Thursday, June 14, 2007

Pela costa fora

Tentados pelas promessas de uma noite animada, dirigimo-nos cheios de esperanca para Acapulco, onde tencionamos alugar um carro barato que nos leve pela costa fora e depois atraves do interior, ate a outra ponta do Mexico. Esperamos uma cidade feiosa junto a uma praia bonita com uma noite de cair para o lado, para depois partir junto ao mar a descoberta de outras praias e lugares.

Infelizmente, Acapulco, uma selva tropical de hoteis decadentes e ocos nao serve nem para passar uma manha. Suamos pela Alameda cheia de palmeiras e escapes barulhentos fora, ate encontrarmos alguem que no sugere o Hotel Copacabana.

"Es muy bueno! Hay mucha gente joven! Ai se quedan los del spring-break!"

Olhamos um para o outro. Ja que viemos a Acapulco, que seja para um ambiente destes! Entramos num hall impecavel que devolve, monotono, o som dos nossos passos. Pouca gente. Na piscina, sobre uma baia suja que banha uma lingua de areia decrepita, mexicanos de meia-idade tomam o ultimo sol da tarde nas suas tangas coloridas.

Olhamos um para o outro e, sob o olhar ansioso do taxista que nos levou ao hotel em busca de uma comissao, soltamos uma gargalhada espontanea, uma daquelas poucas reaccoes em que duas pessoas atingem o mesmo sentimento no mesmo momento e o manifestam da mesma maneira.

"ONDE e que nos nos enfiamos pa?!"

Fugimos do Copacabana de mochilas coladas as t-shirts alagadas e enfiamo-nos numa pequenita espelunca onde criancas se banham num piscina descolorada. Pelo menos tem ar condicionado.

Passamos o resto da tarde a desesperar por alguem que nos indicasse algum tipo de discoteca animada naquela cidade deserta e a procura de um restaurante com o bom marisco de que nos haviam falado.

Quando adormecemos as 9 da noite no quarto de hotel, temos a certeza de que nem bom marisco se come em Acapulco e de que noite, se houver, e noutra vida ou nos meses de verao.

Puerto Escondido

Fugimos no primeiro autocarro da manha para Puerto Escondido, numa viagem de oito horas atraves de montanhas e vales verdejantes, vendedores por toda a estrada, criancas sujas, bancas de fruta e paredes pintadas com anuncios, prenuncios sempre presentes do pais sub-desenvolvido que, para minha ingenua surpresa, o Mexico e.

Puerto Escondido foi outrora um spot meio secreto dos surfistas locais, ate se tornar conhecido dos surfistas de todo o Mundo, sendo actualmente considerada uma das melhores ondas da terra. Apesar da pouca distancia de Acapulco e outras grandes cidades, encontra-se totalmente distante do turismo de massa, atraindo actualmente uma comunidade internacional de surfistas e alguns turistas mais caloes como nos os dois.

Ainda que a propria terra seja uma pouca mexicana rua de barzinhos, hostels e restaurantes, vive-se um ambiente unico de tranquilidade e boa onda, a toda a hora acompanhado do som das enormes ondas que rebentam na praia mesmo do outro lado da estrada.

Chegamos de noite e fazemos-nos a vida com dois surfistas australianos que conhecemos no autocarro, e cedo chegamos a conclusao que somos de longe os dois homens mais gordos daquela terra. Resta-nos fazer o que podemos naquela concorrencia desleal que, pela noite fora, se processa pelas muitas nordicas presentes que, apesar de todo o nosso espanto, parecem ter mais interesse pelos mexicanos da zona. No segundo lugar da lista de prioridades estao os surfistas de todo o lado. Batalhamos duramente com os nossos argumentos de meninos de cidade, com um merito digno de poucos.

A praia e, finalmente, o paraiso que procuravamos, e passamos todo o dia nas aguas quentes do Pacifino e, no final da tarde, a ver os surfistas de nivel mundial partir ondas gigantes e perfeitas. O sol vai caindo ao ritmo de cada onda que rebenta, e cedo regressa a noite e mais animacao..

Apesar da conmunidade internacional de Puero Escondido, logo ali ao lado passa a estrada do Mexico real, a dos autocarros barulhentos, bancas de estrada onde velhas indigenas vendem agua, criancas em fardas de escola e o mesmo calor abrasador de sempre, desta vez ja a algumas centenas de metros do mar. E a beira dessa estrada que apanhamos um forno com rodas que nos leva pela costa fora ate um cruzamento meio perdido, onde apanhamos o unico taxi do local para Zipolite.

Ao longo de toda a costa do Mexico, milhares de quilometros de praias desertas estendem-se ate a fronteira com a Guatemala. Como estamos so dois, procuramos algo mais animado, com o intuito principal de apanharmos uns bons dias de praia. Zipolite e uma pequenissima rua com cabanas e hoteizinhos junto ao mar, um estranho paraiso de redes penduradas e uma brisa refrescante.

No Brisa Marina, um americano de 70 anos masca uma cenoura de boca aberta e explica-nos que abandonou o caos de Chicago para abrir aquela pequena pousada. 7 Euros cada um por um quarto em cima do mar, com uma varanda com redes. Toda a enorme praia, ladeada por montanhas verdes e enormes rochas, e povoada por estas pequenas construcoes muito bem inseridas no ambiente local, onde meia duzia de viajantes e mexicanos locais passam os dias com os seus mojitos e margaritas.

Zipolite, a exemplo de outras terrinhas semelhantes, e uma pacata aldeia onde cada um leva a sua vidinha, com uma estranha propensao ao nudismo, pratica que toca tanto a holandesas lindas como a um velhote frances que por la se passeia. Eu e o Joao tentamos manter o enfoque no que e importante.

Passamos um dia e meio a baloicar-nos nas redes, a conversa, num barzinho engracado chamado Alquimista e a ler livros, a carregar algumas baterias para a viagem ate ao interior que nos espera, onde planeamos passar pela cidade colonial de Oaxaca antes de entrar no estado de Chiapas, refugio historico do Ejercito Zapatista de Liberacion Nacional, um movimento indigena liderado por um cultissimo mascarado auto-intitulado Sub-Comandante Marcos, cujos escritos anti-liberais, anti-capitalistas e pro-direitos indigenas desde ha anos me fascinam pelo potente e genuino grito de revolta que representam, num pais onde desde ha 500 anos as varias etnias indigenas locais sao subjugadas, primeiro pelos conquistadores espanhois, actualmente por sucessivos governos minados de corrupcao.

Perante o meu entusiasmo em conhecer a cidade de San Cristobal de Las Casas e o proprio territorio zapatista, o Joao pergunta-me sobre as minhas inclinacoes politicas.

As ondas de Zipolite rebentam vigorosas sobre a areia branca enquanto me balanceio na rede e penso na resposta. Sem duvida que, vindo de um pais como Portugal e com o percurso de vida que tive, a minha visao da economia passa por um sistema de mercado baseada no merito e assente num modelo social justo e coerente.

Porem, se ha algo que as viagens pelos paises pobres nos permite, e abrir os olhos para outras vidas, vidas de 1 dolar por dia, vidas de infancias a vender artesanato, vidas sem tecto nem trabalho; vidas que podiam ser as nossas. (Alias, leva-nos ate a pensar em quem somos e em que cosmico momento passamos a ser nos proprios, em que conjugacao biologica de factores o nosso Eu se assumiu como tal e nos levou a uma maternidade em Lisboa e nao na Cidade do Mexico ou em Nova Deli.).

Nesse raciocinio, nao posso senao admirar todo um movimento de revolta indigena, um grito de chamada de atencao para as condicoes miseraveis em que tantos mexicanos nativos vivem, com acesso vetado a uma educacao e uma vida melhor.

Respondo ao Joao com a unica resposta que me sai: acredito nos direitos dos homens e nos movimentos que os defendem. Nao acredito em nada das propagandas extremistas dos rebeldes zapatistas nem partilho da sua visao excessivamente comunitaria da vida, mas reconheco-lhes o merito de uma luta dificil de travar e que eles - um conjunto de agricultores indigenas liderados por um intelectual da Cidade do Mexico - assumem desde as montanhas do Sudeste Mexicano.

Recordo-me da brilhante colectanea de escritos e contos do Sub-Comandante, Cuentos para una soledad desvelada, que nao pede licenca aos grandes contadores de historias latino-americanos, e adormeco a pensar em toda a diversidade de vidas e oportunidades que ha sobre a terra e nas inumeras formas de defender a dignidade das pessoas.

Como sempre, dou gracas pela minha vida e alegro-me de estar onde estou, atento ao que me rodeia, disfrutando, em reflexao, a minha vida e as vidas dos que me rodeiam.

Com este e outros pensamentos acordo de madrugada para um mergulho no mar.

10 comments:

SE said...

Que bom é voltar a ter estes relatos tão reais que nos fazem sonhar e viajar um bocadinho, sentados nas cadeiras do escritório de todos os dias, desta vida rotineira e monotona que estamos 'condenados' a levar. Aproveitem bem!!! Divirtam-se o máximo!!

filipe canas said...

Cuentos para una soledad desvelada faz-me lembrar uma Basilicata.

Pobre, mas incomparável com qualquer México.

Que bom post.

bernardo said...

Grande Siroco,

Já tinha saudades destes comentários épicos que discorres. Gosto muito de perder 5min. embuído nesta prosa...

Keep going!!!
Abração para o meu companheiro de viagem, manda outro ao pissarrinha.

BBC

Nêspera said...

Que loucura, que deve estar a ser isso.
Tenho inveja de não estar com voces por ai.
Continuem a curtir.
Luis tenta por algumas fotos se conseguires.

Abraço aos dois

xampas said...

Litas,

espero que estejas a curtir isso por ai. Fazes inveja a quem fica cá, mas pensando bem nós tb tivemos a oportunidade de viajar.

Abraço e tou a contar ctg para trazeres uma "bandeira" Mexicana. Eu sei que é preciso coragem, mas tb podes afirmar que foste dos poucos...

FB said...

que bom que é, durante 5 minutos, não pensar no trabalho nem em nada que o rodeia, sobrevoar o atlantico e imaginar tudo o que descreves!
Boa viagem,
FB

Raquel said...

Olá El Gee,

Já acompanhava o teu blog quando este gravitava em torno de Lisboa (e era sempre excelente: certo na excelência da escrita, surpreendente na transfiguração do quotidiano que poderia ser de (quase) todos nós), mas agora que estás a traçar o percurso que tenciono fazer daqui a menos de 2 meses, a atenção redobrou :)

Boa viagem...cá vamos lendo e sonhando com os trilhos que antecipas.

rosé mari said...

espectacular!

Unknown said...

É bom voltar a ler o que escreves!

Aproveita ao máximo!

Beijinhos***

Miguel Costa said...

Esse livro, quando é que sai?
Vou viajando através das tuas palavras enquanto espero cada vez mais ansiosamente pelo dia 12 de Agosto - dia em que aterro em Lima para começar a minha viagem pela América do sul
Abraço, continua a aproveitar isso e a escrever já agora, que há quem espere por isso deste lado!