Cheguei, finalmente, a Kathmandu..é de noite e sento-me num cyber-café, recapitulando as cenas dos ultimos dias…
Turbantes no avião
Turbantes no avião
Já no aviao entre Frankfurt e Delhi (que so apanhei porque compensei com uma corrida desgracada de um kilometro pelo aeroporto de Frankfurt o atraso com que a Tap, com os sorrisos do costume, me presenteou à saida de Lisboa) fui apanhado de surpresa pela quantidade de indianos de turbante que voavam comigo no gigantesco 747 em direccao a Nova Delhi. De facto, se voar ja me assusta um bocadinho, ir num aviao daquele tamanho, rodeado de senhores de turbante na cabeca e sentado ao lado de uma indiana com uma crianca de meses e a berrar com febre, ainda para mais a ser consolada por um mais do que apenas “maricas” hospedeiro da Lufthansa (que infelizmente tambem me adorou), ainda me deixou mais aterrado. Felizmente, algumas horas sem dormir (tive, como sempre, a ma fortuna de ir na fila dos bancos nao-reclinaveis) e zero torbulencia depois, o nosso meio de transporte aterrava em Nova Delhi, permitindo-me (e ao gang ds turbantes) finalmente esticar as pernas e cheirar um pouco do terceiro Mundo.
Fala-se portugues em Delhi
O meu amigo Constantino Xavier apanhou-me no aeroporto e partilhou comigo, ate sua casa numa zona residencial da cidade, a marvilhosa sensacao que é a da viagem pela cidade do pais em desenvolvimento (nao quero ofender ninguem com a expresso “terceiro Mundo”, embora talvez fosse a mais adequada): sinalizacao inexistente (des)regulava o compasso descontrolado de camioes gigantescos, carregados de agua, lenha, bilhas de gas a cair pelas bordas, o ar pesava quente e empoeirado e infiltrava-se, junto com a poluida atmosfera da metropole, nos meus pulmoes. E, apesar desta aparentemente desagradavel descricao, aquela viagem pela escura noite dos arredores de Delhi num taxi desengoncado, trouxe-me a enorme sensacao de liberdade, ajudada pela brisa fresca que corria pelo sujo vidro meio aberto.
Uma noite de 4 horas levou-me a acordar estremunhado as 8 da manha, correspondentes a menos quatro horas e meia em Portugal para me meter no banco de tras da scooter do Constantino e ir passear pelas avenidas da cidade.
Temos portanto, por entre o ensurdecedor ruido de milhoes de buzinas de scooter, carros, taxis e camioes, um portugues acordado de madrugada, a passear sem capacete no banco de tras de uma scooter por entre as avenidas de Delhi, rodeado de gente, a pe, de bicicleta, de transportes, deitada, sentada, a cortar o cabelo, a vender fruta, a dormir, a pedir, a recolher lixo (sem sucesso) ou simplesmente a existir, em mais um sabado de uma manha indiana.
A dada altura, esse portugues olha para o reflexo desfocado da sua cabeca no capacete do amigo que o conduz e pergunta-se, mentalmente (senao, nao ouvia) e verdadeiramente intrigado: “Quem é este louco?”, apenas para descobrir que esse alguem era ele proprio, e que ha muito que nao sentia tamanha felicidade, talvez desde a ultima vez em que cheirara e sentira o cheiro daquelas existencias marginais e o bater das cidades que se movem por subsistencia e nao por prazer.
Infelizmente, um refastelado policia tinha uma opiniao parecida sobre o portugues, nao hesitando em saltar do seu banco a sombra da bananeira para o multar por falta de capacete, tendo no entanto a simpatia de reduzir a multa para metade do valor, fazendo assim desaparecer dentro do seu bolso o recibo por passar.
Fiquei portanto a saber que andar sem capacete em Delhi custa o mesmo que pouco mais que um bilhete de metro em Lisboa. Sai barato portanto. Tao barato, que pelos vistos nao rende ao policia multar os restantes milhoes de infractores daquelas largas avenidas, por exemplo por excesso de velocidade, buzinas, inversoes de marcha, marchas-atras indevidas, falta de matricula, falta de revisao, inexistencia de tubos de escape, excesso de carga, excesso de passageiros ou apenas conducao em sentido contrario ou ultrapassagens indevidas.
Seja como for, estava quase na hora do aviao para Kathmandu, pelo que depois daquelas deambulacoes o Constantino la me conseguiu mostrar um gigantescto complexo patrimonio da Unesco, cujo nome ja nao recordo mas cujas estruturas magnificas e bem preservadas me perseguirao durante muito tempo, naquela que foi a minha amostra cultural nas duas horas que tive de uma India diurna.
De novo no ar
Mas o meu destino nao era Delhi. Lembro-me entao de apanhar o meu voo para Kathmandu, numa companhia low-cost indiana chamada “Air Sahara”. Sem duvida, o programa mais seguro do Mundo.
Meio ansioso pela espera e pelo voo que se avizinhava, tive ainda a infelicidade de estar a olhar para a porta de embarque quando o piloto entrou, testemunhando assim que quem iria comandar a minha vida durante as proximas duas horas era um gordo de turbante e barbas compridas. Era uma da tarde e tinha uma banana e dois copos de leite no estomago desde as 8 da manha, mas aquela imagem encheu-me de uma tal angustia que perdi o resto da fome que trazia comigo desde o fim da banana, engolindo a custo – motivado pelo devorar glutao do indiano ao meu lado – o caril de galinha que me serviram ja a bordo, num voo que se veio a revelar tao profissional como qualquer outro, isto é, sem o aviao cair comigo la dentro.
O meu caro colega de aviao merece aqui uma mencao especial, pela forma caricata como comia o seu pao com manteiga: bloco de manteiga inteiro em cima do paozinho, e ambos na mao esquerda. Depois, a direita rasgava um bocado do pao, outro tanto da manteiga, encarregando-se a enorme boca de bigode de abocanhar a estranha mistura, bem como o dedo engordurado.
Afinal, agora que penso, o voo nao foi la muito profissional.
La ao longe, Kathmandu
A meio do voo (felizmente, o tabuleiro do meu companheiro ja tinha sido levantado, apos ele devorar ainda a porcaria da galinha da sua magra mulher), vao surgindo colinas cada vez maiores, que a medida que os minutos passam se tornam em montanhas verdejantes, alteadas por casinhas e campos de arroz e cha nos seus vales, que se estendem a escassos metros do aviao. Um cenario magico, que anuncia a minha chegada aos Himalayas e deixa antever, la ao longe, um enorme vale plano pintalgado por uma amalgama de casas baixas. “Parece-me que estou a ver Kathmandu”, penso, sem realizar ainda o momento unico que estava a viver, depois de tantos anos a sonhar com esta palavra magica. Kath-man-du. Quem nao sonha com esta meca de templos, macacos, alpinistas e riquexos?
O aviao rasa perigosamente as montanhas e, quando (de novo assustado) penso que é desta que vai rocar nelas e despenhar-se no meio daquela beleza, o vale abre-se por inteiro e uma luz incandescente ilumina a extensao em todo o seu esplendor. Enquanto aterro, mal creio no que vejo. Uma cidade enorme espalha-se por entre um vale rodeado de gigantescas montanhas, como que protegido do Mundo e mostrando-se, magnifico, a quem o quer alcancar por ar.
“Kathmandu. Acabei de aterrar em Kathmandu!” repito-me, incredulo, observando com gozo e um sorriso cumplice as caras estarrecidas dos outros turistas, igualmente deliciados com a sua presenca naquele local, com a sua existencia naquele momento.
Depois, ligo o telemovel 93.
Sem rede.
O 91.
Sem rede.
Tenho os telemoveis sem rede. Estou no meio de uma cidade asiatica, rodeada pelos Himalayas, num pais de terceiro Mundo e sem conexao a casa, a minha familia, aos meus amigos, as minhas raizes. Estou sozinho comigo.
Ha quanto tempo nao estava?
O Far-West
No aeroporto sou completamente aldrabado no cambio de dinheiro e apanho um taxi para o bairro de “Thamel”, guetto pre-meditado dos turistas de Kathmandu, atolado de hoteis, restaurantes, lojas, livrarias e restaurantes. Nao e propriamente o que se espera da capital do Nepal, mas os milhares de montanhistas e curiosos que anualmente vem aqui em busca de 8 das maiores montanhas do Mundo tem de ficar alojados algures.
Alias, o conceito nao é, em si, errado: apos as vielas estreitas e sujas dos arredores - onde as cenas do dia-a-dia se repetem como em Delhi, com as mesmas buzinas, transito, vendedores e deambulantes, mas num cenario microscopico e por entre casas pequenas e atoladas de gente - surge um bairro mais limpo onde todos os viajantes se concentram, uma especie de quartel-general a partir de aonde cada um se aventurara em busca dos recantos da cidade ou dos encantos da montanha.
Thamel tem as ruas limpas, mas mantem os sons e o cheiro indisfarcaveis de Kathmandu, e apesar de nao adorar estar rodeado de gente loira quando supostamente vim em busca dos Himalayas, reconheco que este é apenas um recando da cidade, onde vou apenas dormir e talvez comer. Gasto ainda muita energia a afugentar chatos que vendem hoteis, refeicoes, tours e conversa, numa luta diaria por um turista, ja que a vida nao é facil para os lados do Nepal.
No terraco do hotel em que me alojo, discuto com dois simpaticos nepaleses de uma agencia de viagens a minha expedicao as montanhas e ao Tibete (onde nao se pode entrar sem ser com uma agencia). Sao cinco da tarde e um sol alaranjado que se esconde atras dos montes enormes ilumina o lento escurecer da cidade, cujos templos e telhados vejo confortado por um cha nepales, quente companheiro contra o frio que entra lentamente.
Sao 9 da noite e escrevo, como ja escrevi no meu caderno e como sem duvida o meu cerebro escreveu nele proprio, para que o meu dia entre os escapes de Delhi e as montanhas de Kathmandu nao se perca para sempre.
Quando sair deste cyber-café vou jantar qualquer coisa, ver se ha por ai gente a solta, e dormir descansado, sonhando com a realidade que se esconde – por certo – por detras das muralhas de Thamel: amanha, espero perder-me por entre as vielas desta cidade historica e sentar-me a procurar as montanhas por entre os telhados dos templos do centro da cidade.
Amanha é outro dia, e eu vou estar ca, em Kathmandu, acompanhado de mim mesmo e imensamente feliz com o momento que vivo.
4 comments:
adorei ler!
(o mais cómico foi sem dúvida o "ainda momento ocidental" da parte do hospedeiro gay da Lufthansa que te adorou :p)
Essa tua descrição da India está mágica. Faremos uma travessia histórica por essa terra, nuns veiculos igualmente históricos
Luis Pedro, tens que comprar um turbante da shoei. Assim ja nao ha problema.
Muito bom! É sempre refrescante um ler um blogger que saiba escrever. E ainda por cima, de experiências não acessíveis ao comum mortal. Siroco, vende esta merda para revistas já! Abraços
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