Conheci na semana passada um tipo engracado numa livraria em Pott's Point chamada Macleay Bookshop. A Macleay é uma livraria intimista, onde nas quentes tardes de domingo uma brisa fresca entra pela pequena porta de vidro entreaberta e, lá dentro, os acordes de compositores russos do século XX inebriam o lote de vagabundos, curiosos, excêntricos e intelectuais que se rocam uns nos outros no confinado espaco, inclinados sobre apertadas estantes onde todo um mundo se condensa em capas todas deitadas na vertical.
Estava lá um mulato a legericar um livro qualquer do Pablo Neruda e eu meti conversa, nao fosse ele explicar-me melhor o que faz do Pablo Neruda o Pablo Neruda (porque eu ainda nao percebi), e, conversa puxa conversa, contou-me que se chamava Albert e que a família dele era orginalmente de Pheling, o que obviamente me interessou; acabei por ficar uma meia hora à conversa com ele, no fim da qual me quis contar uma história que lhe tinha sido contada a ele, por sua vez, pelo seu avo, que transcrevo de memória e que aparentemente se passou algures nos anos 40 numa ilhota do arquipélago de Pheling, chamada Malabins, ainda o Albert nao era nascido:
"Havia um tipo em Malabins (o Jorge, ninguem gostava muito dele) que tinha a mania que era filantropo.
Um dia, ganhou a lotaria nacional (Malabins é uma das ilhas mais pequenas no arquipélago de Pheling) e fechou-se em casa sem saber o que fazer ao dinheiro. O Jorge sempre espalhou pelos quatro promontórios que "se fosse rico, dava o dinheiro todo aos pobres" e quando se viu despojado da nova fortuna pelo peso da reputacao das barbaridades que dizia, fugiu para a sua cabanita no interior e trancou a porta por fora.
Malabins nunca foi uma ilha rica nem pacífica e a fortuna nas maos do Jorge nao lhe poderia sobreviver muito, pensava ele, até porque o Wilson, o padeiro, para alem de ser o presidente do sindicato, tinha em seu credito uma promessa do Jorge de um dia, se fosse rico, lhe comprar o negocio e ajudar à sua reforma, e o Jorge agora andava todo acagacado que o Wilson lhe viesse cobrar as dividas de trigo mal moído.
Pensou, pensou, pensou, e tres dias depois saiu de casa com as notas todas no bolso - molhos de notas de 50, impecaveis, amarelas, novinhas em folha, à prova de agua como todas as notas de Pheling (que, apesar de tudo, é um arquipélago) -, pegou na bicicleta e guiou directamente montanha abaixo para a rua principal, na altura uma estradiola de pedra quinhentista - nada acontecera naquela rua desde a chegada dos portugueses - entre palacios coloniais descascados de cor e casebres de madeira mal parida.
"Que merda de vilario", pensou o Jorge, "e que merda de consolacao, ser o gajo mais rico deste buraquedo."
(É espantoso o sentido tragi-cómico do Jorge, tendo em conta que Granding Island era o máximo de civizacao que alguma vez conhecera.)
Pousou a bicicleta numa esquina, enrolou um cigarrito, levou as maos aos bolsos e caminhou para o meio da rua. Era meio-dia em Malabins e a ilha parecia estar ali toda caída. Bicletas para cá e para lá, um ou outro carro sem escape, lojecas abertas, bancas de fruta, vendedores de peixe, filas para o correio e tres ou quatro policias a soprar moscas da ponta dos narizes - narizes suados e incómodos, porque na única rua alcatroada de Malabins faz mais calor do que nas montanhas da ilha, e as montanhas da ilha sao as mais quentes do arquipélago.
O Jorge avancou para o meio da pastelosa movimentacao do dia-a-dia, posicionou-se exactamente no centro da rua e, sem parar, avancando irreverentemente rua abaixo, levou uma mao a cada bolso, pegou num maco de notas com cada mao, e atirou-as ao ar. Em silencio. Nao se virou para ver o que se passava atras dele, enquanto, imaginava ele, uma fortuna que já nao era sua bailava em zigue-zague pelo ar abaixo; mas viu a cara das pessoas mesmo à sua frente, paralisadas por um momento, e depois, bocas abertas, sem som, olhos pasmados, viu como se dobraram e contorceram e correram passando por ele.
O Jorge nao precisou de olhar para tras para ver como os pobres diabos se atiravam que nem caes à fortuna que ele lhes deixava, nem precisava, porque tinha mais notas e mais passos para dar, e a cada passo lancava mais dois macos, mais uma fortuna, e deu tantos passos como tinha notas, até chegar ao fim da rua, e uma vez lá chegado pediu uma limonada com a unica nota que tinha (guardada para o efeito), deixou o troco ao fiel dono da banca - que nao tinha abandonado o seu posto de venda apesar da fortuna que lhe voava em frente à janela - e caminhou de volta até à bicicleta, indiferente ao orgasmo de ganancia e miséria que se passava ao seu lado. Montou a bicicleta e voltou para casa, para a montanha."
Aqui, o Albert calou-se, sorriu, e disse que tinha de ir embora. Achei esta história deliciosa. Nao me pareceu que ficasse por ali.
- Albert, e depois? O que foi dele??
- Olha, depois, a malta que recolheu o dinheiro sentiu-se mal com aquilo tudo e, acabado o frenesim da recolha, olharam todos uns para os outros com ar de culpa, juntaram-se e, com o Wilson (o padeiro) à cabeca, subiram até casa do Jorge para lhe dar o dinheiro de volta.
- Todos??
- Todos!
- E o Jorge?
- O Jorge? O Jorge disse que nao, que era um tipo honrado, que sempre dissera que queria ajudar a ilha, e nao queria o dinheiro.
- E eles foram embora?
- Foram. Foram todos embora, mas naquele dia um ou outro fez o mesmo que o Jorge: pegou em tudo o que tinha, foi para a rua e atirou as notas ao ar - as que tinha recolhido do Jorge mais as proprias poupancas.
- E alguem apanhou?
- Claro! Pareciam caes outra vez.
- Durou pouco o remorso..
- Nem por isso. Depois disso, ao fim da tarde, cinco ou seis pessoas fizeram o mesmo.
- O mesmo?? E toda a gente veio, outra vez?
- Toda a gente. E no dia a seguinte foram mais, e no dia a seguir ainda mais, às tantas havia mais gente a atirar notas do que gente a recolher.
- Mas se as pessoas estavam a juntar as suas poupancas às notas do Jorge, toda a economia da ilha, às tantas, estavam a esvoacar rua abaixo.
- Mais ou menos isso.
- Que loucura!! E depois?? Como é que isso acabou??
- Olha, passada uma semana, o Jorge, que soube do que se estava a passar porque lho contou uma mulatita que lhe achava piada e o ia visitar todos os dias e o aliviava, foi à vila e convocou uma reuniao geral para o dia seguinte, em que os poucos que, naquela altura, acumulavam todas as notas da ilha (os unicos, portanto, que nao tinham atirado nada ao ar e que passavam os dias a recolher as notas de que os outros se livravam) se juntariam para, tambem eles, atirar as notas todas ao ar, e assim acabar com aquela loucura.
- E eles foram?? Quer dizer, no fundo esses eram os mais gananciosos. Ele conseguiu convence-los?
- Sim. Tinha o apoio do Wilson, que naquela altura ja nao tinha um tostao, tal como a maioria da malta.
- Mas porque é que toda a gente se meteu nessa loucura?
- Sei lá. Isto sao histórias que o meu avo me contava. Eu nunca fui a Malabins, sou de Granding.
- E depois?
- Olha, no dia seguinte a vila juntou-se toda para assistir ao arremesso final das notas. O Jorge meteu-se no meio da rua, levantou um braco, e os tres ou quatro tipos que tinham as notas todas da ilha pegaram nas sacas cheias de notas e atiraram-nas todas ao ar!
- E o dinheiro voou todo pela ilha fora??
- Nao. Nesse dia nao estava vento.
- Entao?
- Basicamente, o Jorge pegou nas sacas, encheu-as uma a uma com as notas que dormitavam no chao, carregou um carro, que entretanto tinha pedido emprestado, com elas, guiou ate ao porto, encheu um barquinho que tinha com os sacos, e remou dali para fora, sem olhar para tras. Nunca mais la pos os pes. Num dia deitou a lotaria toda fora, uma semana depois tinha todas as notas da ilha no bolso. E nunca tinha deixado de ser esse o plano, gosto eu de imaginar. Mas isso ja nao sei.
- E ninguem foi atras dele?
- Tambem nao sei. Diria que nao.
- Nao sabes como?
- Nao estava lá. Mas se me perguntares, acho que toda a gente estava meio hipnotizada com aquela loucura toda.
- Mas o teu avo nao te contou essa parte?
- Nao, o meu avo nunca me contou mais pormenores. Mas nunca mais voltou a Malabins.
- Tambem saiu de lá, o teu avo?
- O meu avo era o Jorge.
Nesta altura, desculpou-se por ter que ir, virou-me costas, e desapareceu porta fora, deixando-me entre On the Road e um livro de contos do Melville, escolha que, apesar de difícil, foi diplomaticamente resolvida com a compra dos dois.