- Vou embora pa!
- Hum?
- Ja tomei duche, vou embora, tenho o voo para Nova Iorque daqui a 4 horas e ainda tenho de apanhar o autocarro ate Cancun.
- Ah! Ta!
- Vou ter saudades tuas pa! Alias ja tenho!
- Tambem eu!
- E agora ficas dois meses sozinho!..
- Vamos la ver! Nao devo ficar, eles devem vir ca ter em Agosto!
- Apetece-te um mes sozinho??
- Claro pa. A descobrir o Mundo. Preferia que ficasses, mas nao podes, nao podes!
- Ta bem! Bem, vou andando entao.
Levanto-me e acompanho-o a porta. Pelo caminho, ligo o ar. Olhamo-nos nos olhos e abracamo-nos ja com saudade.
- Boa viagem pa!!
- Bom estagio!..
E la foi ele. O Joao. Companheiro de horas de autocarro, garrafas de Bacardi, ruinas antigas, praias desertas e com sereias, mergulhos em corais, scooters pela costa, noites de loucura, conversas em espanhol, jantares na rua, negociacoes de precos, decisoes de itinerarios, passeios em vilas coloniais. Companheiro e amigo daquela hora morta que e a paragem numa estacao de servico as 3 da manha numa viagem de 12 horas, companheiro e amigo naquela hora viva que e a paragem numa pista de danca as 3 da manha, numa noite de 6. Companheiro de todas as horas vivas e mortas de uma viagem, de todo um itinerario percorrido, de quilometros e quilometros de estrada, pessoas, lugares, presentes e passados.
E la foi ele levando de mim, quem sabe, o gosto por conhecer civilizacoes antigas, o prazer de um taco servido numa rua poluida, a beleza da Realidade que nem sempre toda a gente considera bonita. E deixando em mim o prazer por um conforto que muitas vezes nos faz bem, de noitadas sucessivas sem cafe, de desembaraco a qualquer hora e qualquer altura, o gozo de dormir ate tarde mesmo em viagem, porque a vida tambem o é de noite.
Agora, sigo caminho sozinho.
Flashback
Adeus ao mar
Das praias de Zipolite seguimos em direccao ao Norte, em busca das cidades coloniais de Oaxaca e San Cristobal de las Casas. Temos menos tempo do que queriamos e pretendemos passar a noite de sexta em Cancun e decidimos por isso passar so uma noite em cada lugar.
A viagem de Pochutla, uma poeirenta viloria junto a costa Sul do Mexico, ate Oaxaca, uma espantosa cidade colonial nas montanhas do centro, mata-nos as costas, numa mini-carrinha de 9 lugares. Estou entalado entre o Joao, que adormece passado cinco minutos, e Juan Antonio, um enorme cavalheiro de 130 kilos, que tem a simpatia de - reconhecendo a dimensao do seu desafortunado corpo - colocar o braco direito sobre a barriga, de modo a deixar-me algum espaco para respirar, ja que a minha direita uma boca aberta resvala os primeiros suaves ressonares de um leve adormecer.
Se nao fossem os bancos direitos, as pernas encolhidas, a chuva a potes, as lombas a cada quilometro e as ravinas la em baixo, tenho a certeza que teria apreciado com maior prazer as seis horas de incrivel paisagem verdejante que percorre montanhas e montanhas desde a selvagem costa batida pelas ondas ate ao coracao de uma das mais bonitas cidades mexicanas. Ser noite talvez tambem nao tenha ajudado.
Oaxaca
Em Oaxaca, como noutras cidades espalhadas pelo continente americano fora, deixo-me embasbacar com o Mundo espanhol que os antigos colonos souberam reproduzir na sua arquitectura colonial, recriando do outro lado do Mundo as suas catedrais, as plazas mayores, as suas varandas, os seus portais, as suas arcadas; no fundo, tudo o que conheciam de casa e construiram no seu Novo Mundo depois de, diga-se, chacinarem e colocarem ao seu servico a populacao local.
Quando o fim de tarde se aproxima, enquanto descansamos da pequena ida as ruidas de Monte Alban, indescritivel cidade perdida preservada no topo de uma montanha, toda a cidade parece reunir-se na praca central, onde num coreto saido de uma casa de bonecas a banda local comeca a tocar antigas dancas de salao e musicas latinas. Centenas de pessoas parecem continuar a sua rotina diaria de estar sentadas na praca, enquanto a banda enche o ar quente do entardecer com os seus ritmos latinos, num cenario tao bucolico quanto - como dizer? - antiquado. Sinto uma certa nostalgia ao olhar o velho maestro a explicar as velhas dancas, sob a bandeira do Mexico que esvoaca sobre a catedral, imponente senhora absorvendo o pequeno coreto onde os musicos impecaveis nos seus trajes humildes entretem a audiencia.
Sinto, neste fim de tarde, um sabor doce a casa, a origens comuns, a simplicidade, a gente que se reune em pracas, a bancos de jardim, jogos de cartas, pontapes na bola e chafarizes. Sinto um sabor a coreto, daqueles coretos de Lisboa, plataformas adormecidas nas vidas velozes da Europa mas aglomeradoras de vidas e conversas, nas montanhas do Mexico.
Chiapas e San Cristobal
Demoramos uma noite inteira, de novo entre montanhas, rectas sem fim, controlos militares as bagagens e paragens de madrugada para jantar, a vislumbrar as montanhas de Chiapas, que se erguem verdes sobre as nuvens da madrugada. Lentamente desperto do embalar do autocarro e sinto-me a vagar sobre as nuvens de uma terra que me desperta misterios antigos, lutas actuais e uma enorme curiosidade.
San Cristobal de las Casas e uma pequena vila de casas coloridas rodeada por montanhas e habitada por uma populacao mista de indigenas maias e visitantes estrangeiros despretensiosos, que coabitam num ambiente pacifico. As zonas envolventes estao cultivadas pelas encostas das montanhas abaixo, num cenario esverdeado em varios tons, tantos como os da discordia em torno desta regiao de camponeses pobres, talvez a mais pobre e mais bonita de todo o Mexico, segundo os relatos de quem sabe melhor que eu.
Deambulamos sob chuva miudinha por San Cristobal, as suas casas de bonecas, o seu ambiente relaxado, a sua vida despretensiosa, a sua igreja amarela, saida de um conto de fadas surrealista, e acabamos o dia numa discoteca latina descoberta ja em fim de noite, para nosso entusiasmo. Nao podiamos pedir mais desta vila encantada, que tanta saudade me deixa.
No dia seguinte partimos para as ruinas de Palenque, apenas para as encontrar fechadas. Contrariados e desapontados, mas embriagados com a ideia de uma sexta a noite em Cancun, decidimos nao esperar pelo dia seguinte e deixar Palenque para outra viagem. "Nos proximos dois meses, vou ter muitas ruinas maias com que me entreter.", tento desculpar-me, antes te adormecer no autocarro de 12 horas ate a costa caraibica mexicana
Cancun
Cancun e uma lingua de hoteis e resorts gigantescos de 20 kms, ao longo de um mar azul e uma praia de areia branca. Foi construido a partir de 1970 e tem hoje 700.000 habitantes. Tem mais de cinco Macdonald's e outros tantos Pizza Hut's, KFC's, e todos os outros fast-food americanos. Nao tem mexicanos. Nao tem europeus. E quente, feio, monstruoso, insultuoso, falso, plastico, sem gosto.
E um pedaco de Estados Unidos no Mexico mas, para compensar tudo isto, tem a melhor noite de todo o Mundo!!..
Mergulhos em Cozumel
Depois de um fim-de-semana muito pouco mexicano num magnifico resort de meio preco, partimos ate Playa del Carmen para ai apanhar um ferry ate a ilha de Cozumel, antigo santuario dos Maias e reconhecido actualmente como um dos melhores locais de mergulho do Mundo. Nao me lembro de o ter admitido ao Joao, mas o ar fresco das Caraibas que apadrinhou os primeiros roncos do motor do ferry e o lancou pelas aguas transparentes fora, trouxe-me a alegria incontida de finalmente deixar para tras os excessos da vida noturna em direccao a pureza de uma pequena ilha com recifes de coral.
Tentamos sempre, ao longo da viagem, conciliar dias divertidos e ricos com noites animadas mas, apesar de toda a diversao de Cancun, descobri definitivamente que nao tenho feitio nem prazer em pasmar na praia, frente a um arranha-ceus, ressacas de grandes noitadas. Seja como for, foi um fim-de-semana inesquecivel e uma oportunidade que dois amigos a viajar pelo Mexico jamais poderiam desperdicar.
A viagem ate Cozumel, que aparece la ao longe no horizonte, tarda menos de uma hora, o suficiente para aproveitar aquela inenarravel liberdade que proporcionam as viagens de barco. Provavelmente nunca virei a compreender porque e que tenho tanto prazer em ver a espuma ficar para tras e sentir o vento levar todas as preocupacoes enquanto o barco onde vou segue o seu caminho ate qualquer destino que seja. Curiosamente, tenho uma sensacao parecida em comboios. Gosto de ver o caminho percorrido. Gosto de ver novos caminhos. Gosto de caminhar, de olhar em volta, de pisar o chao a minha frente, de deixar pegadas e sensacoes no chao atras de mim.
Gosto. Adoro. Odeio andar de aviao em viagem. Gosto de percorrer distancias de autocarro, ver as paisagens durante o dia, sair das cidades atraves dos seus arredores poeirentos, assustar-me com curvas em estradas de montanha, irritar-me com o mastigar de boca aberta do passageiro ao meu lado, partilhar as minhas bolachas com o amigo do banco da frente. Gosto do que esta entre os lugares. Gosto dos paises por inteiro.
Muitas vezes, quando viajam, as pessoas buscam essencialmente o seu prazer pessoal, isto e, procuram comforto e diversao, para relaxar das suas aulas ou empregos. Normalmente, isto leva-as a paises desenvolvidos ou, quando ao terceiro Mundo, a locais ocidentalizados ou que proporcionem o merecido descanso.
No meu caso em concreto, encaro as viagens como a oportunidade de ver como as pessoas vivem, fora do meu pais. Nao preciso de estar divertido todo o tempo, nem sempre bem disposto, nem comodo, nem refrescado, nem bem sentado. A unica coisa que procuro e Genuinidade, seja num sorriso, numa cabana pobre, numa ponte sobre um rio lamacento, num vulcao imponente, numa avenida decrepita, em ruinas antigas, num restaurante de luxo ou numa banca de rua.
Quando viajo, nao busco o prazer, vivo em prazer, so por estar a ver realidades novas, mesmo que isso me custe ou, ate, me seja incomodo.
Muitos paises pobres tendem a empolar as suas atraccoes turisticas, criando um roteiro que acaba por limitar os visitantes. Basicamente, e possivel passar semanas e meses em paises onde 80% da populacao e pobre, sem sequer notar a essencia sociologica do pais.
Nao por querer ser diferente mas, precisamente, por querer ser igual - igual no sentido: partilhar uma mesma dimensao Humana - gosto de passar pelos paises e absorver a vida de quem la vive, ver como se passa o dia, como sao os transportes publicos, que tal a comida, qual o aspecto dos arredores das cidades para la dos impecaveis centros, geralmente polvilhados de edificios com interesse arquitectonico.
Essencialmente, para la do obvio prazer que me da uma praia, um parque natural, um mergulho com botija, um bom hotel, ruinas historicas ou monumentos antigos (estes ultimos, componente essencial para conhecer o Passado de qualquer povo), a minha grande busca em qualquer viagem que faca è a resposta a uma questao essencial: como seria a minha vida, se tivesse nascido aqui?
Poder conciliar essa busca com a vivencia de momentos especiais em locais unicos e, para mim, um dos maiores prazeres da vida.
(A vida: essa sucessao de memorias.)
Provavelmente, nao e nisso que penso quando o meu corpo submerge ansioso sob a agua transparente dos recifes de Palancar. Devagarinho ritmo a minha respiracao artificial e troco sinais obscenos com o Joao enquanto descemos ate ao fundo do mar, onde um universo colorido de peixes e formas fantasmagoricas nos proporcionam horas magicas.
Nao foi o meu primeiro mergulho, mas em cada submersao regressa sempre aquela libertadora sensacao de estar a vagar sem gravidade num local inexplorado. O fundo do mar guarda formas e segredos tao inalcancaveis, tao inexplicaveis, tao pouco naturais para o Homem, que cada mergulho e uma viagem ao nosso imaginario, aos filmes de ficcao cientifica, a cenarios de Super Mario; cada mergulho è uma interrogacao, uma colorida pergunta que nos circula pelo corpo dancance fora, ate fugir de nos, atraves das bolhas de vida que soltamos em direccao a superficie: que Mundo e este, que nunca poderemos tocar na sua plenitude e que vive tao bem, tao harmonioso, tao autonomo, sem que o possamos compreender?
O fundo do mar, como o fundo do ceu, e um reduto que o Homem ainda nao controla, mesmo que o compreenda.
Ja as praias desertas ao longo de toda a ilha sao mais faceis de compreender e disfrutar e alugamos uma pequena motinha onde nos divertimos a explorar a costa selvagem de mar azul e o vento que bate, pontuada aqui e ali por um barzinho relaxado, por uma cervejinha gelada.
Playa del Carmen e o regresso ao presente
Descobrimos em Playa del Carmen uma arranjada e cheia de estilo estancia de ferias, que se espraia sobre as espectaculares prais do caribe mexicano. Casas baixinhas e hoteis disputam o espaco com restaurantes com bom aspecto e bem decorados, cheios das mulheres mais bonitas da America do Norte e do Sul, bem como de todo o Mexico.
Aqui nao ha sujidade, nao lixo, nem poluicao. Mas tambem nao ha hoteis de 30 andares e Macodnald's a cada esquina.
Playa del Carmen e um lugar pequeno, com gente bem vestida, copos bem bebidos, musica bem escolhida e uma noite animada de quem esta de ferias e quer divertir-se ate ao dia chegar. Provavelmente e dos sitios com mais classe de todo o Mexico e fazemos os possiveis para o disfrutar em grande na ultima semana do Joao.
Quando nos abracamos na despedida e recordamos os vinte dias para tras, as loucuras de Nova Iorque, a magnitude da Cidade do Mexico, o espanto das ruinas, as ondas de Puerto Escondido, a maravilhosa heranca colonial espanhola, a areia branca do Caribe, os recifes de Cozumel, as noites da Riviera Maya, as pizzas hawaianas intercaladas com tacos de rua, as bancas de fruta e as garrafas de rum, ambos soubemos que esta foi uma viagem que valeu a pena.
E eu, nostalgico por uma hora mas energico, livre e entusiasmado logo a seguir, ca fico, a procura de mais, mais vida, mais gente, mais lugares, mais conhecimento e, neste momento, mais contencao no tamanho dos posts que escrevo!