Sunday, August 03, 2008

Velhos amigos

Lembro-me com uma limpidez sem manchas da primeira vez que vi o Cruzeiro do Sul. 

Estava num descampado no meio da Tanzania, onde acampavamos ao som de macacos e pores-do-sol, e, ao olhar aquele ceu infinito longe de outra fonte de luz que nao a fogueira que crepitava a uma centena de metros, encontrei naquelas quatro estrelas a prova absoluta da minha presenca no Hemisferio Sul. Ou, simplesmente, no Sul.

O Sul - o conceito de Sul - sempre me provocou um entusiasmado arrepio. O Sul, para nos, os do Norte, representa o outro lado, o longe, o diferente de casa. O Sul e quase uma barreira; o proprio Equador, seja la o que for, e uma barreira. Ha algo de romantico e distante no Sul, sempre houve, pelo menos para mim. Algo fascinante, secreto, frio. Sempre imaginei o meu Sul com vento e ondas grandes; e misterios de la, a minha espera.

Uns meses mais tarde, voltei a ver o Cruzeiro. Estava num barco no coracao do rio Amazonas com o meu amigo Duarte, e, naquela ligeira brisa da noite, observavamos em silencio as silhuetas das margens que passavam, toscamente iluminadas por aquelas quatro estrelas, e todas as outras estrelas que brilhavam naquele ceu abandonado.

Essa (viagem pela America do Sul) foi uma viagem de iniciacao, quase. Nao sei bem em que me iniciei, mas sempre que penso nessa viagem e nos nossos espiritos ingenuos e sedentos de tudo o que de genuino nos aparecesse, a memoria que tenho é a de uma certa inocencia perdida. Essa viagem, sonhada durante anos, planeada durante meses e vivida durante um periodo de tempo que nao e quantificavel (ja que nao acabou, em mim), representou o inicio e o fim de um pedaco de descoberta pessoal; aquele momento, o primeiro de muitos junto e sob o Cruzeiro do Sul nessa viagem, foi tambem o meu primeiro contacto com o Sul que eu imaginava: o vento que passava, a agua que ficava para tras, a jornada, de certa forma, que eu vivia.

Lembro-me de, antes da partida, a mae do Duarte lhe oferecer um livro (Bruce Chatwin, In Patagonia) e de, na dedicatoria, aparecer algo como "Para o Duarte (...) que seja a primeira de muitas viagens, rumo a Sul". Eu nunca li o In Patagonia, mas aquela dedicatoria (que nao era para mim), tem para mim muito mais significado do que qualquer coisa que o Chatwin tenha escrito sobre esse territorio condenado, porque encerra um desejo que eu tinha, e tenho, para mim mesmo: muitas viagens, rumo a Sul.

Vi o Cruzeiro Sul pela Argentina abaixo, no gelo da Terra do Fogo e, depois, de novo num barco, embarcado num cargueiro nos mares do Sul do Chile. Subimos todo o Chile sob o Cruzeiro, cruzamos a Bolivia e ate no Peru tenho memorias daquelas quatro estrelas. Passadas varias semanas, ver aquela constelacao ja nao me provocava o impacto dos primeiros dias porque, a certa altura, ja estavamos a viajar rumo a Norte, uma vez que depois de Ushuaia a viagem se fez mapa acima. Tinhamos estado no Sul dos suis - mais era dificil, com o nosso orcamento - e, rumo a Norte, o Cruzeiro continuava a ser absorvido com uma intimidade dificil de explicar, mas sem o prazer da novidade. 

Passaram tres anos desde essa viagem, passaram-se outra viagens e outros periodos, e nao me voltei a lembrar do Cruzeiro. Nesse periodo, algo do meu romantismo ficou esquecido entre folhas de Excel e um certo amadurecimento pessoal, e, se bem que nao tenha perdido nenhuma da curiosidade que sempre tive, deixei-me envolver no sofisticado mundo do desenvolvimento profissional.

Foi, por isso, com um arrepio que quase me desiquilibrou, que ontem, quando corria parque abaixo, a beira da agua aqui ao lado da minha casa em Sydney, entre um ou outro candeeiro e a ponte da cidade la ao longe, o meu olhar se cruzou - de novo! - com o Cruzeiro.

Entretido com as primeiras semanas e a novidade de um novo pais, nao me tinha ocorrido ainda olhar para o ceu, ate porque a metropole que é Sydney nao se associava (nem associa) necessariamente a minha romantica ideia de Sul. Mas naquele momento, olhei para cima por acaso, e senti aquele arrepio de prazer que nos proporciona o reencontro com um velho amigo.

"O Cruzeiro do Sul!!", pensei eu, e uma adrenalina encheu os meus passos com tal energia, que cheguei a casa sem dar por mais nenhum kilometro.

Mais uma viagem, rumo a Sul.

3 comments:

Bhagavad-gitá said...

adorei.

Raquel said...

Lembrando Astor Piazolla: "vuelvo al Sur, como se vuelve siempre a el amor".

Lorena said...

Tinhamos saudades destas deambulações...