Wednesday, September 12, 2007

Bens a declarar



Sou o primeiro a sair do avião e a chegar ao tapete, apenas para esperar durante décadas pela mochila que teima em nao chegar. Tinha-a despachado 20 horas antes em Miami.

"Cabrões, perderam-me a mochila no vôo para Londres", penso, já irritado com a até à altura impecável British Airways, quando de repente o enorme tapete cospe, com a indiferença própria das máquinas inanimadas, a carregadora de todos os meus sonhos dos ultimos três meses e meio.

"Ah cá estas tu!", sorrio para comigo, e ponho a minha amiga às costas de espírito cheio e alegre. Rodo sobre os calcanhares na dança que me vai conduzir à saída do aeroporto e finalmente de volta aos ares de Lisboa, e vôo pela pedra branca fora atá à saída.

Dois passos antes do verdadeiro regresso a casa, paro. Será que tenho algo a declarar? 105 dias entre a Cidade do México e San José na Costa Rica, com paragens em Nova Iorque e Miami. "Há algo a declarar sobre isto?", pergunto-me inquieto, coçando ligeiramente o queixo por barbear desde há uma semana, a minha cara atraída pelo enorme sinal de STOP.

Goods to declare. Bens a declarar? Tenho mil bens a declarar. Vou pela direita.

- Olá!
- Boa tarde.
- Como está?
- Bem obrigada. O senhor tem algo a declarar?
- Tenho sim senhor.
- Posso então ver a sua mochila e o seu passaporte, por favor?


Olho-a com espanto. O passaporte ainda pode passar alguma mensagem do que eu tenho a declarar, sem dúvida, mas a mochila?

- A mochila é so roupa velha e, na maioria, por lavar..
- Entao o que traz o senhor nos bolsos?
- Nos bolsos? Nos bolsos, nos bolsos.. deixe cá ver. Neste nada..e neste..pere pere eu sei que as tinha aqui..pere aí..ah aqui tá! Pastilhas elásticas. Tome!
- O senhor está a brincar comigo?
- Não quer?
- Não quero o quê?
- Uma pastilha elástica. Pensei que era isso que queria dos meus bolsos.

Ela mira-me entao de alto a baixo com o olhar curioso com que eu há uns anos olhava os rabos encarnados dos chimpanzés no jardim zoológico de Lisboa. Mais do que cheio de piolhos ou irreverente como eles, eu devo naquele momento parecer um cordeirinho recém-nascido, tal o espanto que vai naquela altura nos meus olhos. Um minuto de conversa e ela não me tinha ainda perguntado nada do que eu tinha a declarar. Só queria ver os meus bolsos e a minha mochila.

- O que eu quero, senhor..por favor, deixe-me ver o passaporte..o que eu quero, senhor Luís Guimarães, o que eu quero é saber o que o senhor deseja declarar nesta alfândega, visto que vem de bolsos vazios e a sua mochila, pelo que acaba de me dizer, não contém objectos nem importações de valor.
- Oh Rute..posso tratá-la por Rute?
- Pode. Como é que sabe o meu nome?

Aponto para o lustroso crachá que leva no peito, onde o seu nome reluz imponente sobre a bandeira nacional. Ela inclina a cabeça para baixo para ver a zona que eu aponto. Nesse momento dou-lhe um pequeno piparote no queixo.

- Há que estar atenta, Rute M. Silva! Há que estar atenta. Eu estive atento, vê? Vi o seu nome no crachá.
- Você é um louco.

Sorrio.

- O que tem a declarar, senhor Luís Guimarães?
- Olhe Rute, tenho a declarar que passei os três meses mais loucos da minha vida pela América Central fora. Conheci todas as capitais entre a Cidade do México e San José, o que significa que passei por Belmopan, Guatemala City, San Salvador, Tegucigalpa e Manágua, com um saltinho a Havana. Alias, as oficiais de alfândega por lá tambem eram giras como você, mas fumavam charutos..como deve calcular não tinham os rabos das latinas de Miami, mas mesmo assim acho que..bom, ja vi que nao tá a achar piada.

"Declaro tambem", continuei entusiasmado, mudando de assunto, "que, para além das capitais, viajei extensivamente pela maioria dos países entre o México e a Costa Rica. Usei durante horas e horas e horas autocarros coloridos fabricados em 1950, andei às cavalitas de amigos, de mota, à boleia, de bicicleta, em carroças (em Cuba eles andam muito de carroças, sabe? Aquilo é uma merda lá.), em carrinhas de caixa aberta e até a pé. Aliás, escalei vulcões durante dias inteiros e aqueci-me na sua lava efeverscente, caminhei longos quilómetros para ver o dia nascer sobre lagos milenares, adormeci em praias desertas sob céus com mais estrelas do que as suas lindas sardas e deixei-me cair de estafa em redes penduradas em estacas depois de longas viagens a cavalo por vales e montanhas abaixo."

"Quando não estava entre lugares, absorvi os rimos loucos ou lentos de cidades modernas e de cidades coloniais deixadas pelos nossos irmaos espanhóis. Ja agora Rute, ainda há controlo alfandegário entre Espanha e Portugal?.. Talvez lá em cima em Hendaya, não?.."

A Rute só conseguiu soltar um ininteligível "não sei" pela sua boca aberta de espanto. Continuei.

"De cidades coloniais, dizia eu, mas também de vilas de montanha, de aldeias no sopé de lagos e vulcões e até de pequenos povoados na costa das Caraibas. Aliás, já me ía esquecendo Rute, tenho a declarar que as Caraíbas centro-americanas são um Mundo à parte do resto do continente. Nas montanhas da Guatemala só vi vestidos amarelos e velhas tranças em pequenas indígenas de pele grisalha, mas nas Caraíbas os corpos torrados pelo Sol têm cor suficiente para se vestirem a eles próprios. Declaro, Rute, que aí me deixei embalar pelo crioulo ingles e as rastas que me davam as boas-vindas após cada mergulho no mar."

"Alguma vez viu uma tartaruga desovar numa praia deserta, Rute? E já mergulhou a vinte metros de profundidade com mais de 15 tubarões com o dobro do seu tamanho? E pescar com uma amiga de cor mais escura que o seu negro cabelo, sob o anoitecer suave numa praia de areia branca, já pescou? Alguém alguma vez lhe declarou isto?"

Por esta altura, uma fila de contrabandistas e curiosos acumulava-se atras de mim. Virei-me então de lado para a Rute de modo que também eles pudessem ouvir a minha declaração. Levantei a voz e os braços para dar um toque de cor à cena: a cor verde da paisagem centro-americana.

"Declaro, meus caros amigos, turistas (sejam benvindos) e concidadãos, que festejei até ao sol nascer e se pôr de novo em festas secretas de lua cheia, e declaro que bebi toda e qualquer marca de cerveja produzida entre o México e o Panamá. Declaro também", e aqui voltei-me por breves segundos para a Rute, "que apesar do mestre de Salsa em que me tornei depois de uma lição privada numa praça rodeada de edifícios mais antigos que o próprio tempo, não toquei em drogas nesta viagem e que a minha maior droga e alegria foram as pessoas que conheci durante o caminho."

"Sim, Rute, sim meus caros amigos" - a massa de gente que me ouvia estendia-se já aos tapetes de bagagens, pelo que trepei sobre a minha propria mochila e falei do alto dos meus novos 2.10m para a minha audiência - "conheci gente de todo o tipo."

"Europeus, gringos, latinos e descendentes de escravos. Gente pobre que me pedia para comer e gente rica a quem pedi de beber. Falei com taxistas, vendedores, políticos, jornalistas, vagabundos e turistas. Donos de hotel, cozinheiros, pescadores, guias turísticos, banqueiros e advogados. Apaixonei-me duas ou três vezes em duas ou três cores. Debati receitas e receitas em bancas de comida pela estrada fora, desde a vantagem de colocar uma rodela de ananás num taco mexicano até ao excesso de feijao no meu arroz na Nicarágua."

"Meus caros amigos!", recomecei depois de uma breve pausa, "meus caros amigos..mãe? Mãe! Olá!!"

Nesse momento, a minha própria mae e as restantes dezenas de familiares de todos os passageiros de todos os vôos que acabavam de aterrar - que esperavam do outro lado do vidro, no hall de entrada do aeroporto - subiram, atraídas pela minha berraria, a rampa das saídas, e introduziram-se ilegalmente, sob a distracção permissiva dos oficiais da alfândega, que estavam de olhos fixados em mim, no espaço alfândegário onde eu discursava.

"Mãe, estou a acabar a minha declaração, já vamos embora!"

"Desculpe Rute, mas isto vai ter de ser rápido. Meus caros amigos!", continuei então, "minha querida mae, queridos portugueses" - a RTP acabava de aparecer na pessoa de um peludo cameraman de cerveja na mão - "declaro que não trago nada de valor senão as minhas memórias, a minha cultura e os meus sentimentos."

"Não sei qual o mérito de uma mochila vazia e quatro pastilhas elásticas para o contribuinte português, nem tão pouco sei, Rute, quanto me vai custar o imposto sobre todas as lições de História, Amor, Tolerância, Loucura e Humanidade que recebi desde que saí do pais em Maio. Mas declaro, e pago o que for preciso por isto", (nesta altura voltei-me para a câmara), "que fiz a viagem da minha vida, e que voltei um homem mais maduro e um rapaz mais divertido."

Saltei da minha mochila, pu-la às costas, pisquei o olho à câmara e, pegando na minha mãe, caminhei em direcção à saída da alfândega e às portas de vidro.

"Se isto não vale nada, Rute, se atravessar um continente de uma ponta a outra, falar com as suas gentes, penetrar nas suas maravilhas naturais, namorar as suas mulheres, comer as suas delícias e confrontar-se com as suas criaturas naturais não tem valor, então, Rute, não tenho nada a declarar."

Nisto as portas automáticas escorregaram cada uma para seu lado e eu e a minha mãe pudemos então sair para o enorme hall vazio do aeroporto, onde lhe ofereci duas pastilhas elásticas e comi as duas que sobravam, antes de nos enfiarmos no pequeno Smart em direcção a casa, através da chuva fria que teimava em cair sobre o alcatrão molhado que cobre as bonitas ruas de Lisboa.

10 comments:

SE said...

Hmm? Entrámos no campo da ficção, certo?
Bem Vindo!!
Até Breve
Bjs

Bhagavad-gitá said...

qualquer dia estás a dizer que mereces o prémio nobel. ;) beijos

O melhor post de chocolate do mundo! said...

:)

Quantas vozes é que tens agora?



Bem-vindo!

MC said...

Por mais que pense e me dificil imaginar um final melhor do que este!
Tiveste em grande, mais do que nunca. E ja te leio ha tempo suficiente, torna se dificil elogiar te

Lorena said...

Ao início ainda pensei que estivesses a relatar uma experiência real.

Depois, com a intensidade das palavras, percebi que era o que desejavas fazer, mas ainda não estás suficientemente louco para tal.

Abraços

Cuca Bleck said...

Que maravilha de Post. Que maneira brilhante de encerrares os relatos desta tua ultima aventura. Obriagda luis

Bjs Cuca

Anonymous said...

É bom devorar os textos que escreves! Parabéns***

rosé mari said...

genial

Sónia Balacó said...

Adorei o relato e adorei a música.

E no fim, uma inveja saudável. Pois.

Valente said...

Dps de te ter encontrado hj fiquei com vontade de explorar um pouco da america central para ir começando a sonhar com a minha viagem. Comecei na cidade do mexico e obviamente so consegui parar na rute...
Geniais os teus posts!

Abraço