Ganhei um súbito respeito e admiração pelos velhos. Velhos e velhas. Gente velha. Idosos, que é como se trata agora - como quem chama homossexuais aos maricas, ou países em vias de desenvolvimento ao Terceiro Mundo, ou primeiros-ministros aos ratos de partido que lambem mais botas; bom, indo ao que interessa -, as pessoas velhas.
Estava sentado num banco de aeroporto a passear-me sem noção de gravidade pelos jardins amarelos de Windsor for the Derby , quando um senhor para lá da barreira dos 80 anos se arrastou lentamente até ao banco à minha frente, se sentou e me sorriu timidamente.
"Coitado", pensei eu, "place your ear to the ground, you'll hear a voice", e desliguei o iPod porque já estava a sonhar com a letra da música. "Coitado", voltei a pensar, "deve-se sentir complexadíssimo a andar tão devagarinho e com aquelas pernas tão frágeis, entre a dinâmica acelerada destas gentes de aeroporto.
Mas depois comecei a imaginar o que levaria aquele velhote a ter de apanhar um vôo. O meu avô, por exemplo, não pode voar, diz que lhe faz mal aos ouvidos. Mas aquele senhor - vamos chamar-lhe Samuel, que é um nome internacional e ele não tinha ar de português -, o Sr. Samuel estava ali com um objectivo e obviamente uma necessidade inerente de transporte. Ele necessitava de ir de um lugar a outro. Havia acção na sua lenta vida.
O Sr. Samuel, aos 80 anos, estava - e está, espero (embora se trate de um desconhecido que me deveria ser indiferente) - vivo. Activo. Há acção na sua vida. Um propósito. Uma Personalidade, para lá do "velho".
Que série de acontecimentos na vida deste velho, pensava eu, levaram a este momento? E mais, que se andou a passar na vida dele durante tanto tempo? Este homem já cá anda há anos e anos e anos, já deve ter feito mil coisas, guiou mil quilómetros, conheceu mil mulheres, teve mil filhos e bebeu o leite de mil vacas e o vinho de mil uvas. Para além das outras mil coisas que fez.
E foi aí que eu percebi o pouco que sei da vida e o pouco que fiz.
E percebi, também, que não tenho garantia nenhuma de chegar à idade do Sr. Samuel e que, provavelmente, a esperança de vida para mim é inferior à idade dele.
E olhei então para os meus pézinhos de 24 anos, convencidos que vão a todo o lado e que são ágeis para sempre, e comparei-os com os ossos fracos do meu colega de aeroporto; e reparei que os meus pés correm muito mais rápido do que os dele, hoje, mas que eu não fazia idéia de quão rápido aquele homem terá conseguido correr nos seus melhores dias, nem como foram e onde foram os seus melhores dias, nem que tipo de homem ele foi quando tinha a minha idade, nem se era melhor ou pior que eu nas mil e uma variáveis da vida na terra.
A única garantia que eu tinha e tenho é que o Sr. Samuel viveu até aos 80 anos e estava exactamente no mesmo sítio que eu.
E imaginei então quantos amigos do Sr. Samuel já estariam mortos, e quantos colegas de trabalho, de faculdade (se tiver andado na faculdade), e de liceu, e quantos vizinhos da sua rua de infância e quantos filhos de amigos dos pais dele nascidos no mesmo ano.
Aos 80 anos, cheguei eu à conclusão, o Sr. Samuel é um sobrevivente da sua geração. É um dos mais fortes de todos, não morreu à nascença, nem em bébé, passou a infância e a adolescência, passou os 30, e os 40, os 50, os 60, os 70 e os 80.
Sobreviveu a doenças, ao frio, ao calor, a desastres de auto-estrada, a atropelamentos, a envenenamentos, a porradas, a bulhas, a intrigas, a mesquinhices, a empurrões, a temporais; não se afogou no mar nem se sufocou em lado nenhum, não ficou preso num incêndio nem foi vítima de um tremor de terra. Protegeu-se do frio no Inverno, alimentou-se decentemente, resistiu ao fumo do tabaco que o rodeou durante toda a vida e não sucumbiu às malhas do alcool ou das drogas.
O Sr. Samuel, como todos os velhos que andam pela rua à nossa volta
- os "coitadinhos", os "inúteis", os "pesos", os "chupa-recursos-do-Estado", os "atrapalhas", os "distraídos", os "pitosgas", os "doentes", os "teimosos" -
é um homem forte e viveu muito mais do que a maioria das pessoas.
E o Sr. Samuel estava no sul da Europa. Que dizer de um velho noruguês ou russo, em 80 invernos a -20ºC? São todos, até prova em contrário, muito mais homens do que eu provavelmente vou ser, a alimentar-me desta maneira de café e peixe-cru.
E por isso, agora, olho cada velho com o respeito que me merece um sobrevivente, o respeito perante alguém que soube e conseguiu fazer aquilo de que todos nós andamos atrás, desde o princípio, desde a primeira luta entre tribos, desde o primeiro roubo de comida, passando pelos alquimistas da idade média, até aos laboratórios de pesquisa contra o cancro dos dias de hoje: viver o máximo possível.
Os velhos já cá andaram. Eu ainda não. Eu não sei nada.
Eu, nós todos, o que queremos mesmo é chegar a velho. Quem não quer chegar a velho não quer consumir tempo. Quer morrer.
Na luta-base de todos os homens - a sobrevivência - os velhos são mais bem sucedidos do que os outros todos.
É a matemática da vida.
4 comments:
LP,
Na luta base claro que são. Mas no texto tu não falas só da linha base, falas de muito mais coisas, especialmente daquilo que se constroi sobre essa linha base.
E nessa construção acho que, embora importante, a idade não é fundamental.
A matemática da sobrevivência pode ser simples, mas a da vida é demasiado complexa para se reger por critérios como a idade.
a minha avó tem 88 e ainda há 15 dias fez uma viagem de avião ;)
Os meus avós, que me criaram, não chegaram tão longe, pelo menos em termos de idade. Também não viajaram, nunca saíram sequer de Portugal, mas as histórias para contar aos netos não lhes faltavam.
Gostei de te ler.
Uma matemática com sabor a literatura e uma equação a que muitos mais precisam ainda de chegar
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