- Queres ir dar um mergulho?
- Vamos!
- Como é que te chamas?
- Jaime. E tu?
- Miguel.
- Boa. Queres ser meu amigo?
- Pode ser.
E desde esse dia, passaram jogos e jogos de caricas enferrujadas, pedaladas de gaivota, fantas de laranja ao fim de tarde, corridas à beira-mar e calcanhares com areia colada no caminho para casa; passaram braçadas de mariposa, tabelinhas em balizas de um pé, olhares para bikinis às flores; passaram cervejas roubadas, diálogos em surdina, relatos ruborizados de beijinhos proibidos; passaram suecas metediças, acordes acústicos ao alaranjar, camisas abertas ao vento, colares de missangas, madrugadas sem dormir; passaram músculos que cresciam, e lutas lado a lado, e mais beijos em noites de loucura; passaram as primeiras vezes, e as segundas, e tantos verões e novos amigos, e miúdas por todo o lado; e passaram invernos inteiros, e aulas, e regressos às aulas, e páscoas e carnavais, e natais e frio, e equinócios de espuma branca; e passava isso tudo, e regressava o verão, e a cada verão regressava o abraço forte de quem ama sem compromisso, o abraço cúmplice que só dois amigos de alma sabem e podem dar, o abraço de uma saudade de dez meses sem falar, de dez meses de cada um por si, de batalhas individuais o ano inteiro.
Aos 18 anos Jaime e Miguel eram a praia. Não eram os mais giros, nem os mais engraçados, nem os melhores jogadores de futebol, nem os mais simpáticos, nem os mais educados, nem os mais bem vestidos, nem os mais inteligentes. Eram os mais amigos, e essa alegria contagiante dos olhares que trocavam em tudo o que faziam, sempre juntos, sempre em dupla, sempre em complemento como quando um tocava os acordes e o outro dedilhava as segundas vozes nos anoiteceres de fim de tarde, essa única e inexplicável comunhão, fazia de Jaime e Miguel os mais queridos entre todo o verão quente daquela praia de areia fina.
No verão dos 18 anos, Jaime e Miguel tocaram todos os dias e todas as horas de meia-luz Time of Your Life nas suas violas, encantando os corações ruborizados que os ouviam, e mesmo no primeiro dia do verão tudo saiu perfeito, porque ambos a tinham ensaiado, cantado e tocado, por si, durante todo o Outono e Inverno e Primavera anteriores, como fez o Mundo inteiro nesse ano, comovido com a história de uma namorada que fugiu para a América do Sul e que um americano decidiu contar num cd de média memória.
Esse foi o verão de todas as loucuras, de todas as batalhas, de todos os amores e desamores, de todos os trágicos sucessos que o vento norte de Setembro varre todos os anos das juventudes conquistadas a sal e sol.
No último dia do verão, o sol afogava-se, na sua dignidade de padrinho da província, no mar queimado, e Miguel e Jaime deixaram-se ficar no topo da duna, quando o resto do grupo seguiu para casa, em antecipação do jantar de despedida dessa noite.
- Mais um verão Jaime.
- Mais um..
- Vou ter saudades tuas pá
Riram-se comprometidos, já a meio sol
- Tocamos isto uma última vez?
- Só os dois, aqui?
- Achas roto?
- Pá acho, mas se calhar vai mudar as nossas vidas.
- Se calhar vai.
O Sol, essa viúva alaranjada, soluçava os últimos goles da água que o inundava. As violas dançaram nas notas acústicas. Estavam a tocar sozinhas: sabiam a música de cor.
Another turning point a fork stuck in the road
Time grabs you by the wrist directs you where to go
So make the best of this test and don't ask why
It's not a question but a lesson learned in time
Olharam-se nas lágrimas derramadas e seguiram para casa sem falar. Nessa noite, na noite de todas as loucuras e de todas as lágrimas, ninguém percebeu que Jaime e Miguel estavam, no seu silêncio entristecido, a olhar-se pela última vez na vida.
It's something unpredictable
But in the end is right
I hope you had the time of your life
So take the photographs and still frames in your mind
Jaime apertou a mochila à volta da cintura e fez-se ao comboio. Atravessou Espanha inteira e os Pirinéus a pé. Desbravou o centro da Europa, e as vindimas na Bretanha. Chegou até à Bélgica e voou, perdido, pelas ruas de Amsterdão. Aguentou o frio inverno da Escandinávia, e passou a Primavera no sol da meia-noite. Passou uma temporada pescando com os povos do Norte, e um verão na Rússia. Andou sobre carris através da Mongólia, e apaixonou-se pela francesa com quem foi preso por engano em Pequim. Juntos chegaram a Tóquio, onde durante anos ensinaram viola num centro social. De Tóquio correram por toda a Ásia até à Indonésia, e velejaram pelos mares do Sul até chegar, muitos meses mais tarde, ao porto de Buenos Aires. A última vez que uma máquina fotografou Jaime na viagem sem regresso da sua vida, numa fotografia amarelecida em que Miguel veria, muitos anos depois e por acaso, o sorriso da sua própria juventude, Jaime brilhava sob o sol gelado da Terra do Fogo, os cabelos negros de sempre esvoaçando sobre uma espessa barba, e uma carica enferrujada entre os dentes.
Hang it on a shelf in good health and good time
E Miguel, medico de mão cheia, salvador de vidas e ressuscitador de corações, estudou para ser o melhor médico de Lisboa, e estagiou todos os verões e todos os invernos. Cedo perdeu o sorriso descomprometido dos verões da praia de areia molhada, numa seriedade comprometida de quem lida com a vida e a morte, mas nunca esqueceu a saudade do amigo de toda a vida, que partira para nunca mais voltar. Miguel tornou-se grande, e casou cedo com a filha da melhor amiga da mãe. Operou mais de mil corações ao longo do seu caminho de ancião de cabelo branco, viveu para levar netos a passear à praia da sua juventude e assistiu, intacto e de bengala debaixo do braço, ao casamento da primeira bisneta.
Tattoos of memories and dead skin on trial
No dia em que, em mais uma passeata de bairro já corroída pela pele encarquilhada, um jornal rasgado lhe veio parar às mãos com a notícia do corpo recuperado intacto de um turista português desaparecido 75 anos antes numa zona gelada do sul do Chile, Miguel deixou-se cair de joelhos com a fotografia antiga de um miúdo da idade do seu neto mais novo, alegre em toda a força da sua juventude. “Aposto que tiraste esta fotografia para me mandar, Jaime”, chorou.
For what it's worth it was worth all the while
E, passando a sua longa vida a pente fino, entendeu finalmente que ele só poderia ter sido um médico agraciado com a vida regular e Miguel um aventureiro desgraçado no gelo depois da adrenalina da vida vivida ao máximo.
It's something unpredictable
But in the end is right
I hope you had the time of your life
“Porque tal como dois amigos se complementam, também a vida é um equilíbrio regular. De altos e baixos para uns, de uma enorme linha recta para outros.
Espero que tenha sido a viagem da tua vida Jaime. A minha foi longa, mas se valeu a pena, foi pelos nossos verões de areia alaranjada.”
E a Miguel parou, naquele insignificante segundo, o coração, devagar, tão devagarinho como sempre ponderara as suas decisões de médico velhinho, e Miguel exalou ainda um grão de areia pela boca aberta do seu último suspiro, antes de se recostar para sempre num silêncio de pôr-do-sol.