, maioritariamente simples mas dando lugar, aqui e ali, a enormes e ricos templos com tectos de madeira e esculturas douradas, tudo isto num cenario de montanhas nevadas, com vista sobre a cidade la ao longe.
A dada altura, do cimo de um telhado um monge comeca a tocar um gongo ritmadamente, transformando toda a atmosfera num envolvente misticismo. Os fieis prostram-se perante o templo, num reverencial silencio perante o som grave do instrumento. Congratulo-me mentalmente por estar ali naquele preciso momento, ja que poderia estar em qualquer outro lugar do enorme recinto. Passam os minutos, e comecam a surgir monges de todos os cantos. A principio, nao perco a oportunidade unica de fotografar conjuntos daqueles (para mim) exoticos personagens de quase-ficcao. Depois, caio no ridiculo de perceber que quanto mais fotografo mais aparecem, chegando ao ponto de estar rodeado de monges de cabelo rapado a caminhar na mesma direccao ao som de um gongo tocado por outro monge no cimo de um telhado. Perante esta cena, desisti alegremente da minha obsessao fotografica e absorvi o momento com todos os sentidos.
Nao o sei na altura mas venho a saber pouco depois que esta prestes a comecar uma das mais extraordinarias manifestacoes culturais a que alguma vez assisti, e com tal intensidade, genuinidade e indiferenca para comigo e restantes turistas que observam a cenam estupefactos, que sou forcado a reconhecer a minha total insignificancia para aqueles compenetrados monges.
Esta prestes a comecar a licao diaria. Apesar de nao perceber sequer uma palavra do que e dito, tenho perante mim uma cena surreal: varios monges reunem-se sentados em grupos num jardim cheio de arvores, cabendo a cada grupo um monge mais adulto, de pe. Este questiona os seus discipulos em alta voz, batendo constantemente e com violencia com o pe no chao e com uma mao na outra, erguendo a voz enquanto o faz. Na minha hora ali, nao percebo o porque desta efusividade nem a que conteudo do discurso corresponde esse gesto teatral. Mas compreendo quao seriamente e levada esta licao, pelas caras graves dos alunos, pelas respostas que dao a medo, pelas reaccoes do professor. Sao dezenas, talvez centenas, de conjuntos, e naquele jardim devem estar pelo menos 200 pessoas a falar em simultaneo, todas vestidas de igual, de cabelo rapado e berrando numa lingua para mim incompreensivel. A experiencia e intensa e nenhum estrangeiro se atreve a falar, apesar dos momentos de boa disposicao que surgem entre os grupos de monges aqui e ali. A medida que o tempo passa, a minha cabeca ja nao passa de um receptor de zumbidos anonimos em alta voz, cada vez mais velozes, porque com o passar das discussoes os alunos ganham coragem e as tantas ja discutem entre si, levantando-se e batendo o pe e as maos, para entusiasmo dos seus suados mestres, cujas veias se vislumbram ja do alto das suas concentradas cabecas rapadas. E extraordinaria a concentracao dos alunos, a lucidez dos monges e a fluidez com que ambos parecem conseguir debitar temas teologicos sem parar para respirar, com um entusiasmo e um fervor de fazer inveja a qualquer intelectual do Mundo inteiro. E ocorre-me pensar que, mesmo que compreendesse o que diziam, jamais poderia compreender porque fazem aquelas licoes ali e porque as vivem com aquela intensidade. A presenca de turistas e peregrinos transforma toda a cena num teatro que, de forma alguma, aquela reuniao pretende ser. Basicamente, tenho a atitude de um espectador de teatro mas os actores sao personagens da vida real, indiferentes a opiniao ou reaccoes da plateia.
Passo ali mais de uma hora, estupefacto e maravilhado, e quando abandono o jardim estou estafado e cheio de sons na cabeca. Quando chego a Lhasa a noite comeca a cair, ideal para mais uma ida ao cafe americano, onde encontro precisamente as mesmas pessoas do dia anterior, o que me deu o conforto de que precisava, porque os dias estao cada vez mais frios e nao ha nada como um cafe quente e uma conversa casual para os aquecer.
Rodas no ar
Apesar do bem-estar que Lhasa exala, continuo inquieto depois do meu segundo dia: nao consigo deixar de pensar em como sera a vasta planicie tibetana para la desta cidade, como serao os pequenos mosteiros vistos ao longe, as montanhas sobre a estrada, os lagos, bandeiras de oracao, os iaques a pastar. Tudo isto sao cenas do meu imaginario que tencionava viver na minha vinda frustrada de Kathmandu ate Lhasa por terra.
Assim sendo, decido que definitivamente prefiro dormir pouco mas de curiosidade satisfeita, razao pela qual me levanto as 6 da manha do terceiro dia para apanhar um autocarro ate Shigatse. Tinham-me dito que sao 280 kms. Que delicia. Pelo menos cinco horas de paisagem!
Francamente, nem sei bem o que me espera em Shigatse, e a minha alvorada e mais motivada pela jornada ate la do que pelo destino. Aparentemente Shigatse e a segunda cidade do Tibete, o que me garante que no dia seguinte conseguirei transporte de volta ate Lhasa, de modo a poder chegar a tempo de um dia depois apanhar o comboio ate Pequim. E este criterio desonroso que me leva ate um destino magico, que, para minha absoluta surpresa, suplanta ate as paisagens magnificas que tenho de atravessar ate la chegar.
A madrugada e escura e fria em Lhasa, e descubro o autocarro pelos fortes farois que iluminam a rua deserta. Esta estacionado no meio da rua. Enfio-me ansioso no gelado banco da frente, para poder apreciar melhor a viagem, e aos poucos o autocarro comeca a encher. Como ja esperava, sou o unico nao-tibetano ali dentro e transformo-me num verdadeiro e involuntario bobo da corte. A minha maquina digital, que fotografa aqui e ali as cenas da violenta paisagem, torna-se numa atraccao cientifica para os meus (materialmente) humildes companheiros de viagem, provavelmente de volta as suas casas no campo depois de uma jornada na sua capital. Familias inteiras com sacos sem fim atulham o autocarro, nos seus trajes caracteristicos, gorros de pele, trancas no cabelo, termos de cha quente.
Apesar da madrugada, tenho os olhos bem abertos durante toda a viagem: afinal, desde pequeno que sonhava com o que seria a paisagem tibetana. Desta vez, sonhei bem, e as montanhas enormes, as planicies castanhas, os iaques que pastam, os pastores de cabras e a neve nos picos mais altos acompanha-me durante cinco brilhantes horas, em que me apercebo de quao arida e infinita e esta regiao. Precisamente como eu a imaginava. Ha poucas coisas melhores na vida do que ver materializada em realidade uma imagem mental. Tenho essa sorte neste estranho autocarro. E o mais engracado de tudo isto e aquelas familias tibetanas provavelmente pensarem que devo estar perdido do meu mundo de iguais, enfiado num autocarro no meio do Tibete, em direccao a uma pequena cidade no meio do planalto. Nao sabem (nem podiam saber, porque nao tem neles o conceito de viajar por prazer) que estou exactamente onde queria estar, naquele preciso momento da minha vida. Alias, de entre todos os companheiros de viagem possiveis, seriam aquelas familias, aqueles velhotes desdentados a rezar, aquelas criancas sujas de feicoes perfeitas, quem eu escolheria para estarem comigo na minha pequena travessia da vida tibetana.
Os chineses construiram uma magnifica estrada de alcatrao atraves de todo este cenario remoto, o que, se desmistifica algo do encanto que toda esta imensidao provoca, tambem torna a viagem mais comoda, especialmente se comparada com as minhas de viagens de autocarro pelo Nepal. Tenho pena de nao poder mandar parar o autocarro e sair dali, para longe da estrada, para onde o Tibete e menos chines e mais rural, mas esse plano nao passa de um sonho infantil e tenho de me contentar em imaginar o que esta para la de todas estas montanhas e vales, que parecem nao acabar. Para alem disso, consola-me saber que este progresso alcatroado ainda so chegou a ligacao entre Lhasa e a fronteira do Nepal (um trecho da qual eu estou a percorrer) e que a restante imensidao do gigantesco territorio tibetano se encontra ainda entregue a si proprio. Para alem do mais, os meus companheiros de viagem sao o espelho vivo do Tibete remoto e rural. Tambem para eles, vejo-o, um autocarro nao e um conceito familiar.
Shigatse
Nos seus 3.900 m acima do nivel do mar, Shigatse e uma cidade antipatica para quem deseja perder-se pelas suas ruas, mas so tenho uma tarde aqui e um corajoso pacto entre a minha curiosidade e a minha consciencia leva-me subir a pe toda a cidade, ate ao cimo da colina onde Shigatse se anicha. Originalmente, Shigatse foi construida no sope de uma enorme colina (colina aqui representa cerca de 4.500m), mas a chegada dos chineses estendeu-a dai para a frente, de maneira que hoje a vista do cimo da colina mostra a antiga vila quase anexada a montanha e o desenvolvimento chines dai para a frente, ocupando uma boa parte do vale em que a cidade esta construida.
Mesmo na sua parte moderna, Shigatse e uma pequena cidade, perdida no meio de enormes montanhas. Imagino que antes da chegada do alcatrao esta fosse considerada uma cidade distante de Lhasa. As suas vielas antigas medievais irradiam paz nas suas paredes brancas, janelas coloridas e bandeiras de oracao que esvoacam ao vento. Passeio-me por ali praticamente sozinho, saudado aqui e ali por algum residente amigavel. Quando dou por mim, estou bem alto na colina, percorrendo-a paralelamente a cidade. Por todo o lado enormes pedras estao pintadas com mantras budistas ou com figuras divinas. Ha bandeiras de oracao em cada angulo, aqui e ali um pequeno altar. Iaques e cabras pastam ali. E la em baixo, as pequenas casinhas da cidade velha com os seus telhados planos pintados com simbolos religiosos e mais la a frente a cidade chinesa. E depois dela as montanhas. E em cima delas um ceu azul sem nuvens.
E no topo disto tudo eu, sozinho, silencioso, a admirar aquilo tudo e sem perceber bem o que faco ali, no topo de uma colina, rodeado de iaques e pedras com frases em tibetano, no mais profundo silencio, apenas interrompido pelos canticos religiosos de alguns trabalhadores, que tentam arduamente cultivar sabe-se la o que naquela arida montanha.
Nao e a primeira vez que me questiono o que faco em determinado sitio, durante esta viagem, nao por arrependimento ou ignorancia, mas por incredulidade para com a solidao e paz que se consegue alcancar por estas latitudes, sem dar por isso. Mais uma vez penso que dificilmente os chineses conseguirao penetrar na religiosidade de todo este territorio.
Peregrinando
Sou apanhado desprevenido quando comecam a aparecer rodas de oracao por toda a montanha. Sucessivas series de enormes rodas douradas acompanham o trilho a medida que dobro a colina, e com elas comecam a aparecer tambem os fieis tibetanos. Comeco tambem a vislumbrar enormes telhados dourados la ao fundo. Estou a chegar ao Mosteiro de Tashilhunpo, uma das mais importantes ordens tibetanas e onde pertence o Panchen Lama, a segunda figura espiritual do Tibete depois do Dalai Lama.
Acontece que os chineses tem encarcerado o Panchen Lama verdadeiro, tendo colocado no seu lugar um rapazinho escolhido e educado por eles. O verdadeiro Panchen Lama esta preso em paradeiro incerto e e considerado o mais jovem prisioneiro politico do Mundo. Nao sei onde esta o Panchen Lama chines, mas em todo o caso e uma figura insignificante e meramente politica. Mais uma vida desgracada as maos deste governo. Ou duas.
Percorro ansioso e surpreendido toda a montanha abaixo em direccao ao Mosteiro, e quando chego ca abaixo e olho para cima deixo-me espantar pela beleza do cenario, que nao era visivel da zona residencial de Shigatse: milhares de rodas de oracao brilham douradas ao Sol, bandeiras de oracao esticam-se por entre os varios picos da montanha, dezenas de pessoas percorrem os trilhos poeirentos, no que venho a perceber ser um circuito em redor da montanha e que culmina na entrada do Mosteiro. Mais uma vez em total inconsciencia, fiz parte de uma peregrinacao tibetana. Ainda bem que nao tive medo da altitude.
Um cha com sabor a manteiga
O meu dia ja tinha sido suficientemente rico para me retirar satisfeito, mas tinha pela frente um complexo gigantesco de templos dourados e casinhas brancas, casa de muitos dos mais iluminados intelectuais budistas de sempre, do contrapeso politico ao poder dos Dalai Lama. Como sempre, deixo-me perder neste cenario magico, para o qual olho com estupefaccao a cada passo que dou. O mosteiro e enorme, sao centenas de edificios brancos, ruelas estreitas, monges em cada esquina. Visto da entrada, e um enorme aglomerado de casinhas brancas, dominado por tres enormes templos dourados, encostados a uma colina castanha repleta de rodas de oracao douradas e bandeiras de oracao ao vento.
Como de costume, nao ha ali uma unica cara ocidental. As vezes, pode ocorrer que a "segunda cidade do Tibete" e um centro super povoado de ocidentais em busca de espiritualidade, mas a verdade e que, tambem para minha surpresa, esta e uma regiao ainda remota para o turista ocidental. Mesmo em Lhasa, os turistas que se cruzam na rua cumprimentam-se invariavelmente com um sorriso cumplice, num reconhecimento mutuo de quem teve de apanhar no minimo duas conexoes aereas (no meu caso quatro) para la chegar e de quem prefere o frio Outono tibetano a uma praia das Caraibas para ocupar o seu tempo livre. Todos os poucos que ca estamos temos algo em comum, especialmente porque o Tibete nao proporciona actividades de lazer ou diversao: quem ca vem, vem para conhecer o sitio, as pessoas, a religiao, a ocupacao chinesa. Nao ha aqui gente a fumar charros em esplanadas, nao ha bares com musica americana aos berros, nao ha turbas de gente recem-saida do liceu em busca de emocoes fortes. O turista que vem ao Tibete vem, invariavelmente, em Busca. Nao exclusivamente numa romantica busca espiritual ou religiosa, mas acima de tudo em busca de Genuinidade. O numero de estrangeiros no Tibete e tao reduzido que, nestes quatro dias, nao consegui dialogar senao por gestos. Nem sequer consigo que algum tibetano me explique a que horas parte o proximo autocarro ou onde fica determinado mosteiro. Quando aponto para o relogio para saber quanto tempo demora uma viagem, riem-se e apontam para os seus proprios relogios. Nao ha dialogo
verbal possivel.
Mas quando entro no Mosteiro de Tashilhunpo, o meu pensamento esta longe dessas reflexoes. So penso na imensidao daquilo, da pacifica vida monastica, de como os monges mantem o seu dia-a-dia inalterado ha seculos. Passam de todas as idades, desde reguilas criancas aprendizes ate velhos monges apoiados em bengalas. Todos fazem parte daquele lugar, daquela vida retirada. A medida que avanco para o coracao do mosteiro, sinto-me a recuar anos sem fim, e sinto admiracao por aqueles homens que dedicam a sua vida a meditacao e a aprendizagem.
Os monges nao estao, no entanto, proibidos de sair dos mosteiros, e muitos regressam as
suas casas nas cidades depois de um dia no mosteiro. Especialmente em Lhasa, e comum ver monges na rua, muitos deles a pedir dinheiro ou sentados no chao em grupos de oracao, como um desencantado violinista no metro de Lisboa. Muitas vezes, ao ve-los ali expostos aquela condicao de pedintes, questiono-me qual a sinceridade daquelas oracoes que debitam a ceu aberto: sera que rezam por quem passa na rua e esperam assim uma esmola, ou sera que precisam da esmola e que aquelas oracoes nao passam de um pequeno concerto sem significado intimo para os monges famintos que o cantam? Esta questao preocupa-me, porque encerra a genuinidade da Fe de muitos monges tibetanos: sendo comum cada familia mandar pelo menos um filho para um mosteiro, ser monge se calhar e hoje uma profissao como outra qualquer, com a agravante de nao ser remunerada. Pergunto-me quantos destes misticos personagens nao escondem por detras do seu habito profundas duvidas de fe.
E se eles as tem, como posso eu nao ter?
Em Tashilhunpo esta duvida nao tem sentido, porque aqui nada falta aos monges, ja que este mosteiro esta destinado aos filhos das melhores familias: aqui, a espiritualidade e verdadeira e unica e os monges estao concentrados na sua busca espiritual.
No final do dia, enquanto procuro a saida daquele labirinto monastico, entro por uma pequena porta de madeira e dou de caras com o mais extraordinario patio que jamais tive a oportunidade de ver fora dos livros. E um claustro com uma dimensao consideravel, a sombra do Sol que ja desaparece por detras de dois andares em madeira. As paredes tem pintados dezenhas de milhares de pequenos budas todos iguais. No centro, um enorme poste de mais de vinte metros coroado por uma densa pele de iaque no seu topo. Numa das extremidades, ergue-se um enorme templo de madeira e ouro, tao grande que quase nao vejo o topo. E no meio disto tudo, dezenas de monges, cada um com a sua farda, que vao aparecendo pelas varias portas que dao acesso ao claustro. Mais uma vez sem saber como, caio no meio da reuniao de todos os monges do mosteiro. Sao centenas, desde os mais novos aos mais velhos, e saudam-me cordialmente mas com alguma desconfianca. No entanto, ninguem me manda embora e, desconfiando de que os monges nao se estao a reunir em vao, decido esperar sentado nas escadas de pedra. Alguma coisa vai acontecer e quero estar la para ver.
Passam longos minutos em que o meu desconforto por estar num lugar que nao e meu e compensado pela observacao viva, real e priveligiada que tenho das relacoes humanas dos monges. Sao pessoas como todas as outras, e por detras da sua grave aparencia alaranjada brincam uns com os outros, falam alto, empurram-se: no fundo, gozam aquele momento de lazer. Alguns tem umas enormes capas e chapeus verdes e parecem mais recatados. Nao fosse o ambiente festivo daquele patio, e ter-me-ia ocorrido algum assustador pensamento de estar perante uma seita misteriosa, especialmente com aquele enorme idolo de iaque ali no meio.
Mas nao. A suposta seita reune-se no topo de umas escadas que dao para o primeiro andar do claustro e comeca a entoar um cantico grave e monocordico. Por sorte, estou sentado mesmo no meio deles e deixo-me envolver pelo momento. Ninguem me manda embora e ninguem parece reparar em mim para alem de um ou outro mini-monge mais reguila, por isso quando se juntam em fila e desaparecem por detras de uma pequena porta de madeira, decido que nao e momento para cerimonias e sigo-os. A cena deve parecer estranha: uma enorme fila de monges budistas com chapeus verdes na cabeca desaparece dentro de uma misteriosa capela e no meio deles esta um intimidado mas decidido portugues, totalmente desfasado da musica e do traje, desaparecendo tambem ele pela porta, entre canticos e lentos passos.
La dentro, finalmente o monge mais adulto parece reparar em mim. Arrisco um sorriso timido que parece conquista-lo e sou convidado a ficar. Tambem eles nao devem saber o que fazer perante alguem que os segue para o seu recinto de oracoes para la da hora de fecho do mosteiro. Admito para mim proprio que fui longe demais, mas o dedo do monge aponta para um recanto na escura parede um pouco afastado das almofadas onde os monges se reunem em circulo e decido ficar. Durante meia hora, estou a viver dentro de um cantico ritual que se repete ha centenas de anos neste mosteiro, em tempos partilhados pelo proprio Panchen Lama. Assisto a tudo em silencio, com o coracao aos pulos. Mais uma vez, questiono o porque da minha presenca naquele lugar e porque e que fui eu que tive a sorte de ali estar. Alguma coisa me pos naquele patio aquela hora. E alguma coisa me pos em Sera a hora da licao de teologia. E essas duas experiencias em conjunto ensinam-me que a Curiosidade e um valor que nunca podemos menosprezar. Inconscientemente, estou a combater mais um dos males budistas: a ignorancia.
As tantas, noto algum movimento no exterior da capela. Varios monges que estavam la fora dirigem-se a outra porta. Mais uma vez nao resisto a segui-los, e por esta altura ja estou totalmente confiante da minha pessoa. Nao faco cerimonia nenhuma em segui-los. Olham-me com espanto primeiro, curiosidade depois e finalmente sorriem-me. Estao a preparar o cha, uma mistela intragavel de agua e manteiga de iaque, que todo o tibetano carrega num termos e bebe durante todo o dia. Aproximo-me. Sorrio ao velos preparar a refeicao em enormes potes de barro. Sorriem de volta. Interrogam-me na sua lingua. Nao lhes sei responder, por isso solto uma sonora gargalhada que os parece divertir e cativar. Apontam-me a saida. Desapontado mas respeitador, saio. Para minha supresa, estendar almofadas no patio e apontam-me uma. Sento-me. Sentam-se tambem. Dao-me uma chavena. Quando realizo onde estou, encontro-me no patio dos budas, a partilhar cha de manteiga de iaque com os monges de Tashilhunpo. A conversa e gestual, mas a experiencia e tao fascinante para mim como para eles.
E ali estamos, num entardecer tibetano, a partilhar a nossa sinceridade em toscas trocas de palavras. O momento nao e so magnifico pelo Unico que e e pelo privilegio que tenho em fazer parte daquele ritual tao tibetano do cha. O momento tambem vive, e muito, da humanidade que se transmite mutuamente. Separam-nos a lingua, a nacionalidade, o passado individual de cada um, a religiao e acima de tudo a condicao: um turista ocidental de um lado, monges celibatarios do outro. No entanto, conseguimos passar ali um momento de comunhao, que suplanta a componente exotica que inevitavelmente lhe esta inerente.
Quando os monges se preparam para me servir mais uma chavena daquela intragavel mistela, considero que o sacrificio nao o justifica. O cha e mau demais. Sem ser execravel, e um nojo, uma especie de leite salgado com sabor a iaque, um parente da vaca. Nao ha monge tibetano amigo que valha mais um trago daquilo. Satisfeito com o pragmatismo desta decisao, levanto-me despedimo-nos como velhos amigos. Eles ali ficarao, dia apos dia, cha apos cha, cantico apos cantico, ate serem mais um monge velhinho de bengala. Eu, de volta ao meu mundo, ano apos ano, realizacao apos realizacao, ate ser mais um lisboeta velhinho de bengala.
Caminhos diferentes com um fim comum.
Regressando e partindo
O autocarro do dia seguinte tem a mesma historia do anterior. Mas desta vez, vai ainda mais cheio de gente do campo. Saimos ainda o dia e uma ilusao distante e nao dixa de ser um momento estranhamente mistico fazer-me a estrada do Tibete num autocarro com temperaturas cortantes, hipnotizado por musica tibetana que soa suave sob o ceu estrelado do ultimo halito da madrugada. Quando o dia chega por detras das montanhas, o gelo ainda me queima todo o corpo. Paramos a beira da estrada para nos aquecermos numa fogueira onde um velhinho coze ovos e cha. Recuso o cha mas como com prazer dois fumegantes ovos cozidos, a estalar de quentes. O frio la fora e tao cortante que quase tem cor, meio azulado, meio transparente.
De volta a Lhasa, regresso aos meus locais habituais. Quando cai a noite, encontro-me com amigos no cafe americano. Conversamos durante horas, comemos na rua. Volto a encontrar-me com o amigo espanhol e a americana, fazemos uma pequena festa de despedida. Trocamos presentes espontaneos. E espantosa a dimensao das relacoes que se constroem na estrada. Eles continuarao o seu periplo. Uns pela India, outros pela Mongolia. Outros regressam a casa.
Eu tenho um comboio para apanhar, com direccao a Pequim, atraves de todo o Tibete e o Norte da China. Durara 48 horas. A linha acabou de ser construida em Junho e servira para aumentar o turismo no Tibete. Nao foi por acaso que vim a Lhasa antes dos chineses comecarem a explorar essa linha, no seu projecto de multiplicar exponencialmente o turismo para o Tibete ate 2020.
Ainda bem que assim o fiz. Sem duvida, nao encontrei o que esperava mas o que descobri deixou-me satisfeito: o Tibete nao morreu.
Monday, November 13, 2006
Lhasa
Ganhando altitude
Lhasa e, provavelmente, o maior misterio e a maior incognita para qualquer pessoa curiosa e informada pelo Mundo fora. Crescemos desde ha duas geracoes a ler aventuras de montanhistas em busca da Cidade Proibida, a ouvir o Dalai Lama invocar a restituicao pacifica da autonomia do povo tibetano no seu pais, a ver imagens miticas do inalcancavel Palacio de Potala no cimo de uma colina. Desde pequenos, sabemos que o Tibete esta la bem longe no meio das montanhas, um sonho distante e constantemente adiado pelas nossas agendas apertadas. Desde pequenos, sabemos de tudo o que se passa no Mundo mas dificilmente conseguimos imaginar como sera esta regiao distante, mesmo quando vemos fotografias que nos relembram como gostariamos de la ir. Desde pequenos, sonhamos com o Tibete mas, na hora da verdade, escolhemos outro sitio para passar o nosso tempo livre.
Ontem, aterrei no Tibete.
Ainda desapontado por nao poder vir por terra desde Kathmandu ate Lhasa atraves do enorme planalto tibetano, deixo-me consolar pelas enormes vistas das montanhas que o aviao atravessa. Um mar de nuvens estende-se a perder de vista, povoado de milhares de picos nevados. Primeiro penso que estamos a voar baixo. Depois, acciono finalmente a inteligencia (o que por aqui e dificil, porque muito disto ultrapassa a razao) e compreendo que nao somos nos que voamos baixo, mas as montanhas que sao enormes. Perante isto, sou forcado a esquecer o meu medo de voar.
Na China
Esta frio no aeroporto de Lhasa, uma moderna mas pequena infraestrutura encalhada no meio de enormes montanhas castanhas. A caminho da cidade, a estrada alcatroada atravessa vales glaciares gigantes, rodeados de montanhas e iaques e vacas que pastam, aquecidos pelos seus grossos pelos, a beira de lagos azuis onde flutuam bandeiras de oracao. Se nao tivesse vindo do Nepal, estaria mais uma vez embasbacado com toda esta desumana imensidao. Nao admira que o Homem se preocupe tanto em encontrar a razao da sua existencia, desde ha milenios: perante isto, de facto, nao somos nada. Deixo-me levar pelo frio que entra pela janela do jeep que nos transporta. Finalmente, encontro o frio, que alimenta a alma e varre com a sua aguda displicencia os cheiros putrefactos dos locais por onde penetra. Aqui volto, alias, a uma civilizacao de que ja sentia falta.
A paisagem e interrompida por avenidas cada vez maiores, neons coloridos, bandeiras chinesas por toda a parte. Por momentos, deixo-me abater. Nao quero acreditar que Lhasa e aquilo. No meu jeep, um espanhol e uma americana que a agencia de turismo chinesa meteu no mesmo grupo que eu (nao se pode entrar no Tibete sem pertencer a um "grupo") partilham a minha desilusao. Avancamos cidade adentro, e as luzes e edificios de uma sociedade moderna continuam a rodear-nos. Bank of China. China Telecom. China Post. China Police. China. Quer queira quer nao, estou na China. Nao sou o unico que preferia estar apenas num Tibete independente: parece que todo o Mundo suporta essa causa. Infelizmente, essa vontade nao e suficiente para contrariar o medo que temos da China e a causa tibetana perde-se nos corredores do equilibrio diplomatico. Seja como for, ja e tarde demais: Lhasa e uma cidade chinesa.
Atravessando a fronteira
No entanto, as mas noticias nao ocupam o resto do dia. Quanto mais penetramos no coracao da cidade ja a escurecer, mais os meus sonhos de crianca vao ganhando cor. As ruas comecam a ficar mais estreitas, os neons desaparecem lentamente, aparecem riquexos, bancas de rua, pessoas trajadas como num filme antigo, pequenas casas de pedra e cal, bandeiras de oracao, monges nas ruas.
Saltamos do jeep. Que surpresa! Afinal, os chineses preocuparam-se em desenvolver a cidade a partir do seu centro mas deixaram-no relativamente intacto. Comemos os tres uma sopa de vegetais numa banca de rua, olhados com curiosidade por caras curiosas e amigaveis, balbuciando sabe-se la o que no seu tibetano incompreensivel. Esta frio, um vapor espesso sai das nossas bocas quando saimos para a rua, e toda uma vida se desenrola. Velhinhas passeiam-se pela rua abanando as suas rodas de oracao portateis, monges compram vegetais para o seu jantar, familias inteiras debrucam-se sobre as bancas de fritos. Eu proprio nao resisto a oferta: um homem apresenta sobre uma tabua rudimentar vegetais frescos de todas as cores, batatas as rodelas, chouricos de cor viva, ate peixes de varias formas. Aponto aleatoriamente para a banca, ele pega no que peco e frita ali a minha frente o que sera o meu segundo jantar. Esta uma delicia. Sabe-me tao bem que nao quero saber das consequencias de comer ali na rua. E esta frio. Convenco-me, satisfeito, que o frio mata quaisquer bacterias. Nao sei se e verdade, mas vou assumi-lo durante os proximos dias. A comida de rua e boa demais para ser desaproveitada por um medo mesquinho de uma dor de barriga futura.
Quando adormeco num frio e espartano quarto de 2 dolares, que ocupo por uma questao de camaradagem para com os meus dois novos amigos que parecem radiantes com aquele achado ultra-barato, as ruas ja adormeceram num silencio gelado, e eu deixo-me levar por essa paz.
Um mundo paralelo
O despertar provocado pela vida que ja se desenrola por debaixo da minha janela traz-me um entusiasmo infantil de sede de descoberta. Quando salto da cama pronto para mais um dia, nao faco ainda a menor ideia de onde estou, apesar da amostra que tive na noite anterior.
Ja tinha ouvido falar de que e costume da pratica tibetana do budismo caminhar em volta dos templos e locais sagrados. Ja tinha, alias, tido a oportunidade de constatar isso na minha ida a Boudanath. O que eu nao sabia, era que depois de vielas apertadas da antiga Lhasa, iria ser envolvido num movimento sem retorno de milhares de fieis em peregrinacao ao seu centro espiritual.
Quando dou por mim, estou rodeado de uma multidao que sussurra a meia-voz mantras milenares, num passo lento e firme pelas vielas da velha Lhasa. Naquele momento, nao sei onde estou, mas deixo-me envolver na multidao, numa timida incredulidade perante aquele espectaculo das primeiras luzes da manha. Pessoas de todas as idades caminham lado a lado, com os seus tercos budistas e as ruas rodas de oracao. Velhas desdentadas, monges alaranjados, nomadas de longos e sujos cabelos compridos nos seus trajes de montanha, criancas de todas as proveniencias, gente vestida igual a mim, gente com trapos, gente velha, gente nova, gente que caminha de joelhos, gente que atira incenso para enormes fornos de pedra, gente que, como eu, se engasga com o fumo espesso dessa erva queimada, que empurra rodas de oracao a meio do caminho. Quando dou por mim, sou so mais um naquele movimento espiritual.
A pouco e pouco, comeco a compreender que devo estar perto de um templo importante. Tenho razao. As ruas abrem-se numa praca, e o fieis prostram-se no chao e voltam-se a levantar, num movimento ciclico que repentem vezes sem conta, perante o que venho a perceber ser o templo de Jokhang. Sem saber, as minhas deambulacoes pela madrugada tinham-me levado ao mais importante templo do centro de Lhasa, um dos principais polos espirituais do povo tibetano, que se desloca atraves de milhares de aridos quilometros de deserto e montanha para se poder prostrar perante o Divino (seja ele qual for) neste local.
Observo com um respeito amedrontado este retrato vivo da vida espiritual de todo um povo, e com o passar dos minutos sou envolvido por sorrisos curiosos. Parece que, apesar do meu estatuto de observador, sou benvindo ali. Mais uma razao para me deixar ficar, para me deixar levar, para me sentir envolvido num mundo que so nao e meu porque nao nasci aqui.
Penso na diversidade da especie Humana. Tenho um nomada desdentado prostrado no chao diante de mim. Tem a cara mastigada pelo sol, olhos rasgados quase fechados, um manto colorido sobre todo o seu corpo. Eu tenho um polar cor-de-laranja, calcas de ganga, olhos abertos, dentes intactos e um cabelo ainda a reluzir o brilho do duche diario. Partilhamos uma mesma Humanidade. E dificil de acreditar, visto por fora. De facto, a minha avo nao tem nada a ver com aquela velhinha desgrenhada que me da pela cintura e que despeja incenso pela rua fora, debitando as suas oracoes desdentadas num idioma distante, vestida de panos sujos e de origem remota. E, no entanto, tambem eu me ajoelho nos meus santuarios e tambem a minha avo reza os seus tercos. Alias, eu e a minha avo tambem costumamos movimentar-nos em circulo pelo nosso templo em veneracao, tambem debitamos oracoes a meia voz, tambem nos vergamos respeitosamente perante o nosso Altar. O que e a Via Sacra crista senao uma peregrinacao como esta?
Nascamos onde nascamos, todos partilhamos a mesma inseguranca perante o passar do tempo, a mesma incerteza quanto ao que nos espera na proxima vida, a mesma necessidade de encontrar essa resposta para la do nosso universo fisico. Todos amamos os nossos pais e filhos, todos queremos o melhor para os nossos amigos, todos sentimos necessidade de companhia e conforto. Nao tenho duvidas de que o acaso que nos faz nascer num lugar nos torna diferentes entre nos, mas nao e suficiente para sufocar a Humanidade que partilhamos.
Eu e aquele nomada somos praticamente iguais.
Potala
Ainda tocado por toda aquela manha, limpo as cinzas de inceso que me cobrem e sigo por uma rua paralela. A meio da peregrinacao, uma enorme massa cor-de-laranja pareceu aparecer entre duas casas brancas. Nao estou longe do Palacio de Potala, portanto. O meu passo lento e respiracao arfante perante a altitude e acelerado pelo desejo de voltar a ver o Potala entre duas casas. As ruas alargam-se, aparecem os primeiros carros, lojas chinesas, largas avenidas. Dobro uma esquina. Outra. Esta ali! Que enorme, que majestoso.
Se nao fosse a aberrante praca chinesa e respectivo monumento ao trabalhador espetado em frente ao palacio, o Potala seria mais uma experiencia espiritual, mais uma mistura entre os sonhos infantis e a realidade presente. Assim, passa a ser uma experiencia apenas real: os sonhos infantis de um palacio inalcancavel no topo de uma colina desvanecem-se entre bandeiras chinesas e autocarros que passam. No entanto, nenhuma dessas tentativas desesperadas desse Governo obsoleto e suficiente para sufocar a majestade deste palacio, o seu tamanho centenas de metros acima da minha cabeca, a fe dos milhares de tibetanos que perante ele se prostram em veneracao, talvez ansiando que das suas enormes janelas espreite a cabeca compreensiva do Dalai Lama. Esse desejo, que eu partilho, e um sonho tao distante quanto os quilometros que nos separam do exilado Dalai Lama. No entanto, estou aqui, estamos aqui, para dizer, ainda que em silencio, que para nos esta cidade nao e uma metropole anonima chinesa. Para nos, esta cidade e este Palacio sao um patrimonio pessoal de cada cidadao do Mundo. Nenhum governo formado por pessoas sera algum dia capaz de eliminar sentimentos sinceros. Que ridiculo me parece aquele guarda fardado em frente a bandeira chinesa. Nunca, jamais!, podera uma ocupacao militar penetrar no amago espiritual de um povo. E impossivel. A Fe e, penso, o maior patrimonio do povo tibetano, o seu tesouro e a sua grande muralha.
Regresso a casa
Comprado o bilhete para o dia seguinte, ja que o acesso ao palacio tem um numero diario limitado, regresso a cidade antiga, que e muito maior do que inicialmente eu previra. Movimento-me, entre alguns - surpreendentemente poucos - outros turistas e muitos habitantes locais pelas largas avenidas primeiro, e pelas vielas antigas depois. A populacao tibetana mistura-se com os imigrantes chineses, colonizadores inebriados pela isencao fiscal. Apesar de tudo, sou suficientemente ignorante para nao me aperceber das consequencias desta colonizacao. Nao consigo distinguir totalmente o tibetano do chines e nao vejo sequer sinais de uma coexistencia violenta. No entanto, quem sabe se tudo nao se passa nas entrelinhas. Para mim, a visao e de harmonia. Criancas ocupam as ruas brincando e o resto das pessoas ocupa-se nas suas actividades comerciais ou artesanais. Sao espantosamente curiosos e amigaveis e sou abordado por gente de todas as idades. A minha maquina digital causa o mesmo espanto nas criancas tibetanas que o meu Game Boy de 1990 me causava a mim. Ha grandes lojas nas grandes avenidas e comercio local nas ruas estreitas. Obviamente, evito tudo o que e enorme. Nao vim aqui a procura de saber o que Lhasa e hoje: pela primeira vez numa viagem, em Lhasa procuro o que a cidade era antes de ser o que e, procuro o seu passado, a sua origem. Nao e o centro comercial chines que me fascina, e o templo de Jokhang, o cheiro a incenso nas vielas escuras, o monge solitario que toca no seu bombo num templo iluminado por velas de manteiga. Felizmente, durante toda a tarde apecebo-me que a velha Lhasa pode estar reduzida mas nao esta morta.
Seja como for, nao ha no meu olhar de turista o minimo rancor contra uma unica pessoa nesta cidade, seja qual fora a sua origem ou motivacao. Todos sao afaveis, sorridentes, humanos. Todo o chines emigrado para Lhasa deste os anos 50 nao faz outra coisa senao procurar uma vida melhor para si e para os seus. Nao podemos julgar uma pessoa pelo governo que rege o seu pais, muito menos quando esse governo nao e eleito.
Quando o Sol se comeca a por por detras das montanhas que rodeiam toda a cidade, estou reduzido a um corpo desfalecido sob o cansaco da altitude e das distancias percorridas. Mesmo assim, nao resisto a voltar a Jokhang. Penetro de novo pelas ruelas ja escuras, onde as vozes substituem as cores que vira de manha. Mais ou menos perdido, sigo os sons em direccao ao circuito do templo, ja muito mais calmo mas ainda cheio de fieis em oracao. Pergunto-me se esta persistencia se desenrola pela noite fora. Faco todo o percurso junto a um monge tibetano, impecavel no seu cabelo rapado e trajes laranjas, que acompanha um nomada das montanhas na sua visita a Lhasa. E sujo, tem o cabelo desgrenhado e poucos dentes. Sao irmaos.
Chegados a entrada do templo, apercebo-me que a entrada nao me esta vedada (ao contrario de tantas mesquitas espalhadas pelo mundo musulmano fora, redutos exclusivos dos praticantes dessa religiao que tanto da que pensar ao resto do Mundo) e penetro num universo mistico sem explicacao para um olhar como o meu, cidadao apressado de uma cidade que nao para para meditar. O templo e constituido por uma sucessao de patios internos abertos a um ceu estrelado, rodeados por velas que ardem, pinturas milenares e paredes de madeira cobertas por enormes cortinas com motivos tibetanos bordados a dourado. Esta pouca gente. Deambulo por labirintos dourados e fumegantes, onde monges e cidadaos rodam as suas rodas de oracao e rezam baixinho. Todo o espaco e contiguo, mas parece nao acabar, a medida que os meus passos me levam entre corredores e pequenos patios. No fundo de um deles, uma luz viva traz ate mim canticos a meia voz. Inebriado, persigo o clarao. Provem de uma pequena porta. Atravesso-a. Estou num templo enorme, e nas suas extremidades dezenas de fieis repetem as suas prostracoes defronte a varias capelas, cada uma com a sua divindade. No centro, o altar principal, a volta do qual se reunem os monges em oracao.
Ja e tarde, sou o unico turista ali. Nem sequer me cobram entrada ja. Mais uma vez me surpreendo pela indiferenca com que me acolhem. Nao querem saber. Estao concentrados nas suas venias e oracoes. As faces carregam o peso de uma Fe inabalavel, viva, pessoal. Totalmente intrasmissivel: apesar de sentir a divindade do lugar, nao sei interpreta-la. So sei que esta la.
Saio para a noite escura e procuro entre vultos na noite o caminho de volta a rua do meu hotel. Atraves de uma montra de vidro, vejo enormes cafes fumegantes bebidos por turistas de toda a parte, que ali partilham as suas experiencias e leem livros em tranquilidade. Sinto-me tao vivo como fisicamente desfeito. Era mesmo desta enorme chavena quente que eu precisava.
Lhasa e, provavelmente, o maior misterio e a maior incognita para qualquer pessoa curiosa e informada pelo Mundo fora. Crescemos desde ha duas geracoes a ler aventuras de montanhistas em busca da Cidade Proibida, a ouvir o Dalai Lama invocar a restituicao pacifica da autonomia do povo tibetano no seu pais, a ver imagens miticas do inalcancavel Palacio de Potala no cimo de uma colina. Desde pequenos, sabemos que o Tibete esta la bem longe no meio das montanhas, um sonho distante e constantemente adiado pelas nossas agendas apertadas. Desde pequenos, sabemos de tudo o que se passa no Mundo mas dificilmente conseguimos imaginar como sera esta regiao distante, mesmo quando vemos fotografias que nos relembram como gostariamos de la ir. Desde pequenos, sonhamos com o Tibete mas, na hora da verdade, escolhemos outro sitio para passar o nosso tempo livre.
Ontem, aterrei no Tibete.
Ainda desapontado por nao poder vir por terra desde Kathmandu ate Lhasa atraves do enorme planalto tibetano, deixo-me consolar pelas enormes vistas das montanhas que o aviao atravessa. Um mar de nuvens estende-se a perder de vista, povoado de milhares de picos nevados. Primeiro penso que estamos a voar baixo. Depois, acciono finalmente a inteligencia (o que por aqui e dificil, porque muito disto ultrapassa a razao) e compreendo que nao somos nos que voamos baixo, mas as montanhas que sao enormes. Perante isto, sou forcado a esquecer o meu medo de voar.
Na China
Esta frio no aeroporto de Lhasa, uma moderna mas pequena infraestrutura encalhada no meio de enormes montanhas castanhas. A caminho da cidade, a estrada alcatroada atravessa vales glaciares gigantes, rodeados de montanhas e iaques e vacas que pastam, aquecidos pelos seus grossos pelos, a beira de lagos azuis onde flutuam bandeiras de oracao. Se nao tivesse vindo do Nepal, estaria mais uma vez embasbacado com toda esta desumana imensidao. Nao admira que o Homem se preocupe tanto em encontrar a razao da sua existencia, desde ha milenios: perante isto, de facto, nao somos nada. Deixo-me levar pelo frio que entra pela janela do jeep que nos transporta. Finalmente, encontro o frio, que alimenta a alma e varre com a sua aguda displicencia os cheiros putrefactos dos locais por onde penetra. Aqui volto, alias, a uma civilizacao de que ja sentia falta.
A paisagem e interrompida por avenidas cada vez maiores, neons coloridos, bandeiras chinesas por toda a parte. Por momentos, deixo-me abater. Nao quero acreditar que Lhasa e aquilo. No meu jeep, um espanhol e uma americana que a agencia de turismo chinesa meteu no mesmo grupo que eu (nao se pode entrar no Tibete sem pertencer a um "grupo") partilham a minha desilusao. Avancamos cidade adentro, e as luzes e edificios de uma sociedade moderna continuam a rodear-nos. Bank of China. China Telecom. China Post. China Police. China. Quer queira quer nao, estou na China. Nao sou o unico que preferia estar apenas num Tibete independente: parece que todo o Mundo suporta essa causa. Infelizmente, essa vontade nao e suficiente para contrariar o medo que temos da China e a causa tibetana perde-se nos corredores do equilibrio diplomatico. Seja como for, ja e tarde demais: Lhasa e uma cidade chinesa.
Atravessando a fronteira
No entanto, as mas noticias nao ocupam o resto do dia. Quanto mais penetramos no coracao da cidade ja a escurecer, mais os meus sonhos de crianca vao ganhando cor. As ruas comecam a ficar mais estreitas, os neons desaparecem lentamente, aparecem riquexos, bancas de rua, pessoas trajadas como num filme antigo, pequenas casas de pedra e cal, bandeiras de oracao, monges nas ruas.
Saltamos do jeep. Que surpresa! Afinal, os chineses preocuparam-se em desenvolver a cidade a partir do seu centro mas deixaram-no relativamente intacto. Comemos os tres uma sopa de vegetais numa banca de rua, olhados com curiosidade por caras curiosas e amigaveis, balbuciando sabe-se la o que no seu tibetano incompreensivel. Esta frio, um vapor espesso sai das nossas bocas quando saimos para a rua, e toda uma vida se desenrola. Velhinhas passeiam-se pela rua abanando as suas rodas de oracao portateis, monges compram vegetais para o seu jantar, familias inteiras debrucam-se sobre as bancas de fritos. Eu proprio nao resisto a oferta: um homem apresenta sobre uma tabua rudimentar vegetais frescos de todas as cores, batatas as rodelas, chouricos de cor viva, ate peixes de varias formas. Aponto aleatoriamente para a banca, ele pega no que peco e frita ali a minha frente o que sera o meu segundo jantar. Esta uma delicia. Sabe-me tao bem que nao quero saber das consequencias de comer ali na rua. E esta frio. Convenco-me, satisfeito, que o frio mata quaisquer bacterias. Nao sei se e verdade, mas vou assumi-lo durante os proximos dias. A comida de rua e boa demais para ser desaproveitada por um medo mesquinho de uma dor de barriga futura.
Quando adormeco num frio e espartano quarto de 2 dolares, que ocupo por uma questao de camaradagem para com os meus dois novos amigos que parecem radiantes com aquele achado ultra-barato, as ruas ja adormeceram num silencio gelado, e eu deixo-me levar por essa paz.
Um mundo paralelo
O despertar provocado pela vida que ja se desenrola por debaixo da minha janela traz-me um entusiasmo infantil de sede de descoberta. Quando salto da cama pronto para mais um dia, nao faco ainda a menor ideia de onde estou, apesar da amostra que tive na noite anterior.
Ja tinha ouvido falar de que e costume da pratica tibetana do budismo caminhar em volta dos templos e locais sagrados. Ja tinha, alias, tido a oportunidade de constatar isso na minha ida a Boudanath. O que eu nao sabia, era que depois de vielas apertadas da antiga Lhasa, iria ser envolvido num movimento sem retorno de milhares de fieis em peregrinacao ao seu centro espiritual.
Quando dou por mim, estou rodeado de uma multidao que sussurra a meia-voz mantras milenares, num passo lento e firme pelas vielas da velha Lhasa. Naquele momento, nao sei onde estou, mas deixo-me envolver na multidao, numa timida incredulidade perante aquele espectaculo das primeiras luzes da manha. Pessoas de todas as idades caminham lado a lado, com os seus tercos budistas e as ruas rodas de oracao. Velhas desdentadas, monges alaranjados, nomadas de longos e sujos cabelos compridos nos seus trajes de montanha, criancas de todas as proveniencias, gente vestida igual a mim, gente com trapos, gente velha, gente nova, gente que caminha de joelhos, gente que atira incenso para enormes fornos de pedra, gente que, como eu, se engasga com o fumo espesso dessa erva queimada, que empurra rodas de oracao a meio do caminho. Quando dou por mim, sou so mais um naquele movimento espiritual.
A pouco e pouco, comeco a compreender que devo estar perto de um templo importante. Tenho razao. As ruas abrem-se numa praca, e o fieis prostram-se no chao e voltam-se a levantar, num movimento ciclico que repentem vezes sem conta, perante o que venho a perceber ser o templo de Jokhang. Sem saber, as minhas deambulacoes pela madrugada tinham-me levado ao mais importante templo do centro de Lhasa, um dos principais polos espirituais do povo tibetano, que se desloca atraves de milhares de aridos quilometros de deserto e montanha para se poder prostrar perante o Divino (seja ele qual for) neste local.
Observo com um respeito amedrontado este retrato vivo da vida espiritual de todo um povo, e com o passar dos minutos sou envolvido por sorrisos curiosos. Parece que, apesar do meu estatuto de observador, sou benvindo ali. Mais uma razao para me deixar ficar, para me deixar levar, para me sentir envolvido num mundo que so nao e meu porque nao nasci aqui.
Penso na diversidade da especie Humana. Tenho um nomada desdentado prostrado no chao diante de mim. Tem a cara mastigada pelo sol, olhos rasgados quase fechados, um manto colorido sobre todo o seu corpo. Eu tenho um polar cor-de-laranja, calcas de ganga, olhos abertos, dentes intactos e um cabelo ainda a reluzir o brilho do duche diario. Partilhamos uma mesma Humanidade. E dificil de acreditar, visto por fora. De facto, a minha avo nao tem nada a ver com aquela velhinha desgrenhada que me da pela cintura e que despeja incenso pela rua fora, debitando as suas oracoes desdentadas num idioma distante, vestida de panos sujos e de origem remota. E, no entanto, tambem eu me ajoelho nos meus santuarios e tambem a minha avo reza os seus tercos. Alias, eu e a minha avo tambem costumamos movimentar-nos em circulo pelo nosso templo em veneracao, tambem debitamos oracoes a meia voz, tambem nos vergamos respeitosamente perante o nosso Altar. O que e a Via Sacra crista senao uma peregrinacao como esta?
Nascamos onde nascamos, todos partilhamos a mesma inseguranca perante o passar do tempo, a mesma incerteza quanto ao que nos espera na proxima vida, a mesma necessidade de encontrar essa resposta para la do nosso universo fisico. Todos amamos os nossos pais e filhos, todos queremos o melhor para os nossos amigos, todos sentimos necessidade de companhia e conforto. Nao tenho duvidas de que o acaso que nos faz nascer num lugar nos torna diferentes entre nos, mas nao e suficiente para sufocar a Humanidade que partilhamos.
Eu e aquele nomada somos praticamente iguais.
Potala
Ainda tocado por toda aquela manha, limpo as cinzas de inceso que me cobrem e sigo por uma rua paralela. A meio da peregrinacao, uma enorme massa cor-de-laranja pareceu aparecer entre duas casas brancas. Nao estou longe do Palacio de Potala, portanto. O meu passo lento e respiracao arfante perante a altitude e acelerado pelo desejo de voltar a ver o Potala entre duas casas. As ruas alargam-se, aparecem os primeiros carros, lojas chinesas, largas avenidas. Dobro uma esquina. Outra. Esta ali! Que enorme, que majestoso.
Se nao fosse a aberrante praca chinesa e respectivo monumento ao trabalhador espetado em frente ao palacio, o Potala seria mais uma experiencia espiritual, mais uma mistura entre os sonhos infantis e a realidade presente. Assim, passa a ser uma experiencia apenas real: os sonhos infantis de um palacio inalcancavel no topo de uma colina desvanecem-se entre bandeiras chinesas e autocarros que passam. No entanto, nenhuma dessas tentativas desesperadas desse Governo obsoleto e suficiente para sufocar a majestade deste palacio, o seu tamanho centenas de metros acima da minha cabeca, a fe dos milhares de tibetanos que perante ele se prostram em veneracao, talvez ansiando que das suas enormes janelas espreite a cabeca compreensiva do Dalai Lama. Esse desejo, que eu partilho, e um sonho tao distante quanto os quilometros que nos separam do exilado Dalai Lama. No entanto, estou aqui, estamos aqui, para dizer, ainda que em silencio, que para nos esta cidade nao e uma metropole anonima chinesa. Para nos, esta cidade e este Palacio sao um patrimonio pessoal de cada cidadao do Mundo. Nenhum governo formado por pessoas sera algum dia capaz de eliminar sentimentos sinceros. Que ridiculo me parece aquele guarda fardado em frente a bandeira chinesa. Nunca, jamais!, podera uma ocupacao militar penetrar no amago espiritual de um povo. E impossivel. A Fe e, penso, o maior patrimonio do povo tibetano, o seu tesouro e a sua grande muralha.
Regresso a casa
Comprado o bilhete para o dia seguinte, ja que o acesso ao palacio tem um numero diario limitado, regresso a cidade antiga, que e muito maior do que inicialmente eu previra. Movimento-me, entre alguns - surpreendentemente poucos - outros turistas e muitos habitantes locais pelas largas avenidas primeiro, e pelas vielas antigas depois. A populacao tibetana mistura-se com os imigrantes chineses, colonizadores inebriados pela isencao fiscal. Apesar de tudo, sou suficientemente ignorante para nao me aperceber das consequencias desta colonizacao. Nao consigo distinguir totalmente o tibetano do chines e nao vejo sequer sinais de uma coexistencia violenta. No entanto, quem sabe se tudo nao se passa nas entrelinhas. Para mim, a visao e de harmonia. Criancas ocupam as ruas brincando e o resto das pessoas ocupa-se nas suas actividades comerciais ou artesanais. Sao espantosamente curiosos e amigaveis e sou abordado por gente de todas as idades. A minha maquina digital causa o mesmo espanto nas criancas tibetanas que o meu Game Boy de 1990 me causava a mim. Ha grandes lojas nas grandes avenidas e comercio local nas ruas estreitas. Obviamente, evito tudo o que e enorme. Nao vim aqui a procura de saber o que Lhasa e hoje: pela primeira vez numa viagem, em Lhasa procuro o que a cidade era antes de ser o que e, procuro o seu passado, a sua origem. Nao e o centro comercial chines que me fascina, e o templo de Jokhang, o cheiro a incenso nas vielas escuras, o monge solitario que toca no seu bombo num templo iluminado por velas de manteiga. Felizmente, durante toda a tarde apecebo-me que a velha Lhasa pode estar reduzida mas nao esta morta.
Seja como for, nao ha no meu olhar de turista o minimo rancor contra uma unica pessoa nesta cidade, seja qual fora a sua origem ou motivacao. Todos sao afaveis, sorridentes, humanos. Todo o chines emigrado para Lhasa deste os anos 50 nao faz outra coisa senao procurar uma vida melhor para si e para os seus. Nao podemos julgar uma pessoa pelo governo que rege o seu pais, muito menos quando esse governo nao e eleito.
Quando o Sol se comeca a por por detras das montanhas que rodeiam toda a cidade, estou reduzido a um corpo desfalecido sob o cansaco da altitude e das distancias percorridas. Mesmo assim, nao resisto a voltar a Jokhang. Penetro de novo pelas ruelas ja escuras, onde as vozes substituem as cores que vira de manha. Mais ou menos perdido, sigo os sons em direccao ao circuito do templo, ja muito mais calmo mas ainda cheio de fieis em oracao. Pergunto-me se esta persistencia se desenrola pela noite fora. Faco todo o percurso junto a um monge tibetano, impecavel no seu cabelo rapado e trajes laranjas, que acompanha um nomada das montanhas na sua visita a Lhasa. E sujo, tem o cabelo desgrenhado e poucos dentes. Sao irmaos.
Chegados a entrada do templo, apercebo-me que a entrada nao me esta vedada (ao contrario de tantas mesquitas espalhadas pelo mundo musulmano fora, redutos exclusivos dos praticantes dessa religiao que tanto da que pensar ao resto do Mundo) e penetro num universo mistico sem explicacao para um olhar como o meu, cidadao apressado de uma cidade que nao para para meditar. O templo e constituido por uma sucessao de patios internos abertos a um ceu estrelado, rodeados por velas que ardem, pinturas milenares e paredes de madeira cobertas por enormes cortinas com motivos tibetanos bordados a dourado. Esta pouca gente. Deambulo por labirintos dourados e fumegantes, onde monges e cidadaos rodam as suas rodas de oracao e rezam baixinho. Todo o espaco e contiguo, mas parece nao acabar, a medida que os meus passos me levam entre corredores e pequenos patios. No fundo de um deles, uma luz viva traz ate mim canticos a meia voz. Inebriado, persigo o clarao. Provem de uma pequena porta. Atravesso-a. Estou num templo enorme, e nas suas extremidades dezenas de fieis repetem as suas prostracoes defronte a varias capelas, cada uma com a sua divindade. No centro, o altar principal, a volta do qual se reunem os monges em oracao.
Ja e tarde, sou o unico turista ali. Nem sequer me cobram entrada ja. Mais uma vez me surpreendo pela indiferenca com que me acolhem. Nao querem saber. Estao concentrados nas suas venias e oracoes. As faces carregam o peso de uma Fe inabalavel, viva, pessoal. Totalmente intrasmissivel: apesar de sentir a divindade do lugar, nao sei interpreta-la. So sei que esta la.
Saio para a noite escura e procuro entre vultos na noite o caminho de volta a rua do meu hotel. Atraves de uma montra de vidro, vejo enormes cafes fumegantes bebidos por turistas de toda a parte, que ali partilham as suas experiencias e leem livros em tranquilidade. Sinto-me tao vivo como fisicamente desfeito. Era mesmo desta enorme chavena quente que eu precisava.
Sunday, November 12, 2006
Desencontros
"Hi!" diz-me alegre, e encosta a sua bicicleta a beira da estrada. E linda. Tem um sorriso perfeito e longos cabelos negros. "Where you from?" Veste uma longa tunica cor-de-laranja vivo, por cima das calcas azuis. Sorri com timidez. Fala com a vontade. Estamos a beira de uma barulhenta estrada em Sauraha, todo o Mundo passa por nos. Mas falamos muito e ela sorri. Vai ser professora um dia. Um dia em que nao a verei. Passam bicicletas, carros, jeeps, riquexos, pessoas, carrocas e camioes. As pessoas olham. Mas estamos so os dois, fechados um no outro. Passam minutos, sorrisos, lindas gargalhadas. Fotografo-a. Nao a quero perder. E tal com chegou, despede-se. "Bye!". E salta para a bicicleta, e pedala devagar. Pe ante pe, desaparece entre tantos outros pedais, tantas outras cores, tantos outros longos cabelos negros, ate ser so um ponto distante, de volta ao seu mundo e deixando-me perdido no meu.
No Reino do Tigre
Rio abaixo
Duas australianas, um casal ingles e um reformado japones ajudam-me a remar rio abaixo ate perto do Parque Nacional de Chitwan, uma enorme selva onde tigres formam o topo da cadeia alimentar, partilhando o seu territorio com rinocerontes asiaticos, macacos e crocodilos. O dia de rafting leva-me atraves de um rio azul-baco rodeado de verdes montanhas, paralelo a estrada principal do Nepal, de maneira que a nossa diversao e acompanhada de gritos animados dos tejadilhos dos autocarros nepaleses. Um dia diferente, alegre, ocidental mas natural. Passamos por debaixo de enormes pontes suspensas, aqui e ali ocupadas por mais um sari colorido vestido por mais um linda nepalesa ou mais um veloz e trabalhador nepales.
Ao longo desta minha jornada tenho observado como e bonita a mulher nepalesa, tanto no campo como na cidade. Decerto a mulher da cidade tem, aos meus olhos, um ar muito mais asseado; a mulher da cidade que o pode fazer, pinta-se, cuida-se, sabe o que veste e como o deve vestir. A nepalesa da vida dura do campo veste sobre a sua bela aparencia as roupas que tem, mais numa logica de cobrir-se e aquecer-se. Mas sao lindas as suas feicoes, com os seus dentes direitos, olhos vivos e rasgados, narizes proporcionados e longos e lisos cabelos negros. Em Kathmandu, encantam-me nos seus saris coloridos, fardas de universidade ou roupas ocidentais. Em cada esquina sou surpreendido por mulheres que considero lindas. Apesar de tudo, na sujidade da cidade essa beleza nao corresponde a uma atraccao fisica. Seja como for, por vezes e tentadora a forma como sorriem e olham timidas e curiosas para o turista que as observa, tambem curioso mas talvez menos timido. Os homens nao correspondem ao elevado padrao feminino, e neles noto muito mais a diversidade etnica do pais. Regra geral, tem um aspecto muito mais sujo do que elas, nao se arranjam, embora a nova geracao faca obviamente um esforco para modernizar a ocidental a sua maneira de vestir. Uma curiosa sucessao de pensamentos levou-me alias a concluir que o jovem nepales nao e tao feio como o adulto. Ja a crianca nepalesa possui um encanto e uma beleza unicos, nas suas caras redondas e olhos longilineos, pese embora esses serem os tracos associados a raca mongoloide, uma das duas racas que forma, com a indo-ariana (na minha opiniao, muito mais feia), o painel racial nepales, de onde originam todas as suas etnias.
Todas as mulheres tem desde bebes o nariz furado e as jovens usam normalmente o cabelo apanhado. Os homens tem-no muito curto e geralmente forte, e foram rarissimos os carecas que encontrei pelo Nepal fora. (Em contrapartida, parece-me que nao ha um unico holandes na posse de todo o cabelo com que originalmente foi dotado). Muitos usam bigode e, ou muito me engano ou sao maioritariamente os de raca indo-ariana que o fazem. Penso alias, sem complexos, que o homem mongoloide e de muito mais agradavel feicao do que o seu compatriota indo-ariano, nao tendo no final da minha jornada nepalesa conseguido entender se a mesma formula se aplica para a populacao feminina, que parece surpreender pela sua beleza qualquer que seja a sua origem genetica.
A mulher nepalesa acompanha a todo o momento a beleza de qualquer paisagem em que me encontre. A medida que os dias passam, e para mim um dado cada vez mais adquirido que e ela a verdadeira joia do Nepal.
Entrando na selva
Acompanhado dessas caras que me olham amigaveis, atravesso os cenarios povoados de rios e montanhas num autocarro que me leva durante duas horas desde o final do rafting ate a regiao do Terai. De repente, as montanhas dao lugar a incontaveis arvores e um ar mais denso entra pela janela por onde a minha cabeca espreita. Aqui, nao ha montanhas. Em menos de nada, paro numa poeirenta rua e sou recebido por alguem que me chama.
"Mr Luis! Mr Luis!" - desta vez, tinha decidido esticar o orcamento e instalar-me num lodge dentro do parque, isto e, no meio da selva. Deixo de ser Luis para ser Mr. Luis. Pelos vistos, os dolares ate conseguem mudar o nosso nome.
Uma jornada de jeep pela selva adentro preenche-me por completo depois de um dia de rafting divertido mas acessivel em qualquer parte do Mundo. Aqui, na escuridao de um cenario incognito, conduzido por alguem que nao conheco num jeep que guincha entre buracos e enormes charcos, no reino do tigre, estou de novo sozinho comigo.. Cada vez penetramos mais naquela densidade, sem falar. Ele nao fala ingles. Passam kilometros e estou longe de qualquer orientacao, seguranca, voz.
De repente, a selva abre-se numa enorme planicie. Os fracos farois nao sao suficientes para disfarcar a imensa escuridao onde estou. Que Mundo distante. E esta frio, no vento que entra pelas janelas abertas e me abanam o cabelo. Penso no que acontece se o motor falhar. Provavelmente um tigre vira curioso em busca da sua refeicao. Esta noite escura. Eles andam ali, escondidos por detras da luz dos nossos farois.
De repente, um vulto na noite. O carro abranda. O condutor manda-me sair. Ouco agua. Vejo um rio. Uma canoa. Olho em volta antes de sair do jeep. Sei la o que me observa na escuridao. Duas trocas de palavras em nepales e metem-me na canoa. Entro a medo. So ouco a corrente do rio e o suave fluir da embarcacao nas aguas escuras. Sou um personagem vivo num auto de Gil Vicente, guiado por um barqueiro silencioso atraves de um rio cheio de crocodilos. Quando chegamos a margem, salto para a noite escura. Comeco a duvidar do que faco ali e se fiz bem em responder aos chamamentos do homem que me esperava na estacao de autocarros. Dois farois acendem-se. Esta ali outro jeep.
"Welcome Sir!". Que alivio! O jeep tem o nome do hotel escrito. "Chitwan Jungle Lodge". Estou a salvo. Nunca estive em perigo. Estava tudo na minha cabeca. Ainda bem, pelo menos durante uma hora senti-me um intrepido explorador vitoriano.
Que ingenuo! Que feliz!
Rinocerontes e elefantes na madrugada
Sou recebido no lodge com um tratamento que nao se adequa ao que tenho recebido ate agora. O gerente recebe-me e explica-me o que posso fazer nos dias seguintes: passeios de canoa, safaris de elefante, caminhadas na selva. A minha volta, os clientes reunem-se em mesas e bebem um copo antes da chamada para jantar. Fui o ultimo a chegar. Toda a gente sabe quem e o "Louis" que chegou tres horas depois do suposto porque foi mimado e quis vir de rafting em vez de autocarro. Mas e tudo gente educada, simpatica, em camaradagem. Um quadro de argila tem o nome de cada "guest" e o seu plano de actividades para o dia seguinte. Todo o hotel e construido em madeira, iluminado a meia-luz por um gerador proprio. Cada quarto e uma pequena cabana de madeira, sem luz electrica. Um pequeno refugio no coracao da selva, onde passarei as proximas duas noites. Quando me deito depois de intensas e interessantes conversas a volta de uma fogueira improvisada impulsionada por uma alema (numa crowd internacional maioritariamente de ferias, o que trouxe alguma diversidade as relacoes que tinha vindo a manter), todos os barulhos da selva penetram atraves da madeira e embalam o meu sono profundo, perdido num lugar sem mapa e ilimunado por um pequeno candeeiro a querosene.
De madrugada, todo o conforto de um cha quente antes de me encaminharem para uma plataforma de 5 metros de altura. Ouco passos pesados. Um elefante. Dois. Tres. Somos doze pessoas em quatro elefantes e a plataforma serve para subirmos para o seu dorso. Pela primeira vez vejo um elefante asiatico. E muito menor, mais elegante, menos elefante do que o africano. Mas ainda assim enorme, macico, animal. Um animal formidavel. Penetramos na selva no seu passo ritmado, acompanhados apenas pelo silencio da madrugada. Esta quase escuro. Nao falamos. Os nossos olhos perscrutam extasiados as abertas na vegetacao. Onde esta o tigre? Onde esta o rinoceronte?
Algo se agita. Olhamos. Nao. Era so mais uma copa de arvore que o nosso elefante devora. Dez agitacoes e alguns kilometros depois, nao e um elefante a mover a vegetacao. E um rinoceronte. Esta mesmo ali ao nosso lado, enorme, assustador, primitivo, selvagem. Estou sentado num elefante perante um rinoceronte asiatico selvagem numa selva perdida do Nepal. O silencio sepulcral que domina os passageiros do elefante estende-se ao cerebro, ao resto do corpo. O momento e paralisante, intenso, unico. O Sol nasce por entre a vegetacao. Aqui, as altas arvores de trinta metros dao lugar a uma vegetacao amarelada, perfeita para o rinoceronte dissimular. Ou o tigre. Mas, na restante hora, tudo o que vemos sao veados fugidios e a vegetacao a acordar para mais um dia.
Durante o resto da manha, passa-se o pequeno-almoco, conheco gente, troco impressoes. Aqui, os turistas sao diferentes. Tem mais dinheiro, empregos de carreira, conversas mais mundanas. De certa forma, em Chitwan encontro as pessoas mais interessantes da viagem, gente empenhada numa troca de impressoes intensa, profunda, informada. Comprometida. A turba que viaja a volta do Mundo e mais relaxada, descontraida. Gosto dos dois Mundos.
Temos programado um passeio de canoa. Deixamo-nos vogar ao longo do rio, a medida que a vida animal se passeia nas margens e a colorida populacao local desafia as regras do parque e penetra nos seus limites, para se banhar na agua fresca. Aqui, nao ha crocodilos. Vimo-los mais a frente, num charco lamacento, silenciosos, cinicos, sonolentamente a procura do seu almoco. O dia passa devagar, ao ritmo da selva. Chega o almoco. Depois, reunimo-nos em volta de um enorme elefante e ouvimos explicacoes sobre o que o distingue do africano. Ouvimos como se amestra um elefante, compreendemos como sao bem tratados no seu cativeiro. Isso tira-me um certo peso da consciencia: o meu prazer derivara do cativeiro de um animal e isso deixara-me algo desconfortavel. Depois o ver ali, a meio metro de mim, solto e sem nada que o impedisse de me atacar com a sua enorme tromba, compreendo que o homem e o elefante trabalham em conjunto em Chitwan. Isso deixa-me descansado para o resto da tarde e para o safari seguinte onde nao vimos um unico animal selvagem mas compreendemos o que e o silencio da selva, antes do Sol se por.
Alias, quanto o enorme disco alaranjado inicia o final do seu ciclo descendente, sou eu que nao consigo silenciar as minhas emocoes. Estamos fora da vegetacao numa planicie com ervas apenas de dois metros. Como o elefante e maior do que isso, vejo como o sol desaparece la atras, enorme, limpido, astral. Quente. Asiatico. Longinquo. Inalcancavel. Meu.
Maoistas, apartheid, o campo ingles e as tribos africanas
Regressamos ja a noite vai escura. Todo o lodge se reune junto ao bar, em animadas conversas de fim de tarde. Partilho cervejas com um ingles nascido no Zimbabue e emigrado para Joanesburgo primeiro e para Nottingham depois. Uma canadiana de Toronto que acabara de ser despedida do seu ambicioso emprego e viaja pela Asia. Um nepales que acompanha um grupo de japoneses no seu tour pelo Nepal. Um investment banker ingles, com experiencia tantos nos escritorios da city como nos pubs de Sidney durante a sua volta ao Mundo de anos idos. E um jardineiro pre-reformado dos arredores de Oxford.
Durante toda a minha vida, nunca tivera uma conversa tao absorvente, rica, diversa, equilibrada. Passam cervejas atras de cervejas, caras serias e gargalhadas. Passa a chamada para jantar, passa o jantar, passa o cha, passa o cafe, passa a hora em que os restantes guests se vao deitar. Passa tudo mas nos estamos ali fixos uns nos outros, partilhando as nossas vidas. Ouco em primeira mao o relato vivo do fim do apartheid, absorvo a opiniao espantosamente culta de um nepales letrado sobre os dias historicos que agitam o seu pais, conheco as sensacoes de uma canadiana durante meses na China rural, apercebo-me dos desejos e motivacoes de um ingles de 60 anos que caminhou durante 20 dias de trekking no Evereste. Discutimos o porque do sub-desenvolvimento de Africa, de como o seu sistema tribal nao permite a sua governacao, discutimos as vidas vertiginosas de Londres, a formacao da Uniao Europeia, o lugar que Portugal ali ocupa, as relacoes entre o Canada e os EUA, entre a Africa do Sul e o resto do Mundo. Falamos de tudo.
Quando abandonamos o bar ja cambaleantes, sabemos que na escuridao algo acompanha com o olhar o nossos passos fugidios em direccao as cabanas. Nao vimos o tigre em Chitwan, mas vimos muito mais. E, seja como for, sabemos que ele esta la, a espreita. No fundo, talvez tenhamos um pacto tacito: ele nao se mostra, mas tambem nao agride. Estamos no seu Reino.
So isso, ja me preenche por completo, antes da minha partida, do meu regresso a vida humana e a estrada poeirenta onde o autocarro me recolhe em direccao ao regresso a Kathmandu.
Duas australianas, um casal ingles e um reformado japones ajudam-me a remar rio abaixo ate perto do Parque Nacional de Chitwan, uma enorme selva onde tigres formam o topo da cadeia alimentar, partilhando o seu territorio com rinocerontes asiaticos, macacos e crocodilos. O dia de rafting leva-me atraves de um rio azul-baco rodeado de verdes montanhas, paralelo a estrada principal do Nepal, de maneira que a nossa diversao e acompanhada de gritos animados dos tejadilhos dos autocarros nepaleses. Um dia diferente, alegre, ocidental mas natural. Passamos por debaixo de enormes pontes suspensas, aqui e ali ocupadas por mais um sari colorido vestido por mais um linda nepalesa ou mais um veloz e trabalhador nepales.
Ao longo desta minha jornada tenho observado como e bonita a mulher nepalesa, tanto no campo como na cidade. Decerto a mulher da cidade tem, aos meus olhos, um ar muito mais asseado; a mulher da cidade que o pode fazer, pinta-se, cuida-se, sabe o que veste e como o deve vestir. A nepalesa da vida dura do campo veste sobre a sua bela aparencia as roupas que tem, mais numa logica de cobrir-se e aquecer-se. Mas sao lindas as suas feicoes, com os seus dentes direitos, olhos vivos e rasgados, narizes proporcionados e longos e lisos cabelos negros. Em Kathmandu, encantam-me nos seus saris coloridos, fardas de universidade ou roupas ocidentais. Em cada esquina sou surpreendido por mulheres que considero lindas. Apesar de tudo, na sujidade da cidade essa beleza nao corresponde a uma atraccao fisica. Seja como for, por vezes e tentadora a forma como sorriem e olham timidas e curiosas para o turista que as observa, tambem curioso mas talvez menos timido. Os homens nao correspondem ao elevado padrao feminino, e neles noto muito mais a diversidade etnica do pais. Regra geral, tem um aspecto muito mais sujo do que elas, nao se arranjam, embora a nova geracao faca obviamente um esforco para modernizar a ocidental a sua maneira de vestir. Uma curiosa sucessao de pensamentos levou-me alias a concluir que o jovem nepales nao e tao feio como o adulto. Ja a crianca nepalesa possui um encanto e uma beleza unicos, nas suas caras redondas e olhos longilineos, pese embora esses serem os tracos associados a raca mongoloide, uma das duas racas que forma, com a indo-ariana (na minha opiniao, muito mais feia), o painel racial nepales, de onde originam todas as suas etnias.
Todas as mulheres tem desde bebes o nariz furado e as jovens usam normalmente o cabelo apanhado. Os homens tem-no muito curto e geralmente forte, e foram rarissimos os carecas que encontrei pelo Nepal fora. (Em contrapartida, parece-me que nao ha um unico holandes na posse de todo o cabelo com que originalmente foi dotado). Muitos usam bigode e, ou muito me engano ou sao maioritariamente os de raca indo-ariana que o fazem. Penso alias, sem complexos, que o homem mongoloide e de muito mais agradavel feicao do que o seu compatriota indo-ariano, nao tendo no final da minha jornada nepalesa conseguido entender se a mesma formula se aplica para a populacao feminina, que parece surpreender pela sua beleza qualquer que seja a sua origem genetica.
A mulher nepalesa acompanha a todo o momento a beleza de qualquer paisagem em que me encontre. A medida que os dias passam, e para mim um dado cada vez mais adquirido que e ela a verdadeira joia do Nepal.
Entrando na selva
Acompanhado dessas caras que me olham amigaveis, atravesso os cenarios povoados de rios e montanhas num autocarro que me leva durante duas horas desde o final do rafting ate a regiao do Terai. De repente, as montanhas dao lugar a incontaveis arvores e um ar mais denso entra pela janela por onde a minha cabeca espreita. Aqui, nao ha montanhas. Em menos de nada, paro numa poeirenta rua e sou recebido por alguem que me chama.
"Mr Luis! Mr Luis!" - desta vez, tinha decidido esticar o orcamento e instalar-me num lodge dentro do parque, isto e, no meio da selva. Deixo de ser Luis para ser Mr. Luis. Pelos vistos, os dolares ate conseguem mudar o nosso nome.
Uma jornada de jeep pela selva adentro preenche-me por completo depois de um dia de rafting divertido mas acessivel em qualquer parte do Mundo. Aqui, na escuridao de um cenario incognito, conduzido por alguem que nao conheco num jeep que guincha entre buracos e enormes charcos, no reino do tigre, estou de novo sozinho comigo.. Cada vez penetramos mais naquela densidade, sem falar. Ele nao fala ingles. Passam kilometros e estou longe de qualquer orientacao, seguranca, voz.
De repente, a selva abre-se numa enorme planicie. Os fracos farois nao sao suficientes para disfarcar a imensa escuridao onde estou. Que Mundo distante. E esta frio, no vento que entra pelas janelas abertas e me abanam o cabelo. Penso no que acontece se o motor falhar. Provavelmente um tigre vira curioso em busca da sua refeicao. Esta noite escura. Eles andam ali, escondidos por detras da luz dos nossos farois.
De repente, um vulto na noite. O carro abranda. O condutor manda-me sair. Ouco agua. Vejo um rio. Uma canoa. Olho em volta antes de sair do jeep. Sei la o que me observa na escuridao. Duas trocas de palavras em nepales e metem-me na canoa. Entro a medo. So ouco a corrente do rio e o suave fluir da embarcacao nas aguas escuras. Sou um personagem vivo num auto de Gil Vicente, guiado por um barqueiro silencioso atraves de um rio cheio de crocodilos. Quando chegamos a margem, salto para a noite escura. Comeco a duvidar do que faco ali e se fiz bem em responder aos chamamentos do homem que me esperava na estacao de autocarros. Dois farois acendem-se. Esta ali outro jeep.
"Welcome Sir!". Que alivio! O jeep tem o nome do hotel escrito. "Chitwan Jungle Lodge". Estou a salvo. Nunca estive em perigo. Estava tudo na minha cabeca. Ainda bem, pelo menos durante uma hora senti-me um intrepido explorador vitoriano.
Que ingenuo! Que feliz!
Rinocerontes e elefantes na madrugada
Sou recebido no lodge com um tratamento que nao se adequa ao que tenho recebido ate agora. O gerente recebe-me e explica-me o que posso fazer nos dias seguintes: passeios de canoa, safaris de elefante, caminhadas na selva. A minha volta, os clientes reunem-se em mesas e bebem um copo antes da chamada para jantar. Fui o ultimo a chegar. Toda a gente sabe quem e o "Louis" que chegou tres horas depois do suposto porque foi mimado e quis vir de rafting em vez de autocarro. Mas e tudo gente educada, simpatica, em camaradagem. Um quadro de argila tem o nome de cada "guest" e o seu plano de actividades para o dia seguinte. Todo o hotel e construido em madeira, iluminado a meia-luz por um gerador proprio. Cada quarto e uma pequena cabana de madeira, sem luz electrica. Um pequeno refugio no coracao da selva, onde passarei as proximas duas noites. Quando me deito depois de intensas e interessantes conversas a volta de uma fogueira improvisada impulsionada por uma alema (numa crowd internacional maioritariamente de ferias, o que trouxe alguma diversidade as relacoes que tinha vindo a manter), todos os barulhos da selva penetram atraves da madeira e embalam o meu sono profundo, perdido num lugar sem mapa e ilimunado por um pequeno candeeiro a querosene.
De madrugada, todo o conforto de um cha quente antes de me encaminharem para uma plataforma de 5 metros de altura. Ouco passos pesados. Um elefante. Dois. Tres. Somos doze pessoas em quatro elefantes e a plataforma serve para subirmos para o seu dorso. Pela primeira vez vejo um elefante asiatico. E muito menor, mais elegante, menos elefante do que o africano. Mas ainda assim enorme, macico, animal. Um animal formidavel. Penetramos na selva no seu passo ritmado, acompanhados apenas pelo silencio da madrugada. Esta quase escuro. Nao falamos. Os nossos olhos perscrutam extasiados as abertas na vegetacao. Onde esta o tigre? Onde esta o rinoceronte?
Algo se agita. Olhamos. Nao. Era so mais uma copa de arvore que o nosso elefante devora. Dez agitacoes e alguns kilometros depois, nao e um elefante a mover a vegetacao. E um rinoceronte. Esta mesmo ali ao nosso lado, enorme, assustador, primitivo, selvagem. Estou sentado num elefante perante um rinoceronte asiatico selvagem numa selva perdida do Nepal. O silencio sepulcral que domina os passageiros do elefante estende-se ao cerebro, ao resto do corpo. O momento e paralisante, intenso, unico. O Sol nasce por entre a vegetacao. Aqui, as altas arvores de trinta metros dao lugar a uma vegetacao amarelada, perfeita para o rinoceronte dissimular. Ou o tigre. Mas, na restante hora, tudo o que vemos sao veados fugidios e a vegetacao a acordar para mais um dia.
Durante o resto da manha, passa-se o pequeno-almoco, conheco gente, troco impressoes. Aqui, os turistas sao diferentes. Tem mais dinheiro, empregos de carreira, conversas mais mundanas. De certa forma, em Chitwan encontro as pessoas mais interessantes da viagem, gente empenhada numa troca de impressoes intensa, profunda, informada. Comprometida. A turba que viaja a volta do Mundo e mais relaxada, descontraida. Gosto dos dois Mundos.
Temos programado um passeio de canoa. Deixamo-nos vogar ao longo do rio, a medida que a vida animal se passeia nas margens e a colorida populacao local desafia as regras do parque e penetra nos seus limites, para se banhar na agua fresca. Aqui, nao ha crocodilos. Vimo-los mais a frente, num charco lamacento, silenciosos, cinicos, sonolentamente a procura do seu almoco. O dia passa devagar, ao ritmo da selva. Chega o almoco. Depois, reunimo-nos em volta de um enorme elefante e ouvimos explicacoes sobre o que o distingue do africano. Ouvimos como se amestra um elefante, compreendemos como sao bem tratados no seu cativeiro. Isso tira-me um certo peso da consciencia: o meu prazer derivara do cativeiro de um animal e isso deixara-me algo desconfortavel. Depois o ver ali, a meio metro de mim, solto e sem nada que o impedisse de me atacar com a sua enorme tromba, compreendo que o homem e o elefante trabalham em conjunto em Chitwan. Isso deixa-me descansado para o resto da tarde e para o safari seguinte onde nao vimos um unico animal selvagem mas compreendemos o que e o silencio da selva, antes do Sol se por.
Alias, quanto o enorme disco alaranjado inicia o final do seu ciclo descendente, sou eu que nao consigo silenciar as minhas emocoes. Estamos fora da vegetacao numa planicie com ervas apenas de dois metros. Como o elefante e maior do que isso, vejo como o sol desaparece la atras, enorme, limpido, astral. Quente. Asiatico. Longinquo. Inalcancavel. Meu.
Maoistas, apartheid, o campo ingles e as tribos africanas
Regressamos ja a noite vai escura. Todo o lodge se reune junto ao bar, em animadas conversas de fim de tarde. Partilho cervejas com um ingles nascido no Zimbabue e emigrado para Joanesburgo primeiro e para Nottingham depois. Uma canadiana de Toronto que acabara de ser despedida do seu ambicioso emprego e viaja pela Asia. Um nepales que acompanha um grupo de japoneses no seu tour pelo Nepal. Um investment banker ingles, com experiencia tantos nos escritorios da city como nos pubs de Sidney durante a sua volta ao Mundo de anos idos. E um jardineiro pre-reformado dos arredores de Oxford.
Durante toda a minha vida, nunca tivera uma conversa tao absorvente, rica, diversa, equilibrada. Passam cervejas atras de cervejas, caras serias e gargalhadas. Passa a chamada para jantar, passa o jantar, passa o cha, passa o cafe, passa a hora em que os restantes guests se vao deitar. Passa tudo mas nos estamos ali fixos uns nos outros, partilhando as nossas vidas. Ouco em primeira mao o relato vivo do fim do apartheid, absorvo a opiniao espantosamente culta de um nepales letrado sobre os dias historicos que agitam o seu pais, conheco as sensacoes de uma canadiana durante meses na China rural, apercebo-me dos desejos e motivacoes de um ingles de 60 anos que caminhou durante 20 dias de trekking no Evereste. Discutimos o porque do sub-desenvolvimento de Africa, de como o seu sistema tribal nao permite a sua governacao, discutimos as vidas vertiginosas de Londres, a formacao da Uniao Europeia, o lugar que Portugal ali ocupa, as relacoes entre o Canada e os EUA, entre a Africa do Sul e o resto do Mundo. Falamos de tudo.
Quando abandonamos o bar ja cambaleantes, sabemos que na escuridao algo acompanha com o olhar o nossos passos fugidios em direccao as cabanas. Nao vimos o tigre em Chitwan, mas vimos muito mais. E, seja como for, sabemos que ele esta la, a espreita. No fundo, talvez tenhamos um pacto tacito: ele nao se mostra, mas tambem nao agride. Estamos no seu Reino.
So isso, ja me preenche por completo, antes da minha partida, do meu regresso a vida humana e a estrada poeirenta onde o autocarro me recolhe em direccao ao regresso a Kathmandu.
Tuesday, November 07, 2006
Nem na cidade, nem na montanha
Um dia no campo
Cansado do ambiente falso e demasiado relaxado de Pokhara, procuro planos para os dois dias seguintes, ja que na madrugada do terceiro tenho ja marcada uma pequena viagem de rafting que me levará as portas do Parque Nacional de Chitwan, em busca de rinocerontes e elefantes.
E certo e sabido que o potencial turistico do Nepal esta nas montanhas, mas ouvi falar de uma cidadezinha chamada Tansen a 130 kms de Pokhara, o que me pareceu uma boa maneira de explorar um bocado mais do pais e deixar de novo este antro de hippies israelitas no seu ano sabatico apos dois anos de exercito. Na verdade, a Pokhara nepalesa e uma copia dos suburbios de Kathmandu, mas o seu centro turistico fica junto ao enorme lago, a volta do qual se reune uma estranhissima turba de mangas a cava e rastas, com roupas largas e velhas, entre hoteis, restaurantes, agencias de viagem, vacas, cabras e nepaleses chatos: Pokhara parece o paraiso dos neo-hippies - parasitas viajantes globais, menos fritos do que os seus precedentes da love generation mas igualmente inuteis. Parecidos em aspecto mas creio que mais evoluidos mentalmente, uma enorme quantidade de israelitas completa o conjunto, e é de tal forma numerosa que o teclado em que escrevo tem as letras em hebraico. Ha ainda espaco para alemaes e franceses com netos nos seus paises mas ainda em busca da eterna juventude por aqui.
O meu tourist bus parte as 6 da manha e percorre durante quatro horas a Siddartha Highway em direccao ao Sul. Mais uma vez, trata-se de um velho e enjoativo autocarro e a Highway é uma estrada esburacada e estreita, entre vales e montanhas. No entanto, a medida que serpenteia pelo cenario verdejante, a vegetacao torna-se ainda mais verde e o clima mais quente: estamos a entrar no Terai, o micro-clima semi-tropical nepales, depois da montanhas do Norte e das terras temperadas no centro. Enquanto o autocarro passa por lugarejos miseraveis a beira da estrada e se repetem as cenas rupestres a que ja me vou habituando, sinto uma enorme sensacao de deriva e inevitabilidade: no autocarro so ouco vozes nepalesas, pouca gente fala ingles e os restantes turistas que la estao vao a caminho da India, ja que a fronteira em Sunauly é o destino deste autocarro. Tansen nao e, portanto, a razao de ser deste tourist bus e muito menos e o destino de mais alguem no autocarro sem ser eu proprio. Mais uma vez, estou sozinho comigo.
Deixam-me num cruzamento e apontam para cima. La no topo, um conjunto de casas no cimo de uma colina espreita-me com ar desconfiado. Nem pensar em subir a pe, ja andei o suficiente esta semana. Enfio-me num conjunto de lata e arame sobrelotado que da pelo nome de "bus" e, a falta de melhor, travo amizade com um japones que ali anda perdido como eu, ja que e o unico que arranha o ingles. Venho a saber que tambem fala umas palavras de portugues, depois de 7 meses a viajar pelo Brasil. Apesar do ambiente estranho em que me encontro, dificilmente acreditaria que pudesse encontrar algo tao caricato como um japones sorridente a dizer-me "bom djia" no meio de um sufocante autocarro que guincha por uma colina ingreme do Nepal acima. Perante este personagem extraordinario, sinto-me capaz de tudo, e no seu exemplo ganho coragem para enfrentar a tremenda desilusao que Tansen me provoca: é apenas um conjunto de ruas estreitas e poeirentas, onde se desenrola um dia-a-dia de pequena vila e onde ninguem fala uma pequena palavra de ingles.
"Desta vez fui longe demais", desabafo mentalmente, incrivelmente perdido sei la onde, enjoado depois de 5 horas de autocarro. Enfio-me no primeiro hotel que vejo, obviamente soturno e acastanhado. Passo a meia-hora mais frustrante da viagem, com vontade de voltar a Pokhara. E ainda sao duas da tarde.
Ganho coragem e decido aventur-me pelas ruazinhas acima, ja que decididamente, a menos que fosse assaltado ou desmaiasse no meio da rua, o momento nao poderia ficar pior do que ja estava.
A situacao inverte-se por completo. As casas sem tinta comecam a dar lugar a antigas ruas medievais, as lojas de mecanicos sao substituidas por inumeras lojas de comercio local e os nepaleses com ar taciturno desaparecem no meio de uma infinidade de criancas felizes no regresso da escola. Quanto mais ando, mais criancas, mais barulho, mais casas com tectos e varandas de madeira, mais vendedores de fruta colorida, mais dentistas de rua, teceloes, alfaiates, merceeiros. A menos de 5 minutos da deprimente estacao de autocarros, encontro-me no meio de uma alegre tarde de vila de colina, ainda para mais no centro das suas atencoes, ja que embora recomendada pelo guia esta vila parece estar completamente fora do roteiro turistico dos montanhistas e neo-hippies que compoem o fluxo estrangeiro no Nepal: a atraccao aqui sou eu, tanto da criancada fardada como dos velhos e adultos. Como sempre, falamos de futebol, e pela enesima vez comprovo a enorme responsabilidade que o Cristiano Ronaldo tem aos ombros, como Embaixador de Portugal no Terceiro Mundo que definitivamente é. Infelizmente, os nepaleses percebem mais de cricket do que de futebol, de maneira que quase todos me perguntam porque é que aquele portugues deu uma cabecada ao italiano na final do Mundial. Desde que ca estou, ja devo ter repetido umas dez vezes que essa pessoa é francesa e se chama Zidane (apesar da maioria dos nepaleses nao saberem onde fica a Franca e de nem pagos a peso de ouro conseguirem pronunciar "Zidane" – o que alias é espantoso, dado que com facilidade debitam os nomes dos seus impronunciaveis templos!).
A medida que deambulo pelas ingremes ruas acima, apercebo-me de como as pessoas aqui tem um ar feliz, mais do que no caos da capital e muito mais do que nos ares duros do campo. Sem duvida que, apos a desilusao inicial, Tansen se revela um marco indispensavel nesta viagem, nomeadamente por me dar uma imagem do que é a vida campestre do Nepal nao-himalayo. Tendo em conta que a rede de estradas é limitadissima e nao penetra nem na selva, nem nas montanhas, nem nas regioes Leste e Oeste do pais, dificilmente eu poderia ter recolhido mais amostras dos varios ecosistemas sociologicos do Nepal em tao pouco tempo.
De repente, uma pequena rua alarga-se e dou por mim num enorme terreiro cor de tijolo, rodeado por arame farpado e soldados armados. Acabei de chegar ao parque da cidade, um descampado repleto de cabras e vendedores de rua, mesmo ao lado de (mais) um campo de treinos do exercito nepales. Por todo o lado, criancas brincam e guiam as suas bicicletas, jogam futebol, riem-se e bulham. Avos passeiam os seus netos, jovens adolescentes sentam-se em grupo na erva seca. Apesar de toda aquela sujidade, do lixo no chao, das vacas que pastam, das roupas velhas que as pessoas vestem, estou perante um cenario tremendamente familiar. Isto sao cenas universais.
Se trocar as velhas bicicletas indianas por topos de gama americanas, o chao poeirento por bancos de madeira, as cabras por caes, a erva seca por relva fresca, as vendedoras de fritos por bancas de castanhas e a vista infinita do miradouro por uma rua calcada, estou numa cena que se repete diariamente no Jardim da Estrela.
Em Tansen percebo quao semelhantes somos todos afinal. Independentemente das condicionantes estruturais do sitio onde nascemos, a nossa infancia, adolescencia, maturidade e velhice têm desejos comuns universais.
Invade-me uma enorme sensacao de pena, quase de culpa, por estas pessoas, pelo pais onde vivem. Sinto pena do beco sem saida que sera o fim da escolaridade destas criancas fardadas e brincalhonas, num pais sem emprego. Sinto pena da pobre tentativa de imitacao da moda ocidental destes rapazes e raparigas a despontar para a idade adulta. Sinto pena do avo que passeia o seu neto e o ve crescer num pais sem futuro. Sinto pena destes soldados adolescentes, que deviam ser policias treinados e ao servico de um estado democratico. Sinto pena dos vendedores de fritos, que lavam os seus tachos em agua putrefacta e os seus corpos nos rios, a vista de todo o Mundo.
E, no entanto, sorriem todos. Parecem felizes. Se calhar, eu e que faco pena, sozinho a fotografar cenas banais do dia-a-dia dos outros, demasiado seguro da superioridade do meu mundo ocidental para sequer conseguir penetrar profundamente nos coracoes destas pessoas. Se calhar, estas criancas é que sao felizes, e nao as nossas, que a esta hora esbugalham os olhos perante mais um golo na Playstation. Se calhar, esta adolescencia simples e descomprometida é mais saudavel e sustentavel do que a louca montanha-russa que é a juventude no meu Mundo. Se calhar, este avo analfabeto que atrapalhadamente me tenta abordar em ingles esta mais confortavel com a sua velhice, do que os milhares de avos que adormecem solitarios no meu pais, onde a idade é um fardo e o conceito de familia perde importancia.
Sem duvida, ha que nao generalizar, mas estes pensamentos ajudam a perceber o que é realmente importante e o que é superfluo nas nossas vidas. Viajar, isto é, ver como os outros vivem, serve-me essencialmente para isso.
"To Pokhara? Only local bus, sir"
Dado que os tourist bus so cobrem os quatro pontos cardeais do turimos nepales – a capital Kathmandu, o ponto de partida para trekking Pokhara, o Parque Nacional de Chitwan e a fronteira com a India em Sunauli – e nao param para recolher passageiros a meio dos seus trajectos, coloco-me perante o dilema de pagar o equivalente a 40 Euros por um taxi ou arriscar a minha sorte num autocarro local ate Pokhara, o que nao é propriamente o mesmo que apanhar um (tambem caotico) autocarro de cidade como fizera entre Kathmandu e Bakhtapur: aqui, todos os dias é primeira pagina do jornal o numero de mortes em desastres de autocarro no dia anterior.
Em Tansen apanho o autocarro sobrelotado ate ao cruzamento onde o tourist bus me deixara no dia anterior, com a promessa de todos os restantes passageiros de que a toda a hora passam autocarros grandes a caminho de Pokhara. Como esta tudo a rir-se para mim (ou de mim), acho que me estao a enganar e saio com um ar muito desconfiado para o ar fresco, que prontamente reconheco nao ser fresco mas sim irritantemente infestado de caril, fritos e fruta podre: parece-me que no Nepal nao ha cruzamento na estrada sem bancas de comida. So é pena que a qualidade das casas-de-banho nao seja equivalente a quantidade de comida.
Vejo-me no meio da estrada, sozinho, sem a minima ideia de que autocarro me vai levar a Pokhara e profundamente aterrado com a ideia de me enfiar numa carrinha de 1950 cheia de nepaleses ate ao tecto a percorrer curvas e contra-curvas sobre ravinas de centenas de metros. Menos de cinco minutos depois, estou dentro de um.
Dois autocarros enormes, podres e atolados de gente param a beira da estrada e de ambos salta um homem a berrar "Pokhara, Pokhara, Pokhara!".
"Onde é que eu me vou enfiar", penso, antes de saltar para o autocarro que nao tem uma velha desdentada a vomitar pela janela. La dentro, esta escuro e cheira a gente. De facto, para alem de gasolina queimada, salta-me aos sentidos aquele intenso cheiro a gente e roupa mal lavada. Nao obstante sou, como sempre, bem recebido, naquela que vai ser a minha casa nas proximas sete longas horas. Enfiam-me num estranho cockpit, onde cabem o condutor e alguns passageiros. A alternativa, ainda menos apetecivel, era o tejadilho, ja que o resto dos lugares estao ocupados.
O autocarro move-se lentamente, curva apos curva. Na sua essencia, é um potente tractor com duas velocidades a puxar uma caixa de latao lotada de pessoas. A conducao é estranhamente auto-confiante e baseia-se em ocupar toda a estrada e esperar que em sentido contrario nao venha ninguem. Caso tal aconteca, e como forma de prevenir uma queda ate ao rio que corre 200 metros mais abaixo, trava-se a fundo, buzina-se e sorri-se para o condutor do outro endiabrado veiculo. A buzina é, alias, um instrumento com importancia semelhante ao volante, e todos os camioes tem inscrita a frase "horn please" na sua traseira: uma forma diferente de sinalizar uma ultrapassagem.
O tempo vai passando e o autocarro para vezes sem conta durante longos periodos em terriolas miseraveis. Como ha tantos autocarros, temos de parar de tempos a tempos, de modo a que passe tempo suficiente para que se acumulem a beira da estrada passageiros para recolher, depois da passagem do autocarro anterior. O autocarro enche e vaza a um ritmo alucinante e tanto estico as pernas por todo o cockpit como tenho cinco velhos em cima de mim durante meia hora seguida. Por cima das suas vozes, o motor grunhe como um gigante rouco e o motorista tem a calamitosa ideia de ligar o radio no volume maximo, numa esganicante e repetitiva musica nepalesa, que soa atraves de colunas precisamente sobre a minha cabeca. Tudo isto a 40 kmh, numa estrada sem rectas.
Demoramos 7 longas horas a percorrer um percurso de 120 kms. Tanto observo a paisagem como adormeco, tanto converso como medito, tanto sorrio com a insanidade de toda esta viagem como me encolho de pavor perante uma curva quase sobre o abismo. Quando vejo Pokhara, sinto um profundo alivio por ter chegado bem.
Nao foi uma experiencia confortavel, mas foi um mergulho genuino no dia-a-dia deste pais. E ainda por cima, cheguei sao e salvo.
Acabo o dia numa esplanada em Pokhara a comer uma merecida pizza e a ler um jornal nepales de lingua inglesa. Para alem dos habituais comentarios aos desastres de autocarro, os titulos debrucam-se sobre a verdadeira revolucao politica e intelectual que decorre no pais. Artigos de opiniao debatem qual o melhor sistema de governo, reportagens demonstram como se vive nas "western economies", a primeira pagina relata a reuniao historica entre os maiostas e os restantes sete partidos.
E impressionante. Cai de para-quedas num pais em reviravolta, nos primordios de uma democracia liberal, defendida pelos intelectuais nepaleses.
O meu voo descola de Kathmandu dia 11 em direccao a Lhasa. Com sorte, ainda ouco um bocadinho do primeiro discurso do lider maoista, Prachanda, desde que iniciou a rebeliao contra a Monarquia em 1996, que esta convocado para dia 10 na capital. Com azar, as coisas dao para o torto.
Seja como for, quero estar la para ver.
Cansado do ambiente falso e demasiado relaxado de Pokhara, procuro planos para os dois dias seguintes, ja que na madrugada do terceiro tenho ja marcada uma pequena viagem de rafting que me levará as portas do Parque Nacional de Chitwan, em busca de rinocerontes e elefantes.
E certo e sabido que o potencial turistico do Nepal esta nas montanhas, mas ouvi falar de uma cidadezinha chamada Tansen a 130 kms de Pokhara, o que me pareceu uma boa maneira de explorar um bocado mais do pais e deixar de novo este antro de hippies israelitas no seu ano sabatico apos dois anos de exercito. Na verdade, a Pokhara nepalesa e uma copia dos suburbios de Kathmandu, mas o seu centro turistico fica junto ao enorme lago, a volta do qual se reune uma estranhissima turba de mangas a cava e rastas, com roupas largas e velhas, entre hoteis, restaurantes, agencias de viagem, vacas, cabras e nepaleses chatos: Pokhara parece o paraiso dos neo-hippies - parasitas viajantes globais, menos fritos do que os seus precedentes da love generation mas igualmente inuteis. Parecidos em aspecto mas creio que mais evoluidos mentalmente, uma enorme quantidade de israelitas completa o conjunto, e é de tal forma numerosa que o teclado em que escrevo tem as letras em hebraico. Ha ainda espaco para alemaes e franceses com netos nos seus paises mas ainda em busca da eterna juventude por aqui.
O meu tourist bus parte as 6 da manha e percorre durante quatro horas a Siddartha Highway em direccao ao Sul. Mais uma vez, trata-se de um velho e enjoativo autocarro e a Highway é uma estrada esburacada e estreita, entre vales e montanhas. No entanto, a medida que serpenteia pelo cenario verdejante, a vegetacao torna-se ainda mais verde e o clima mais quente: estamos a entrar no Terai, o micro-clima semi-tropical nepales, depois da montanhas do Norte e das terras temperadas no centro. Enquanto o autocarro passa por lugarejos miseraveis a beira da estrada e se repetem as cenas rupestres a que ja me vou habituando, sinto uma enorme sensacao de deriva e inevitabilidade: no autocarro so ouco vozes nepalesas, pouca gente fala ingles e os restantes turistas que la estao vao a caminho da India, ja que a fronteira em Sunauly é o destino deste autocarro. Tansen nao e, portanto, a razao de ser deste tourist bus e muito menos e o destino de mais alguem no autocarro sem ser eu proprio. Mais uma vez, estou sozinho comigo.
Deixam-me num cruzamento e apontam para cima. La no topo, um conjunto de casas no cimo de uma colina espreita-me com ar desconfiado. Nem pensar em subir a pe, ja andei o suficiente esta semana. Enfio-me num conjunto de lata e arame sobrelotado que da pelo nome de "bus" e, a falta de melhor, travo amizade com um japones que ali anda perdido como eu, ja que e o unico que arranha o ingles. Venho a saber que tambem fala umas palavras de portugues, depois de 7 meses a viajar pelo Brasil. Apesar do ambiente estranho em que me encontro, dificilmente acreditaria que pudesse encontrar algo tao caricato como um japones sorridente a dizer-me "bom djia" no meio de um sufocante autocarro que guincha por uma colina ingreme do Nepal acima. Perante este personagem extraordinario, sinto-me capaz de tudo, e no seu exemplo ganho coragem para enfrentar a tremenda desilusao que Tansen me provoca: é apenas um conjunto de ruas estreitas e poeirentas, onde se desenrola um dia-a-dia de pequena vila e onde ninguem fala uma pequena palavra de ingles.
"Desta vez fui longe demais", desabafo mentalmente, incrivelmente perdido sei la onde, enjoado depois de 5 horas de autocarro. Enfio-me no primeiro hotel que vejo, obviamente soturno e acastanhado. Passo a meia-hora mais frustrante da viagem, com vontade de voltar a Pokhara. E ainda sao duas da tarde.
Ganho coragem e decido aventur-me pelas ruazinhas acima, ja que decididamente, a menos que fosse assaltado ou desmaiasse no meio da rua, o momento nao poderia ficar pior do que ja estava.
A situacao inverte-se por completo. As casas sem tinta comecam a dar lugar a antigas ruas medievais, as lojas de mecanicos sao substituidas por inumeras lojas de comercio local e os nepaleses com ar taciturno desaparecem no meio de uma infinidade de criancas felizes no regresso da escola. Quanto mais ando, mais criancas, mais barulho, mais casas com tectos e varandas de madeira, mais vendedores de fruta colorida, mais dentistas de rua, teceloes, alfaiates, merceeiros. A menos de 5 minutos da deprimente estacao de autocarros, encontro-me no meio de uma alegre tarde de vila de colina, ainda para mais no centro das suas atencoes, ja que embora recomendada pelo guia esta vila parece estar completamente fora do roteiro turistico dos montanhistas e neo-hippies que compoem o fluxo estrangeiro no Nepal: a atraccao aqui sou eu, tanto da criancada fardada como dos velhos e adultos. Como sempre, falamos de futebol, e pela enesima vez comprovo a enorme responsabilidade que o Cristiano Ronaldo tem aos ombros, como Embaixador de Portugal no Terceiro Mundo que definitivamente é. Infelizmente, os nepaleses percebem mais de cricket do que de futebol, de maneira que quase todos me perguntam porque é que aquele portugues deu uma cabecada ao italiano na final do Mundial. Desde que ca estou, ja devo ter repetido umas dez vezes que essa pessoa é francesa e se chama Zidane (apesar da maioria dos nepaleses nao saberem onde fica a Franca e de nem pagos a peso de ouro conseguirem pronunciar "Zidane" – o que alias é espantoso, dado que com facilidade debitam os nomes dos seus impronunciaveis templos!).
A medida que deambulo pelas ingremes ruas acima, apercebo-me de como as pessoas aqui tem um ar feliz, mais do que no caos da capital e muito mais do que nos ares duros do campo. Sem duvida que, apos a desilusao inicial, Tansen se revela um marco indispensavel nesta viagem, nomeadamente por me dar uma imagem do que é a vida campestre do Nepal nao-himalayo. Tendo em conta que a rede de estradas é limitadissima e nao penetra nem na selva, nem nas montanhas, nem nas regioes Leste e Oeste do pais, dificilmente eu poderia ter recolhido mais amostras dos varios ecosistemas sociologicos do Nepal em tao pouco tempo.
De repente, uma pequena rua alarga-se e dou por mim num enorme terreiro cor de tijolo, rodeado por arame farpado e soldados armados. Acabei de chegar ao parque da cidade, um descampado repleto de cabras e vendedores de rua, mesmo ao lado de (mais) um campo de treinos do exercito nepales. Por todo o lado, criancas brincam e guiam as suas bicicletas, jogam futebol, riem-se e bulham. Avos passeiam os seus netos, jovens adolescentes sentam-se em grupo na erva seca. Apesar de toda aquela sujidade, do lixo no chao, das vacas que pastam, das roupas velhas que as pessoas vestem, estou perante um cenario tremendamente familiar. Isto sao cenas universais.
Se trocar as velhas bicicletas indianas por topos de gama americanas, o chao poeirento por bancos de madeira, as cabras por caes, a erva seca por relva fresca, as vendedoras de fritos por bancas de castanhas e a vista infinita do miradouro por uma rua calcada, estou numa cena que se repete diariamente no Jardim da Estrela.
Em Tansen percebo quao semelhantes somos todos afinal. Independentemente das condicionantes estruturais do sitio onde nascemos, a nossa infancia, adolescencia, maturidade e velhice têm desejos comuns universais.
Invade-me uma enorme sensacao de pena, quase de culpa, por estas pessoas, pelo pais onde vivem. Sinto pena do beco sem saida que sera o fim da escolaridade destas criancas fardadas e brincalhonas, num pais sem emprego. Sinto pena da pobre tentativa de imitacao da moda ocidental destes rapazes e raparigas a despontar para a idade adulta. Sinto pena do avo que passeia o seu neto e o ve crescer num pais sem futuro. Sinto pena destes soldados adolescentes, que deviam ser policias treinados e ao servico de um estado democratico. Sinto pena dos vendedores de fritos, que lavam os seus tachos em agua putrefacta e os seus corpos nos rios, a vista de todo o Mundo.
E, no entanto, sorriem todos. Parecem felizes. Se calhar, eu e que faco pena, sozinho a fotografar cenas banais do dia-a-dia dos outros, demasiado seguro da superioridade do meu mundo ocidental para sequer conseguir penetrar profundamente nos coracoes destas pessoas. Se calhar, estas criancas é que sao felizes, e nao as nossas, que a esta hora esbugalham os olhos perante mais um golo na Playstation. Se calhar, esta adolescencia simples e descomprometida é mais saudavel e sustentavel do que a louca montanha-russa que é a juventude no meu Mundo. Se calhar, este avo analfabeto que atrapalhadamente me tenta abordar em ingles esta mais confortavel com a sua velhice, do que os milhares de avos que adormecem solitarios no meu pais, onde a idade é um fardo e o conceito de familia perde importancia.
Sem duvida, ha que nao generalizar, mas estes pensamentos ajudam a perceber o que é realmente importante e o que é superfluo nas nossas vidas. Viajar, isto é, ver como os outros vivem, serve-me essencialmente para isso.
"To Pokhara? Only local bus, sir"
Dado que os tourist bus so cobrem os quatro pontos cardeais do turimos nepales – a capital Kathmandu, o ponto de partida para trekking Pokhara, o Parque Nacional de Chitwan e a fronteira com a India em Sunauli – e nao param para recolher passageiros a meio dos seus trajectos, coloco-me perante o dilema de pagar o equivalente a 40 Euros por um taxi ou arriscar a minha sorte num autocarro local ate Pokhara, o que nao é propriamente o mesmo que apanhar um (tambem caotico) autocarro de cidade como fizera entre Kathmandu e Bakhtapur: aqui, todos os dias é primeira pagina do jornal o numero de mortes em desastres de autocarro no dia anterior.
Em Tansen apanho o autocarro sobrelotado ate ao cruzamento onde o tourist bus me deixara no dia anterior, com a promessa de todos os restantes passageiros de que a toda a hora passam autocarros grandes a caminho de Pokhara. Como esta tudo a rir-se para mim (ou de mim), acho que me estao a enganar e saio com um ar muito desconfiado para o ar fresco, que prontamente reconheco nao ser fresco mas sim irritantemente infestado de caril, fritos e fruta podre: parece-me que no Nepal nao ha cruzamento na estrada sem bancas de comida. So é pena que a qualidade das casas-de-banho nao seja equivalente a quantidade de comida.
Vejo-me no meio da estrada, sozinho, sem a minima ideia de que autocarro me vai levar a Pokhara e profundamente aterrado com a ideia de me enfiar numa carrinha de 1950 cheia de nepaleses ate ao tecto a percorrer curvas e contra-curvas sobre ravinas de centenas de metros. Menos de cinco minutos depois, estou dentro de um.
Dois autocarros enormes, podres e atolados de gente param a beira da estrada e de ambos salta um homem a berrar "Pokhara, Pokhara, Pokhara!".
"Onde é que eu me vou enfiar", penso, antes de saltar para o autocarro que nao tem uma velha desdentada a vomitar pela janela. La dentro, esta escuro e cheira a gente. De facto, para alem de gasolina queimada, salta-me aos sentidos aquele intenso cheiro a gente e roupa mal lavada. Nao obstante sou, como sempre, bem recebido, naquela que vai ser a minha casa nas proximas sete longas horas. Enfiam-me num estranho cockpit, onde cabem o condutor e alguns passageiros. A alternativa, ainda menos apetecivel, era o tejadilho, ja que o resto dos lugares estao ocupados.
O autocarro move-se lentamente, curva apos curva. Na sua essencia, é um potente tractor com duas velocidades a puxar uma caixa de latao lotada de pessoas. A conducao é estranhamente auto-confiante e baseia-se em ocupar toda a estrada e esperar que em sentido contrario nao venha ninguem. Caso tal aconteca, e como forma de prevenir uma queda ate ao rio que corre 200 metros mais abaixo, trava-se a fundo, buzina-se e sorri-se para o condutor do outro endiabrado veiculo. A buzina é, alias, um instrumento com importancia semelhante ao volante, e todos os camioes tem inscrita a frase "horn please" na sua traseira: uma forma diferente de sinalizar uma ultrapassagem.
O tempo vai passando e o autocarro para vezes sem conta durante longos periodos em terriolas miseraveis. Como ha tantos autocarros, temos de parar de tempos a tempos, de modo a que passe tempo suficiente para que se acumulem a beira da estrada passageiros para recolher, depois da passagem do autocarro anterior. O autocarro enche e vaza a um ritmo alucinante e tanto estico as pernas por todo o cockpit como tenho cinco velhos em cima de mim durante meia hora seguida. Por cima das suas vozes, o motor grunhe como um gigante rouco e o motorista tem a calamitosa ideia de ligar o radio no volume maximo, numa esganicante e repetitiva musica nepalesa, que soa atraves de colunas precisamente sobre a minha cabeca. Tudo isto a 40 kmh, numa estrada sem rectas.
Demoramos 7 longas horas a percorrer um percurso de 120 kms. Tanto observo a paisagem como adormeco, tanto converso como medito, tanto sorrio com a insanidade de toda esta viagem como me encolho de pavor perante uma curva quase sobre o abismo. Quando vejo Pokhara, sinto um profundo alivio por ter chegado bem.
Nao foi uma experiencia confortavel, mas foi um mergulho genuino no dia-a-dia deste pais. E ainda por cima, cheguei sao e salvo.
Acabo o dia numa esplanada em Pokhara a comer uma merecida pizza e a ler um jornal nepales de lingua inglesa. Para alem dos habituais comentarios aos desastres de autocarro, os titulos debrucam-se sobre a verdadeira revolucao politica e intelectual que decorre no pais. Artigos de opiniao debatem qual o melhor sistema de governo, reportagens demonstram como se vive nas "western economies", a primeira pagina relata a reuniao historica entre os maiostas e os restantes sete partidos.
E impressionante. Cai de para-quedas num pais em reviravolta, nos primordios de uma democracia liberal, defendida pelos intelectuais nepaleses.
O meu voo descola de Kathmandu dia 11 em direccao a Lhasa. Com sorte, ainda ouco um bocadinho do primeiro discurso do lider maoista, Prachanda, desde que iniciou a rebeliao contra a Monarquia em 1996, que esta convocado para dia 10 na capital. Com azar, as coisas dao para o torto.
Seja como for, quero estar la para ver.
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